Quando a reportagem de O Eco chegou à região do Farias, em Linhares,
norte do Espírito Santo, já haviam se passado nove dias desde o
desmatamento promovido pela Aracruz Celulose numa Área de Preservação
Permanente (APP), às margens do Córrego Jacutinga. Mesmo depois de tanto
tempo, os moradores ainda descobriam, em meio à devastação, novas espécies
de árvores nativas derrubadas naquele fim de tarde do dia 16 de junho,
uma sexta-feira espremida entre o feriado de Corpus Christi e o jogo
Brasil x Austrália.
Diante de dezenas de troncos de garibu, jibatão, jequitibá, braúna,
sapucaia e outras espécies ameaçadas de extinção, a maioria com mais de
20 anos de idade e seis metros de altura, foi impossível concordar com a
versão divulgada na nota oficial da assessoria de imprensa. A sensação é
de que, em vez de “uma operação de corte de eucaliptos” durante a qual
“algumas árvores do sub-bosque foram danificadas”, o que houve foi a
intenção deliberada de descobrir totalmente o terreno, o que iria
intensificar o assoreamento do já tão combalido córrego.
O pequeno corpo d’água é o limite natural entre duas formas opostas de
ocupação do solo no município. A oeste, a colonização data do início do
século, quando os imigrantes italianos começaram a chegar ao estado. São
pequenas propriedades rurais onde, atualmente, se produz principalmente
coco e café. Em algumas, a agricultura de subsistência está voltando,
graças ao “trabalho-formiguinha” de conscientização feito pelo Movimento
de Pequenos Agricultores (MPA). Aos poucos, os camponeses estão
entendendo que não vale a pena plantar uma ou duas culturas apenas e ter
de comprar comida enlatada no supermercado.
No lado leste fica dos inúmeros eucaliptais da Aracruz
Celulose que, no total, ocupam mais de 4% do território capixaba. A
paisagem monótona é a mesma desde meados do século, quando a empresa
passou a derrubar a Mata Atlântica aos correntões para enfileirar seus
eucaliptos. O detalhe é que, se essa silvicultura exótica continuar
crescendo, não vai demorar para que ela ultrapasse a área ocupada pelos
remanescentes florestais, que hoje não alcançam míseros 8% do território.
Chegando ao local, foi fácil visualizar também o que os agricultores já
haviam relatado por telefone à reportagem: as sete máquinas cortadeiras
se posicionaram ao longo da estrada e desceram até a beirada do córrego,
destruindo tudo pelo caminho. Isso, definitivamente, não é fazer “corte
seletivo de eucalipto”, como consta na autorização do Ibama emitida em
2001, documento que a empresa tinha como seu principal trunfo na defesa
da legalidade da operação.
O próprio documento, aliás, é irregular. Segundo o gerente-executivo do
órgão no Espírito Santo, Ricardo Vereza, o desmatamento não podia
acontecer a poucos metros do leito do córrego, em Área de Preservação
Permanente (APP), como foi verificado.
O efeito da passagem das máquinas da Aracruz pela região, portanto, não
foi nem de longe “totalmente legal”, tampouco será possível apenas
“interromper provisoriamente os trabalhos”, como diz a nota oficial
distribuída à imprensa. Na verdade, a ação foi embargada, a madeira
apreendida e o processo, agora, tramita no departamento Jurídico do Ibama,
que tem até o dia 12 de julho para definir se vai ou não cobrar a multa à
empresa. O procurador federal Dianny Siveira, do Ibama, informou que um
engenheiro florestal enviado ao local fará um laudo técnico. Se ele
confirmar o que já foi relatado pela equipe de fiscalização, ou seja, que
não foi feito corte seletivo e que a área é APP, a multa será definida em
poucos dias.
O único momento da nota oficial em que a realidade não é de todo deturpada
é na menção às ameaças sofridas pelos operadores das máquinas, que pararam
a ação porque “as tentativas de diálogo com os invasores foram
infrutíferas”.
Confronto
Ao conhecer os autores das ameaças e ouvir seus relatos, no entanto, nos
permitimos rir juntos do aspecto tragicômico das cenas do confronto: de
um lado, sete máquinas de corte, uma ambulância, e 14 homens armados,
entre policiais militares e funcionários da Visel (empresa que presta
serviços de segurança patrimonial à Aracruz). Do outro lado, sete pessoas,
entre elas, duas crianças e duas senhoras, sendo uma deficiente e outra
grávida de nove meses, todos pequenos agricultores e vizinhos de córrego
do eucaliptal.
Quem convocou a turma foi Domingas Soprani, 52 anos, graças ao alerta do
vizinho, que chegou à sua casa contando ter acabado de tirar as caixas de
mel da beira do córrego porque “estão desmatando tudo lá”. Dona Domingas
duvidou, pois ninguém mexia naquela matinha há décadas, mas, quando foi
ao quintal e viu a queda das árvores no outro lado do córrego, ligou para
a filha pedindo ajuda. A família toda partiu para o local.
Além da coragem, as armas que dispunham eram um celular e o facãozinho do
pequeno Lucas, de seis anos. Elias Alves, um dos homens no grupo, lembra
que o supervisor da equipe chegou a zombar deles: “Eu só paro com embargo
do Ibama. Mas hoje é sexta-feira, feriadão, e ele não vem. O que vocês
vão fazer?”. Foi quando Cristina Soprani usou a barriga de nove meses como
escudo e se sentou na frente das máquinas.
Diante da convicção dos agricultores, já caída a noite, os trabalhos foram
suspensos. A Polícia Militar registrou ocorrência e, somente no dia
seguinte, a Polícia Ambiental foi ao local. O Ibama só chegaria na
segunda-feira, constatando o desmatamento de 3,5 hectares (a empresa
reconhece, em seu website, o desmate de apenas 1 hectare), embargando a
operação.
Mata em regeneração
Elias resume o sentimento que os manteve firmes, mesmo estando em tamanha
desvantagem: “Foi uma ofensa muito maior que um tapa na cara”, desabafa,
referindo-se ao desprezo da Aracruz com aquela pequena mata em estado
avançado de regeneração, que os agricultores acompanham e protegem há mais
de 30 anos, desde que o eucaliptal plantado pela antiga dona do terreno,
a Companhia Vale do Rio Doce, foi abandonado, permitindo assim o
restabelecimento da vegetação nativa.
Domingos Soprani (foto), 64 anos, conta que antes da derrubada da floresta
para plantio de eucalipto pela Vale, era costume tomar banho no Jacutinga.
“A água batia aqui”, mostra dona Domingas, passando a mão pela altura do
peito. Depois do desmatamento, o córrego chegou a secar nos períodos de
estiagem.
Nos últimos doze anos, com a mata já alta, isso nunca mais aconteceu. A
constatação da relação água-floresta foi suficiente para convencer a
comunidade sobre a necessidade de proteger a regeneração da vegetação na
propriedade da Aracruz e pensar em reflorestamento do lado do rio
pertencente aos camponeses.
O programa “Reflorestando com Árvores e Consciência”, do MPA, era o que
faltava para colocar a intenção em prática. As primeiras mudas já foram
plantadas, em áreas antes destinadas à agricultura. Cristina Soprani
conta que muitos agricultores já aderiram e o programa está crescendo em
todo o Farias.
Mesmo tendo tido a oportunidade de estudar e estando prestes a obter o
diploma de pedagoga, Cristina não pensa em abandonar a terra em que nasceu
e foi criada. Vai continuar lutando para que os pequenos agricultores
possam ter a liberdade de selecionar suas próprias sementes, preparar seu
próprio adubo, não ter de recorrer a pacotes de venenos para conseguir
empréstimos no banco e manter vivos os conhecimentos tradicionais sobre
plantio e colheita.
Nem o aparente isolamento provocado pela vizinhança como eucaliptais e
canaviais desanimam. Vender as terras, onde chegaram antes das empresas,
nem pensar. Ninguém por ali se ilude mais com promessas nas quais muitos
antepassados caíram, indo parar nas periferias das cidades depois de
trocar a propriedade por alguns cruzeiros e poucos meses de emprego em
multinacionais. No fundo, é a esperança em novos tempos que mantém viva a
resistência. Organizados nacionalmente em movimentos e redes, os pequenos
agricultores têm cada vez mais força para fazer valer a lei e os seus
direitos.
Em alguns momentos, também é possível ter esperanças quanto a uma nova
postura por parte da multinacional. Como, há cerca de um ano, o presidente
da Aracruz Celulose, Carlos Aguiar admitiu, em entrevista ao jornal A
Tribuna, que uma das maiores falhas da empresa é a insistência em “não
reconhecer os erros do passado”. Se com esta afirmação ele está se
referindo aos passivos ambientais e sociais da empresa, ou seja, ao
desmatamento de milhares de hectares de Mata Atlântica e conseqüente
expulsão e isolamento de comunidades quilombolas, indígenas e camponesas,
fica a esperança de que um dia a empresa possa realmente fazer “um bonito
papel”, como tem apregoado na última campanha publicitária.
(Por
Fernanda Couzemenco,
O Eco, 30/06/2006)