Turismo ecológico: projetos para milionários ameaçam sítios arqueológicos e santuários naturais do México e América Central
2006-07-11
No norte da Guatemala e da Reserva de Biosfera Maia (RBM), a mais importante área protegida da América Central, o sítio arqueológico do Mirador era uma jóia bem guardada pela floresta. Com exceção das comunidades locais e dos arqueólogos, ninguém conhecia a existência dessas 26 cidades, datadas do período pré-clássico, e 1000 a 1800 anos mais antigas que outros grandes sítios maia (Palenque, Copán, Tikal). Os especialistas consideram o Mirador como o berço da civilização maia. Ele abriga as mais altas pirâmides construídas na Meso-América (147 metros de altura). Um arqueólogo norte-americano, Richard Hansen, viu, nesse patrimônio, uma nova mina de ouro:“Temos aqui uma combinação única de floresta tropical e sítios arqueológicos de valor inestimável, que criam um enorme potencial turístico para a Guatemala”.
E propôs a construção de um complexo turístico capaz, segundo ele, de garantir rendimentos para, ao mesmo tempo, restaurar o sítio, bloquear a pilhagem arqueológica e conservar os recursos naturais. O projeto El Mirador nasceu, portanto, revestido com o selo “eco-turismo”, apoiado pelo presidente da Guatemala, Oscar Berger, bem como por uma extensa lista de instituições que asseguram só trabalhar pela preservação da reserva. No entanto, com a chegada prevista de 120 mil turistas por ano, nesse ambiente preservado, o negócio divide comunidades até então unidas e promove privatização do patrimônio, sob a cobertura de objetivos científicos e/ou turístico pouco transparentes.
Mesmo antes que o projeto seja conhecido em detalhes e que seu impacto ecológico seja minimamente estabelecido, El Mirador já está sendo anunciado na imprensa como uma ótima notícia para a economia do país e para a conservação do planeta. O problema da água sequer é abordado. Ela não existe em Mirador: vai de helicóptero, para as escavações. E para os turistas, na época em que chegarem? Nenhuma resposta. Mas para Richard Hansen, é necessário agir com urgência (ou seja, expropriar): “A riqueza da RBM deve ser preservada; as comunidades locais são responsáveis pela sua deterioração”.
Como álibi, atacar as comunidades
Uma justificativa particularmente escandalosa. A comunidade incriminada (leia o texto “Viajar, conhecer e preservar, nesta edição”) pertence à rede da Associação das Comunidades Florestais do Peten (Acofop), que obteve distinção na Cúpula da Terra em Joannesburgo, em 2002, por “sua gestão sustentável de 500 mil hectares da reserva” sob as exigências do selo florestal FSC. “Em nenhum caso, a Acofop é responsável pelo desflorestamento da RBM”, insurge-se Ileana Valenzuela, do grupo Ações e Proposições do Peten. “Hansen sabe que ela é destruída pela exploração petrolífera, florestal (privada) e pelas rotas do narcotráfico. O turismo vai criar deslocamentos e atividades suplementares, em uma área da reserva ainda preservada, justamente graças ao trabalho da Acofop.”
El Mirador já teve que rever seu projeto, para uma apresentação mais “verde”, após o protesto geral que acompanhou seus primeiros planos. Um trem e um heliporto substituíram as estradas e o aeroporto inicialmente previstos. Entretanto, nada garante que essa região não será, um dia, percorrida por ônibus de turistas ou por caminhões das empresas florestais, se forem concretizadas as "rotas turísticas" que a organização Mundo Maia (um componente do Plano Puebla Panamá) projeta. Mundo Maia agrupa o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e os ministérios do Turismo do México, Guatemala, Honduras, El Salvador e Belize, para desenvolvimento de um turismo “verde” e supostamente benéfico para as populações locais…
Os objetivos do Mundo Maia visam “facilitar os deslocamentos dos turistas entre os sítios arqueológicos maias e a criar infraestruturas turísticas”. Ou, melhor dizendo, criar vias de comunicação entre os sítios de Palenque e Tulum no México, Tikal na Guatemala e Copán em Honduras, que atravessarão a região ainda intacta da RBM, nas proximidades do Mirador. Oficialmente, a região comprometeu-se a desenvolver “um turismo que respeite mais as culturas e o meio-ambiente, cujos lucros permitam combater a pobreza”. Na realidade, essa política corre o risco de provar, rapidamente, o contrário.
No México, as costas do país obstruem-se com 142 projetos em andamento (de 260 previstos) para aumentar a“oferta litoral”. Com a notável exceção da Costa Rica, que realiza uma política de conservação, a América Central compreendeu que a natureza poder ser bem vendida. Todavia, os projetos classificados como “eco-turismo” implicam, com muita freqüência, que a atividade se desenvolva na natureza, sem prever nem a participação dos habitantes na definição e na gestão do projeto, nem planejamento ecológico para reduzir o impacto da atividade. Os investidores privados exigem lugares virgens, protegidos. Com os países fornecendo matéria-prima e empregando as receitas do turismo clássico, cada governante sonha em desenvolver, durante seu mandato, “um grande projeto”.
Marinas, hotéis, campos de golfe
O presidente mexicano Vicente Fox optou, desde sua chegada ao poder, em 2001, por uma desastrosa iniciativa da Fonatur, instância federal encarregada do desenvolvimento do turismo. Trata-se de explorar o “último aquário mundial”, na Baixa Califórnia, região com uma biodiversidade marinha única e local de reprodução da baleia cinza e do tubarão-baleia. Nessas 244 ilhas [9], muito sensíveis às fontes de poluição sonora e química, o projeto Mar de Cortez deseja atrair os iates norte-americanos, construir 24 marinas com capacidade para receber 50 mil embarcações privadas. Cinco milhões de turistas são esperados até 2014.
Os investidores privados têm as mãos livres: o projeto Paraíso del Mar teve início sem dispor das autorizações necessárias nem de estudo do impacto ambiental. Em 500 hectares, ele prevê a construção de 1500 casas, 2 mil quartos de hotel, dois campos de golfe, um centro comercial, um parque recreativo e dois hospitais privados, com um investimento estimado em 900 milhões de dólares. Diante das manobras dos investidores (construção de estradas sem autorização, destruição dos mangues…), a Unesco acaba de classificar as ilhas do Golfo da Califórnia, presumidamente protegidas pelo México desde 1978, como Patrimônio Mundial da Humanidade. É bastante significativo que nem o governador do Estado, Narciso Agundez, nem o prefeito de La Paz, Victor Castro Cosio, tenham assistido à cerimônia oficial de classificação do local pela Unesco, no dia 23 de agosto de 2005, embora ambos tenham inaugurado o canteiro de obras do Paraíso del Mar.
“A Unesco não poderá regulamentar o que quer que seja com relação ao turismo, pois ela não possui os meios ”, deplora Gonzalo Halffter, perito da organização, que só pode intervir se um governo lhe pedir que o faça, o que não é o caso do Estado mexicano. Em contrapartida, uma rede de associações locais, Ciudadanos Preocupados AC, entrou com um processo judiciário contra esses projetos privados em razão “dos estudos de impacto que ignoram a presença das baleias ou dos mangues”. Segundo essa rede, “o contexto social é negado e o desenvolvimento local é tudo, menos uma prioridade”.
Honduras também pratica o “eco-turismo” nas mais belas praias do litoral caribenho, à entrada do Parque Nacional Jeanette Kawas, terra dos garifunas, população afro-crioula ali instalada desde 1880. Da costa, o país já “vendeu” aos norte-americanos suas ilhas para mergulho – ao redor de Roatan onde se fala inglês e se paga em dólares – e suas terras agrícolas para o cultivo do abacaxi, da companhia americana United Fruit (que se tornou, a partir de 1990, Chiquita Brands Company). Restava, portanto, esta parte da costa rodeada de coqueiros, até então esquecida pelo governo de Tegucigalpa.
Em nome do muito prático “interesse nacional”, o Instituto do Turismo de Honduras expropriou, pura e simplesmente, 300 hectares de litoral sem indenizar os garifunas. Em 2004, vendeu essa extensão de terra por 19 milhões de dólares à empresa privada constituída para realizar o grande projeto Micos Beach & Golf Resort. Aliás, esta denominação preocupou mais de um garifuna. “Na nossa língua, micos significa macaco e nunca houve macacos por aqui. Os únicos macacos que existem na praia, somos nós, os garifunas!”, explica o jovem Alex Podilla, presidente da Pelican Café, associação de promoção da cultura garifuna. Nada de macacos, portanto, mas um campo de golfe de 25 hectares, 2 mil quartos de hotel, 170 casas, um centro de convenções, uma marina etc. Se a atração principal é realmente o parque nacional no qual devem se desenvolver, sem maiores pormenores, “diversas atividades”, segundo os promotores, “a dança e a música garifuna também têm inúmeros atrativos”. Os antros do turismo sexual (“dança de mesa” na América Central) estarão já igualmente planejados?
Nesses três grandes projetos – El Mirador, Mar de Cortez e Micos Beach –, a natureza é explorada e vendida, como aconteceu, há 40 anos, com a magnífica baía de Acapulco. Os métodos empregados não mudaram muito: corrupção das autoridades, informações truncadas, indenização irrisória ou inexistente das terras, negação constante das conseqüências ecológicas e sociais. Na iniciativa, encontram-se os mesmos promotores e investidores (também chamados de “coiotes do turismo), em busca das últimas jóias intactas do planeta.
Nada a ver com turismo ecológico
Estamos longe dos compromissos assumidos sobre a matéria pela Organização Mundial do Turismo e pelos Estados, por intermédio do Código Mundial de Ética do Turismo e da Declaração do Quebec sobre o eco-turismo. E a anos-luz da verdadeira definição de eco-turismo. Sob a capa de preservação (real ou não), essa denominação conduz a uma privatização dos recursos naturais ainda mais rápida do que a permitida pelo turismo clássico. Os projetos apregoam, às vezes, planejamentos ecológicos. Mas todos exigem garantias sobre a propriedade da terra e empurram os habitantes locais em direção à saída.
A comunidade local perde sua terra, sua reserva de pesca ou sua nascente – ou seja, tudo o que lhe permite sobreviver. Às vezes, as áreas federais (praias, margens de rios, florestas) passam para as mãos da iniciativa privada pelo toque de mágica de uma ilegalidade desconcertante. Na verdade, esses programas reservam as últimas baleias, as últimas ceibas (árvore-emblema da Guatemala) ou a laguna dos garifunas aos mais afortunados, aqueles que justamente mais contribuíram para a sua destruição. Então, será normal pagar – e pagar caro – para usufruir de uma natureza preservada. El Mirador conta com o turismo europeu (mais refinado), ao passo que Mar de Cortez e Micos Beach são feitos “sob medida” para os norte-americanos.
A utilização fraudulenta da denominação eco-turismo, entretanto, quase não é denunciada. O eco-turismo beneficia-se de uma boa imagem e seu desenvolvimento está na moda. Para as agências de desenvolvimento internacionais, ele parece até ter se tornado uma panacéia. Na América Central e no México, agências da ONU, órgãos de financiamentos (BID, Banco Mundial, United States Agency for International Development (Usaid) e a União Européia têm, em suas gavetas, múltiplos projetos para as comunidades locais. Eles justificam as vantagens dessa política em nome da criação de uma economia local, da formação profissional e da conscientização dos habitantes, em relação à riqueza de seu patrimônio natural e cultural. Uma fórmula quase perfeita, que atenderia à necessidade de valorizar o patrimônio, garantindo, ao mesmo tempo, sua preservação.
Órgãos como a ONG Conservação Internacional e o BID, muito criticados pelas políticas empreendidas na região, financiaram porém, nos anos 1990, pequenos projetos de turismo 100% comunitários, nos quais os habitantes garantem uma real preservação do meio-ambiente, financiada pelos lucros obtidos com o turismo.
Nos projetos do Programa das Nações Unidas para o Meio-Ambiente (PNUE), explica Diego Masera, responsável pelo turismo para a América nesta organização, “a participação da comunidade é o motor do processo de preservação e nenhuma atividade de turismo é realizada sem a população”. Em contrapartida, do lado dos Estados, o dado “comunitário” — ou seja, a criação e a gestão do projeto pelos habitantes, cria um novo problema. Uma comunidade organizada, que é mais consciente do valor de seus recursos naturais, revela-se menos disposta a vender suas terras a baixos preços, a deixar privatizar suas nascentes ou quedas de água.
O exemplo alienador de Chiapas
Em Chiapas, os projetos de eco-turismo promovidos pelos governos (local e federal) não estão baseados no modelo comunitário. Tendem a promover um turismo familiar e privado. O governo local não se cansa de enaltecer o turismo como“a solução para os problemas econômicos de Chiapas”. Mas financia, há alguns anos, os piores projetos de eco-turismo do México... De acordo com Maxime Kieffer, consultor nesta área, que acaba de realizar uma pesquisa em Chiapas, “os habitantes não foram consultados na fase preparatória, a atividade e as cabanas são apresentadas já prontas, em concreto, sem nenhum planejamento ecológico para limitar a poluição.
Os responsáveis não são formados, não há gestão coletiva, não há projeto de desenvolvimento local, nem mesmo uma reflexão sobre o lixo”. Pior: quando as comunidades recusam um projeto em suas terras, os métodos empregados para convencê-las deixam prever um futuro sombrio para a região. O Conselho Autônomo da comunidade zapatista Roberto Barrios denunciou várias vezes as intimidações de funcionários públicos e investidores privados para criar um projeto de eco-turismo nas imediações de suas cachoeiras. Ora, o principal direito de uma comunidade é poder recusar a chegada de visitantes em suas terras. Logo, não pretendem deixar que projetos sejam impostos, mesmo “se eles forem muito, muito bons”, como repete incansavelmente à imprensa a responsável pelo turismo de Chiapas.
Esses projetos são igualmente financiados pela União Européia, por intermédio do programa Prodesis. Com tal parceiro – o governo pouco recomendável de Pablo Salazar (PRI) – a UE apóia projetos turísticos que nada têm de ecológicos e são, em muitos pontos, contrários às regras básicas do eco-turismo. Na comunidade lacandonense de Lacanjá Chansayab, as famílias gerem, individualmente, projetos privados, sem qualquer colaboração entre si. Elas aceitam sempre vestir sua túnica tradicional porque os formadores enviados pelo Sectur (Ministério do Turismo) garantiram que os turistas gostariam de vê-las assim.
Se acreditarmos nos prospectos, Chiapas é o reino da natureza e da paz. O verde do eco-turismo fará desaparecer o cáqui dos soldados, que jamais deixaram a região, desde 1994 – data do levante zapatista. A propaganda é astuciosa e poderia até funcionar. No escritório local da Sectur em Tuxtla Gutierrez, reconhece-se que os projetos elaborados não respeitam os princípios-chave do eco-turismo, mas que o conceito é utilizado em toda promoção do governo.
Co-presidindo o Segundo Fórum Internacional do Turismo Solidário (FITS) em Chiapas, em março de 2006, a França caucionou essa falsa imagem. O presidente mexicano Fox, o mesmo que propõe a destruição da Baixa Califórnia, foi recebido por Salazar, como “o grande fundador do turismo solidário”. Os esforços de Chiapas sobre o tema foram enaltecidos de modo elogioso por Jean-Louis Dieux, vice-presidente da região Provence-Alpes-Côte d’Azur para o qual Chiapas é pioneiro e será, brevemente um modelo do turismo solidário... Ao mesmo tempo, os participantes do Fórum Vênus da África e da Ásia queixavam-se em uma carta aberta aos organizadores “de não terem discutido com nenhuma comunidade quando das visitas ao local”. Uma prova a mais de que a visão difundida pelo governo da região não é exatamente a mesma que a dos participantes desse Fórum.
Caráter ambíguo da certificação
Tanto dentro do FITS como em outro lugar, o salvamento da denominação “eco-turismo” tornou-se uma prioridade das redes, associações, universitários que defendem o conceito. O termo apareceu como a solução mais indicada, particularmente para o turismo solidário.
Um selo de turismo solidário garantiria, além de uma preocupação de preservação do meio-ambiente, a gestão, pelos habitantes, do projeto de turismo e um reinvestimento de parte dos lucros em serviços comuns. Na França, os agentes de viagem solidários, reunidos hoje na Associação para um Turismo Equitativo e Solidário (ATES) convidaram a Fair Trade Labelling Organisation (FLO [14]), que supervisiona a cadeia do comércio equitativo, para trabalhar sobre essa matéria. Essas associações, que se tornaram agentes de viagens, têm todo interesse em representar transparência e em utilizar como argumento suas ações de solidariedade e sua ética, enquanto outras agências limitam-se a um código de boa conduta, mas utilizam termos atrativos como “turismo responsável” em sua publicidade.
Mas a certificação continua sendo um processo pesado, complexo e custoso. Para Ernest Cañada, responsável pela ONG espanhola Ação para um Turismo Responsável (ATR), “as despesas de certificação ligadas ao selo deixam de lado os pequenos projetos.” No México, por exemplo, o custo de certificação do selo do comércio eqüitativo aproxima-se dos 2 mil euros por ano, para uma organização de produtores de café. “Além disso”, prossegue Cañada, “ao certificar o café de multinacionais como Nestlé, Mac Donald ou Carrefour, a FLO enveredou por outro caminho. Não tem, para nós, nenhum sentido certificar a atividade de eco-turismo que as cadeias hoteleiras empreenderão, sem deixar de violar os direitos de seus assalariados”.
Para não reproduzir os erros cometidos em relação ao comércio eqüitativo, os custos de certificação não deveriam ser assumidos pelo projeto. Os menores empreendedores – que são a maioria – precisam ter igualmente acesso a essa rede. Mas, sobretudo, um selo de turismo solidário, sustentável ou responsável deveria, nos seus fundamentos, excluir da competição os grandes grupos de turismo.
Certificado ou não, o eco-turismo deve deixar de enganar seu cliente. A atividade não é uma solução universal que possa ser aplicada em toda a parte. Não é possível converter todos os povos que vivem próximos a um sítio arqueológico ou uma floresta primária em "guias", sob pretexto de proteção ou desenvolvimento social. O governo de Chiapas coloca perigosamente em jogo o futuro, apostando, tão rapidamente e tão mal, suas cartas na casa “eco-turismo”. E, assim como o comércio eqüitativo não erradicou a crise do café na região, o eco-turismo falsificado não fará grande coisa contra a pobreza.
(Por Anne Vigna, tradução de Marci Helaine, Le Monde, julho de 2006)
http://diplo.uol.com.br/2006-07,a1347