Justiça argentina determina nova fase contra a poluição no Rio Riachuelo
2006-07-10
A bacia Matanza-Riachuelo, a mais contaminada da Argentina por mais de um século, pode começar a ser sanada a partir de uma inovadora sentença da Suprema Corte de Justiça da Nação, que já é considerada um marco na história do direito ambiental latino-americano. Em resposta a uma demanda de moradores afetados pela poluição, o tribunal determinou este mês a 44 empresas que informem sobre os resíduos que despejam no Rio Riachuelo. Também determinou ao Estado que apresente um plano de manejo e convocou todas as partes para uma audiência pública no dia 5 de setembro.
A bacia Matanzas-Riachuelo tem 64 quilômetros de largura. Nasce a oeste da província de Buenos Aires e ao chegar à capital marca seu limite sul até desembocar no Rio da Prata. Em seus 2.240 quilômetros quadrados vivem 3,5 milhões de pessoas e operam mais de 3,5 mil indústrias. Para Alfredo Alberti, morador de um dos bairros mais vulneráveis da bacia, a sentença lhe dá esperança. “Na ausência de um Poder Executivo que assuma este problema, a decisão da Corte é muito promissora”, afirmou ao Terramérica.
A sentença não causou impacto apenas entre os interessados, mas também no âmbito judicial. Foi muito comentada no III Programa Latino-Americano de Capacitação em Direito e Políticas Ambientais, realizado em Buenos Aires entre 20 e 30 de junho, com funcionários judiciais da região. “Os cidadãos se apresentam perante a Justiça para denunciar a contaminação, mas e os promotores?”, questionou a juíza Aideé Vázquez, da província de Neuquén. A juíza, que preside o Fórum de Juízes pelo Meio Ambiente, disse ao Terramérica que o que falta na Justiça é “capacitação” sobre estes temas. Neste contexto, a sentença fez escola.
“Para a Justiça Ambiental da Argentina e da América Latina, este é um "leading case" (caso-testemunho), a Corte nos deu uma lição maravilhosa”, destacou a juíza Aida Kemelmajer, da Corte Suprema de Justiça da província de Mendoza. “Isto é o que nós juízes devemos fazer, não só escrever palavras bonitas, mas estabelecer de que modo e em que prazo nossas decisões devem ser cumpridas”, afirmou. “É um marco, uma excelente sentença”, ressaltou Enrique Peretti, juiz da Corte Suprema de Justiça da província de Santa Cruz. “Ela incorpora gerações futuras como sujeitos de direito e marca pautas a serem seguidas nestes casos”, explicou.
A bacia Matanzas-Riachuelo está contaminada desde o século XIX, e nas últimas décadas a poluição tornou sua situação crítica. Em abril, a Auditoria Geral da Nação alertou para o risco de uma “catástrofe sanitária” e a Defensoria do Povo da Nação alertou duas vezes sobre a falta de políticas públicas para o caso. O problema é complexo porque inclui três jurisdições. Por um lado, está a competência do governo nacional, que deve prevenir a contaminação, e também têm responsabilidade a província de Buenos Aires e a cidade de mesmo nome. A Corte fixou um esquema que visa a destravar o conflito.
A posição do máximo tribunal ficou cristalizada em uma causa iniciada em 2004 por um grupo de moradores, que entrou com processo pela contaminação da bacia, tanto contra o governo nacional quanto o provincial e o da cidade, e também contra 44 empresas. Entre as companhias está a petroleira norte-americana Shell e a montadora alemã Mercedes Benz. A sentença decidiu tutelar exclusivamente o bem coletivo e devolveu aos juízes de primeira instância as demandas individuais por eventuais danos. A partir dessa diferenciação, os juízes consideraram que é seu dever buscar a recomposição do dano, e, caso este seja irreversível, o ressarcimento.
“A melhora ou a degradação do ambiente beneficia ou prejudica toda a população porque é um bem que pertence à esfera social”, diz a sentença. “Daí deriva a particular energia com que os juízes devem atuar para tornar efetivo o mandato constitucional de garantir o direito a um ambiente são”, acrescenta. A Corte afirmou que em 30 dias as empresas devem informar sobre os líquidos que despejam no Rio, seu tratamento e se têm os seguros determinados pela lei de meio ambiente para o caso de precisar responder pelo dano causado.
Além disso, solicitou aos governos nacional, estadual e municipal que em 30 dias apresentem “um plano integrado” com estudos de impacto ambiental das 44 empresas, que levem adiante um programa de educação ambiental e outro para tornar pública a informação relacionada ao meio ambiente. No seminário, o juiz Ricardo Lorenzetti, autor intelectual da sentença, admitiu que é a primeira vez que a Corte se concentra na tutela de um bem coletivo como é o meio ambiente, e que o faz a fim de colocar o tema na agenda do debate nacional. “É necessário abrir o tema à sociedade, porque essa é a maneira de conscientizar sobre o problema e alcançar soluções. De nada servem as leis se a prática social segue por outros caminhos”, desafiou o juiz.
(Por Marcela Valente, Terramérica, 10/07/2006)
http://www.envolverde.com.br/materia.php?cod=19480