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2006-07-12
A noite de 23 de junho é para a maioria dos nordestinos sinônimo de festa em homenagem a São João, ruas enfeitadas, dança e comida típica. Para o tratorista baiano Edmundo Aguiar dos Santos, 37 anos, é aniversário de um acontecimento trágico. Em 2004, enquanto seus amigos participavam dos festejos, ele varou a madrugada pulverizando agrotóxicos em uma lavoura de batatas. A mangueira principal do equipamento acoplado ao trator se soltou, e as costas de Santos foram atingidas por um jato do veneno agrícola. Ele sentiu uma ardência na pele, lavou a área afetada num córrego e seguiu trabalhando, para não ter o dia descontado do já curto salário. A noite seguinte foi de insônia e inaugurou uma fase de tontura, falta de ar e tremores pelo corpo.

Santos foi exposto outras vezes a agrotóxicos e ainda suportou o trabalho por um ano, apesar de possuir um laudo da perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) confirmando que seu sistema nervoso fora afetado pelos produtos químicos. Acabou tendo de pedir demissão. “Eu não agüentava mais”, conta.

A redução do uso de agrotóxicos na região central da Bahia, discutida em um evento no qual o agrônomo Orlando Palocci participou tanto como representante do governo como dos fabricantes de venenos agrícolas, não é apenas uma alternativa de produtores para melhorar a imagem da batata no mercado, mas uma forma de diminuir os riscos de uma legião de trabalhadores rurais que estão sendo intoxicados na lide da lavoura.

Desemprego
Em Ibicoara e na vizinha Mucugê são cultivados 5 mil hectares de batata que abastecem a região Nordeste com 175 mil toneladas anuais do produto. É uma fronteira agrícola relativamente recente, que se desenvolveu a partir de meados da década de 90 com o plantio dominado por meia dúzia de grandes empresários, em sua maioria originários de São Paulo e do Sul do país. A estimativa é de emprego para 3 mil trabalhadores, que se dividem em tarefas como plantio, colheita e lavagem da batata. O piso salarial é de R$ 365, alguns dos empregados conseguem chegar aos R$ 500 ou R$ 600 graças a horas extras. Parte das empresas tem um quadro fixo de funcionários, mas algumas fazem contratações provisórias em determinadas fases da produção, o que leva trabalhadores a amargarem períodos de até três meses sem rendimento. As lavouras de batata são de longe a principal ocupação na região, e o medo do desemprego faz agricultores suportarem jornadas extensas e riscos à saúde.

O empresário Ivo Borre, presidente da Associação dos Irrigantes do Alto Paraguaçu (BA), que reúne os produtores de batata da região, diz haver orientações claras sobre o uso de agrotóxico, mas admite a ocorrência de acidentes. “As pessoas aqui estão conscientes, mas pode ocorrer algum lapso”, afirma.

De forma geral, os trabalhadores diretamente ligados à aplicação de agrotóxicos têm equipamento de proteção, como máscaras e luvas, que nem sempre os protegem de acidentes, como mostra o caso de Edmundo Santos. No entanto, empregados de lavouras que estão nas proximidades das áreas de aplicação costumam também ser atingidos. Em 2004, Elizângela de Jesus Araújo, 29 anos, estava agachada com outras colegas colhendo batatas quando viu um trator passar por perto pulverizando agrotóxico. “A gente sentiu o fedor do veneno, as minhas mãos começaram a formigar, o coração acelerou e eu corri”, recorda. “Desmaiei e quando acordei já estava no hospital.” Ficou cinco dias internada e voltou ao trabalho. Em fevereiro do ano passado, quando lidava com a batata que tinha recebido agrotóxico, desmaiou de novo e voltou ao hospital.

O atestado assinado por um médico de Vitória da Conquista revela que ela teve vertigens e dormência em mãos, pés e língua. O diagnóstico: “Intoxicação por agrotóxico”. Ao voltar ao trabalho, Elizângela foi demitida. Hoje cria dois filhos com os R$ 100 mensais que o ex-marido lhe envia e outra quantia igual que ganha trabalhando como babá. Seu coração foi afetado, ela sente falta de ar, tem dificuldade para firmar um copo de água nas mãos e os tremores não passaram. Falta dinheiro para remédios e cuidados médicos. Vive no Renascer, um bairro pobre de Ibicoara, onde não há esgoto tratado e a água para as residências é obtida em torneiras espalhadas pelas ruas.

Desmaios na lavoura de batata não são incomuns. Moradora de Mucugê, Nilda Lopes Fernandez, 47 anos, sofreu o primeiro enquanto se curvava para pegar batatas miúdas no chão. Depois o mal-estar continuou enquanto lavava os legumes para retirar a terra e o excesso de agrotóxico. “Quando eu sentia o cheiro do veneno, me vinha um vômito verde”, recorda. Acabou aposentada por invalidez e rejeita a sugestão de amigos de “botar na autoridade” seus antigos patrões. A expressão é usada na região como sinônimo de ingressar com uma ação na Justiça.

Rio e Parque Nacional correm risco
Além da saúde de trabalhadores, o excesso de agrotóxicos na lavoura de batata na região central da Bahia significa um risco ambiental para o Parque Nacional da Chapada Diamantina e também para o abastecimento de água de parte da população do estado. As maiores áreas de plantio estão dentro de uma faixa de 10km que circunda os 152 mil hectares do parque, uma área rica em orquídeas, bromélias e sempre-vivas, que também serve de proteção para onças-pintadas, suçuaranas, capivaras, antas e outros animais.

O Rio Paraguaçu entra na Chapada Diamantina quase como um córrego e dentro dela é abastecido por centenas de riachos. Sai dali já encorpado e, depois de ganhar mais volume, é responsável pelo abastecimento da região metropolitana de Salvador e de importantes municípios do interior. O posto do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) responsável pelo parque recebe do governo menos de R$ 3 mil mensais para manter a estrutura de fiscalização de toda a área, o que dificulta a detecção de abusos. Apesar do uso exagerado de agrotóxicos na região ser bem conhecido, não há notícias de nenhum estudo sério para mensurar a contaminação do rio ou de áreas do parque. “É um tema meio velado porque há interesses grandes envolvidos”, afirma o promotor João Paulo Schoucair, que coordenou discussões na região sobre o problema.

Para Regina Malkut, integrante do Conselho Consultor do parque, são necessárias garantias ambientais mínimas na região, como a proibição do uso do Temik, agrotóxico produzido pela Bayer, que tem como princípio ativo o aldicarbe. Utilizado clandestinamente para matar ratos em cidades, o produto é responsável por inúmeras mortes de pessoas no Brasil e em outros países. Sua classificação é “extremamente tóxico”, e segundo informações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ele tem alto potencial de deslocalmento no solo, podendo atingir principalmente lençóis freáticos. “Um produto como este não pode ser usado ao redor de um parque e nacional”, diz Regina. Ivo Borre, presidente da associação que reúne os produtores de batata da região, discorda. “O produto aplicado corretamente não tem risco nenhum”, afirma. “Não há por que substituir o Temik.”

Junto a culturas como as de tomate, morango e mamão, a plantação de batatas é uma das mais expostas a agrotóxicos. Paulo Melo, pesquisador da área de hortaliças da Embrapa, em Brasília, afirma que parte desse uso se deve ao fato de o custo do plantio da batata ser alto e fazer com que produtores tentem evitar, com o agrotóxico, riscos de perda da lavoura. Cada hectare de batata plantado exige entre R$ 14 mil e R$ 17 mil de investimentos. Outra causa também do excesso de agrotóxico é o fato de a batata ser atacada com freqüência pela doença conhecida como requeima. “Ela é causada por um fungo de multiplicação extremamente rápida, capaz de destruir uma lavoura inteira em três dias”, explica Melo.

A batata é um tubérculo que em regiões como a de Mucugê e Ibicoara, recebe pouco antes de ser colhida um herbicida destinado a matar a planta. Ou seja, é exposta a agrotóxico até a última fase da produção. Em 2002, testes feitos pela Anvisa detectaram a presença irregular de agrotóxico em 22,2% das amostras examinadas. As irregularidades estavam ligadas à utilização de agrotóxicos em excesso e ao uso de produtos proibidos. De 2002 para cá, o percentual de amostras com problemas caiu.
(Por Solano Nascimento, Correio Braziliense, 11/07/2006)
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