Vingança da natureza. Foi o que pensaram alguns moradores da região de
Campos Novos, interior de Santa Catarina, quando se tornou pública a
informação de que a usina hidrelétrica localizada entre os municípios de
Celso Ramos (SC) e Pinhal da Serra (RS) apresentava vazamentos no seu
reservatório.
O problema não é de agora. A usina hidrelétrica de Campos Novos começou a
apresentar falhas em outubro do ano passado. Dez dias após seu enchimento,
o lago precisou ser esvaziado às pressas por causa de um vazamento numa
estrutura chamada túnel de desvio – que serve justamente para que o rio
seja desviado, liberando assim o seu leito para a construção da barragem –
construído no afluente do rio Canoas. Era o início do fim para quem ainda
acreditava que a usina pudesse começar a funcionar no tempo previsto, até
o final de 2005.
Na época, a solução para impedir o vazamento da água foi o lançamento de
artefatos metálicos e uma manta de borracha no vão do túnel. Serviu de
paliativo. No dia 20 de junho, o vazamento, que ainda acontecia, passou de
200 para 3.700 metros cúbicos por segundo, o que forçou os engenheiros à
decisão de esvaziar completamente o lago. Praticamente uma proeza: em
menos de três dias, um lago com 190 metros de profundidade ficou seco.
Em compensação, foram carreados rio abaixo cerca de R$ 1 bilhão em
investimentos, além da destruição de mata nativa devido à força e volume
de água liberada. Prejuízos à economia, à famigerada política energética
que permitiu a construção dessa usina e ao meio ambiente, antes mesmo do
primeiro megawatt (MW) de energia ser gerado.
E só diante do agravamento da situação, não foi mais possível esconder o
problema do público. No último dia 24, ambientalistas do Núcleo Amigos da
Terra fizeram um sobrevôo na região e registraram as imagens desoladoras
de como ficou o empreendimento. Com o local seco ficou visível uma
rachadura na base do paredão de quase 200 metros de altura, justamente
onde o concreto estava em contato com a água.
Impactos
O medo tomou conta dos moradores da região. Há quem afirme que foram
ouvidos estrondos e que a terra chegou a tremer em algumas localidades
próximas à usina, dois dias antes do anúncio de que existia o vazamento.
O temor era de que a barragem estivesse cedendo. É o que garante o
represente do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Campos Novos,
Otacílio Mano Rosa. “O susto foi muito grande. Escutamos explosões e a
terra tremeu,” conta. Segundo ele, o movimento já vinha alertando para
problemas no empreendimento, com críticas diretas à Enercan pela falta de
informações que prestava à população local. “Não sabemos de nada que
acontece ali, a empresa não nos dá nenhum tipo de notícia”.
Mano Rosa atenta para o risco de mais um grande desastre em Santa Catarina.
“Já temos uma floresta com espécies dizimadas e agora corremos o risco de
uma grande tragédia aqui”, afirma, acrescentando que mesmo após os reparos
nesse túnel, existe o receio de que o muro de contenção da barragem possa
ter se danificado seriamente pela força da água. Com o rápido esvaziamento
do lago, o MAB diz que as autoridades devem fazer um levantamento dos
danos sociais e ambientais, bem como responsabilizar os culpados. “Nosso
medo é saber se esse problema não afetou a barragem. Por isso, enviamos
denúncias aos órgãos competentes”.
O diretor superintendente da Enercan, Enio Schneider, confirmou que o
vazamento começou em outubro do ano passado, mas garantiu que ele havia
sido solucionado. Segundo ele, um novo problema surgiu agora e motivou o
esvaziamento do reservatório para reparos. O procedimento da empresa será
descobrir a causa do problema e, em seguida, trabalhar na recuperação da
área degradada. “Esvaziamos o lago, pois o vazamento se multiplicou por
vinte. Até agora sabíamos a localização do problema, mas não a causa,
pois o local está submerso há meses e é de difícil acesso, com muita lama”,
informou, tentando passar tranqüilidade para a população. “Em
aproximadamente 15 dias saberemos o que aconteceu, mas reforçamos que não
há risco nenhum para a comunidade”.
Schneider salienta que, devido à estiagem, a liberação da água do lago
não trouxe conseqüências ambientais relevantes, pois a usina de Machadinho,
também localizada na divisa de Santa Catarina com Rio Grande do Sul,
comportou “com folga” o excedente. “O reservatório de Machadinho estava
operando com apenas 20% de sua capacidade devido à seca e, por isso, tinha
como absorver o que liberamos aqui”, explica. Com relação à rachadura na
barragem, a empresa informou que a compactação das rochas da base tornou o
paredão menos flexível e apareceram as trincas, que têm a “espessura de
centímetros”. A Enercan assegura que a rachadura será fechada e que o
vazamento provocado pela fissura era de 800 metros cúbicos por segundo –
para eles, dentro do padrão aceitável –, “caracterizando um problema
pequeno que não vai prejudicar a estrutura”.
Problemática desde o início
Como parece ter se tornado rotineiro em Santa Catarina, a Usina
Hidrelétrica de Campos Novos é mais um caso de empreendimento que já
nasceu polêmico. Fruto de um consórcio de grandes empresas (praticamente
as mesmas responsáveis pela construção da hidrelétrica de Barra Grande, a
obra teve início em 2001 com investimentos de US$ 1,3 bilhões para a
geração de 380 MW, incluindo R$ 619 milhões do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e R$ 193 milhões do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Diferentemente de Barra Grande, onde a questão ambiental esteve no cerne
dos debates, em Campos Novos a construção da usina gerou mais discussão
sobre os problemas sociais causados. As conseqüências ecológicas do
empreendimento, embora existissem e aos montes, não ganharam a atenção que
mereciam. E as ameaçadíssimas florestas com araucária, os sítios
arqueológicos e as diversas espécies raras encontradas no local
desapareceram sem deixar rastro.
Ao longo da construção da usina, o MAB e a Enercan tiveram uma série de
embates. Um deles, inclusive, gerou até uma denúncia de violação de
direitos humanos dos atingidos pela barragem à Organização dos Estados
Americanos (OEA). Na época, as lideranças sociais afirmaram que o
deslocamento forçado, a expropriação de terras e a degradação do
patrimônio ambiental colocariam em risco a sobrevivência da comunidade
ribeirinha.
Os conflitos em torno da usina hidrelétrica se acirraram em setembro do
ano passado, com necessidade de intervenção de Polícia Militar. Os
moradores da região acamparam no canteiro de obras e solicitaram à
empresa a revisão do número de atingidos. Mesmo assim, o consórcio foi
autorizado a encher o reservatório e só não começou as operações devido
ao atraso causado pelo vazamento no túnel. O MAB e organizações não
governamentais denunciaram também irregularidades na construção da usina,
como o fechamento das comportas sem autorização da Fundação do Meio
Ambiente de Santa Catarina (Fatma), o início do enchimento do lago durante
a noite sem aviso à população e a conclusão da construção da barragem
sem que os problemas sociais e ambientais estivessem resolvidos.
Segundo denúncias do MAB, a pressa para encher o reservatório pode ter
custado o primeiro vazamento em um dos túneis da barragem. Isso porque
toda a estrutura não teria sido devidamente testada para suportar a vazão
da água.
Em outubro, o MAB e a ONG Terra de Direitos enviaram representantes a
Washington para cobrar do BID providências. E, há cerca de um mês, essas
mesmas denúncias foram reencaminhadas aos órgãos ambientais e aos
financiadores BNDES e BID, para que essas organizações tomassem ciência
da situação. Mas nenhuma instituição se pronunciou sobre o assunto. E
isso tem explicação. Afinal, a hidrelétrica pagará royalties anuais de R$
6,4 milhões, o que vai aumentar a arrecadação dos municípios em cerca de
R$ 2,9 milhões. Outra parte será destinada ao governo de Santa Catarina,
ao Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica e ao Ministério da
Ciência e Tecnologia. Esses valores foram estabelecidos pela Agência
Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e calculados a partir dos 380 MW
médios de energia assegurada para a usina de Campos Novos.
Além dos problemas ambientais e sociais, a ambientalista Miriam Prochnow
afirma que a questão da engenharia também deve ser olhada com atenção. Ela
disse nunca ter visto caso semelhante no país e que a rachadura na
barragem coloca em xeque a política de construção de usinas. “É um
problema de obra civil em todo o processo de construção de hidrelétrica.
Temos questionado a questão de Eia-Rima [estudo e relatório de impacto
ambiental] e impactos sociais, mas nunca havia surgido um problema desse
tipo”, comenta. “Isso nos deixa apreensivos, pois não é só com relação às
questões ambientais que o cuidado é relegado ao segundo plano. Também nas
obras de engenharia as coisas não andam bem”.
Enquanto os órgãos ambientais e públicos silenciam, ao que parece a
própria natureza é resistente ao empreendimento. Segundo Mano Rosa, todo
esse problema acontece porque simplesmente uma hidrelétrica ali não era
viável. “É a revolta da natureza. Ela não gostou do que fizeram aqui com
quem a tratava muito bem”, diz. O grande medo da população é que a
barragem não suporte o volume de água em períodos de cheia. “Viveremos
com uma bomba-relógio em nossa cabeça”.
(Por Fabrício Escandiuzzi,
O Eco, 29/06/2006)