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2006-06-30
Vingança da natureza. Foi o que pensaram alguns moradores da região de Campos Novos, interior de Santa Catarina, quando se tornou pública a informação de que a usina hidrelétrica localizada entre os municípios de Celso Ramos (SC) e Pinhal da Serra (RS) apresentava vazamentos no seu reservatório.

O problema não é de agora. A usina hidrelétrica de Campos Novos começou a apresentar falhas em outubro do ano passado. Dez dias após seu enchimento, o lago precisou ser esvaziado às pressas por causa de um vazamento numa estrutura chamada túnel de desvio – que serve justamente para que o rio seja desviado, liberando assim o seu leito para a construção da barragem – construído no afluente do rio Canoas. Era o início do fim para quem ainda acreditava que a usina pudesse começar a funcionar no tempo previsto, até o final de 2005.

Na época, a solução para impedir o vazamento da água foi o lançamento de artefatos metálicos e uma manta de borracha no vão do túnel. Serviu de paliativo. No dia 20 de junho, o vazamento, que ainda acontecia, passou de 200 para 3.700 metros cúbicos por segundo, o que forçou os engenheiros à decisão de esvaziar completamente o lago. Praticamente uma proeza: em menos de três dias, um lago com 190 metros de profundidade ficou seco. Em compensação, foram carreados rio abaixo cerca de R$ 1 bilhão em investimentos, além da destruição de mata nativa devido à força e volume de água liberada. Prejuízos à economia, à famigerada política energética que permitiu a construção dessa usina e ao meio ambiente, antes mesmo do primeiro megawatt (MW) de energia ser gerado.

E só diante do agravamento da situação, não foi mais possível esconder o problema do público. No último dia 24, ambientalistas do Núcleo Amigos da Terra fizeram um sobrevôo na região e registraram as imagens desoladoras de como ficou o empreendimento. Com o local seco ficou visível uma rachadura na base do paredão de quase 200 metros de altura, justamente onde o concreto estava em contato com a água.

Impactos
O medo tomou conta dos moradores da região. Há quem afirme que foram ouvidos estrondos e que a terra chegou a tremer em algumas localidades próximas à usina, dois dias antes do anúncio de que existia o vazamento. O temor era de que a barragem estivesse cedendo. É o que garante o represente do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Campos Novos, Otacílio Mano Rosa. “O susto foi muito grande. Escutamos explosões e a terra tremeu,” conta. Segundo ele, o movimento já vinha alertando para problemas no empreendimento, com críticas diretas à Enercan pela falta de informações que prestava à população local. “Não sabemos de nada que acontece ali, a empresa não nos dá nenhum tipo de notícia”.

Mano Rosa atenta para o risco de mais um grande desastre em Santa Catarina. “Já temos uma floresta com espécies dizimadas e agora corremos o risco de uma grande tragédia aqui”, afirma, acrescentando que mesmo após os reparos nesse túnel, existe o receio de que o muro de contenção da barragem possa ter se danificado seriamente pela força da água. Com o rápido esvaziamento do lago, o MAB diz que as autoridades devem fazer um levantamento dos danos sociais e ambientais, bem como responsabilizar os culpados. “Nosso medo é saber se esse problema não afetou a barragem. Por isso, enviamos denúncias aos órgãos competentes”.

O diretor superintendente da Enercan, Enio Schneider, confirmou que o vazamento começou em outubro do ano passado, mas garantiu que ele havia sido solucionado. Segundo ele, um novo problema surgiu agora e motivou o esvaziamento do reservatório para reparos. O procedimento da empresa será descobrir a causa do problema e, em seguida, trabalhar na recuperação da área degradada. “Esvaziamos o lago, pois o vazamento se multiplicou por vinte. Até agora sabíamos a localização do problema, mas não a causa, pois o local está submerso há meses e é de difícil acesso, com muita lama”, informou, tentando passar tranqüilidade para a população. “Em aproximadamente 15 dias saberemos o que aconteceu, mas reforçamos que não há risco nenhum para a comunidade”.

Schneider salienta que, devido à estiagem, a liberação da água do lago não trouxe conseqüências ambientais relevantes, pois a usina de Machadinho, também localizada na divisa de Santa Catarina com Rio Grande do Sul, comportou “com folga” o excedente. “O reservatório de Machadinho estava operando com apenas 20% de sua capacidade devido à seca e, por isso, tinha como absorver o que liberamos aqui”, explica. Com relação à rachadura na barragem, a empresa informou que a compactação das rochas da base tornou o paredão menos flexível e apareceram as trincas, que têm a “espessura de centímetros”. A Enercan assegura que a rachadura será fechada e que o vazamento provocado pela fissura era de 800 metros cúbicos por segundo – para eles, dentro do padrão aceitável –, “caracterizando um problema pequeno que não vai prejudicar a estrutura”.

Problemática desde o início
Como parece ter se tornado rotineiro em Santa Catarina, a Usina Hidrelétrica de Campos Novos é mais um caso de empreendimento que já nasceu polêmico. Fruto de um consórcio de grandes empresas (praticamente as mesmas responsáveis pela construção da hidrelétrica de Barra Grande, a obra teve início em 2001 com investimentos de US$ 1,3 bilhões para a geração de 380 MW, incluindo R$ 619 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e R$ 193 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Diferentemente de Barra Grande, onde a questão ambiental esteve no cerne dos debates, em Campos Novos a construção da usina gerou mais discussão sobre os problemas sociais causados. As conseqüências ecológicas do empreendimento, embora existissem e aos montes, não ganharam a atenção que mereciam. E as ameaçadíssimas florestas com araucária, os sítios arqueológicos e as diversas espécies raras encontradas no local desapareceram sem deixar rastro.

Ao longo da construção da usina, o MAB e a Enercan tiveram uma série de embates. Um deles, inclusive, gerou até uma denúncia de violação de direitos humanos dos atingidos pela barragem à Organização dos Estados Americanos (OEA). Na época, as lideranças sociais afirmaram que o deslocamento forçado, a expropriação de terras e a degradação do patrimônio ambiental colocariam em risco a sobrevivência da comunidade ribeirinha.

Os conflitos em torno da usina hidrelétrica se acirraram em setembro do ano passado, com necessidade de intervenção de Polícia Militar. Os moradores da região acamparam no canteiro de obras e solicitaram à empresa a revisão do número de atingidos. Mesmo assim, o consórcio foi autorizado a encher o reservatório e só não começou as operações devido ao atraso causado pelo vazamento no túnel. O MAB e organizações não governamentais denunciaram também irregularidades na construção da usina, como o fechamento das comportas sem autorização da Fundação do Meio Ambiente de Santa Catarina (Fatma), o início do enchimento do lago durante a noite sem aviso à população e a conclusão da construção da barragem sem que os problemas sociais e ambientais estivessem resolvidos.

Segundo denúncias do MAB, a pressa para encher o reservatório pode ter custado o primeiro vazamento em um dos túneis da barragem. Isso porque toda a estrutura não teria sido devidamente testada para suportar a vazão da água.

Em outubro, o MAB e a ONG Terra de Direitos enviaram representantes a Washington para cobrar do BID providências. E, há cerca de um mês, essas mesmas denúncias foram reencaminhadas aos órgãos ambientais e aos financiadores BNDES e BID, para que essas organizações tomassem ciência da situação. Mas nenhuma instituição se pronunciou sobre o assunto. E isso tem explicação. Afinal, a hidrelétrica pagará royalties anuais de R$ 6,4 milhões, o que vai aumentar a arrecadação dos municípios em cerca de R$ 2,9 milhões. Outra parte será destinada ao governo de Santa Catarina, ao Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica e ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Esses valores foram estabelecidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e calculados a partir dos 380 MW médios de energia assegurada para a usina de Campos Novos.

Além dos problemas ambientais e sociais, a ambientalista Miriam Prochnow afirma que a questão da engenharia também deve ser olhada com atenção. Ela disse nunca ter visto caso semelhante no país e que a rachadura na barragem coloca em xeque a política de construção de usinas. “É um problema de obra civil em todo o processo de construção de hidrelétrica. Temos questionado a questão de Eia-Rima [estudo e relatório de impacto ambiental] e impactos sociais, mas nunca havia surgido um problema desse tipo”, comenta. “Isso nos deixa apreensivos, pois não é só com relação às questões ambientais que o cuidado é relegado ao segundo plano. Também nas obras de engenharia as coisas não andam bem”.

Enquanto os órgãos ambientais e públicos silenciam, ao que parece a própria natureza é resistente ao empreendimento. Segundo Mano Rosa, todo esse problema acontece porque simplesmente uma hidrelétrica ali não era viável. “É a revolta da natureza. Ela não gostou do que fizeram aqui com quem a tratava muito bem”, diz. O grande medo da população é que a barragem não suporte o volume de água em períodos de cheia. “Viveremos com uma bomba-relógio em nossa cabeça”. (Por Fabrício Escandiuzzi, O Eco, 29/06/2006)

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