A usina Três Gargantas, na China, é uma das mais grandiosas obras de engenharia dos últimos tempos. Quando a barragem estiver 100% cheia, em 2009, deverá desbancar Itaipu Binacional do trono de maior hidrelétrica do mundo. Até lá, a obra terá consumido 16 anos. Pelo menos 1,2 milhão de pessoas terão sido removidas. Terras férteis terão sido inundadas, florestas destruídas e histórias apagadas. Terá também se transformado, para sempre, uma das mais belas paisagens do vale do Rio Yang-tsé, o terceiro maior do mundo, atrás do Amazonas e do Nilo. Vale a pena? Ambientalistas e economistas terão respostas bem diferentes. Para crescer, porém, o mundo precisa de energia.
E o que Três Gargantas tem a ver com o Brasil? Muito. Nos próximos anos, para garantir um crescimento bem menor que o chinês, os brasileiros precisarão da energia de duas Três Gargantas. Em muito menos tempo. Pelas projeções do governo, para crescer a uma taxa de 4,2% ao ano até 2015, o Brasil terá de aumentar a geração de eletricidade em mais de 43%. A maior parte terá de vir de hidrelétricas. É uma das mais importantes questões que o próximo presidente da República terá de enfrentar. Até o momento, ela não tem sido encarada com a devida seriedade no debate eleitoral.
O que está em jogo, aqui e no mundo, é a segurança energética. "Energia é um bem cada vez mais raro e caro", disse a ÉPOCA, de Nova York, Vijay Vaitheeswaran, especialista em energia da revista The Economist e um dos analistas de energia mais respeitados do mundo. "Um choque planetário por causa de colapsos no fornecimento é uma preocupação constante." O Brasil já viveu essa situação recentemente, com o apagão de 2001. Como se livrar desse risco? "O desafio é enorme", afirma Maurício Tolmasquim, presidente da Empresa de Planejamento Energético (EPE), estatal vinculada ao Ministério de Minas e Energia.
Dá para traduzir esse desafio em números. Falta garantir, além de todos os projetos de geração previstos para os próximos três anos, mais R$ 74 bilhões em investimentos para o período 2009-2015. Quer dizer: em relação ao que foi feito de 2003 até agora, o ritmo de investimentos precisa ser triplicado. Antes de 2009, a população não deve sentir o problema. "Não há motivo para pânico", diz Mário Veiga, consultor especial do Ministério de Minas e Energia. "Dá para construir novas usinas em três anos." Só que não dá para o país ficar parado. Para tudo correr bem, é preciso que não haja nenhum atraso nas obras. Não é um cenário muito confortável, se for levado em conta o histórico brasileiro.
1) HIDRELETRICIDADE
A luz das hidrelétricas é a mais barata. O combustível sai de graça. Basta chover. Quando consideradas todas as fontes de energia - incluindo petróleo e gás -, as hidrelétricas representam 15% do que o Brasil consome. Tal número desfaz uma percepção equivocada de que a energia no Brasil depende apenas da chuva. Não é verdade. O transporte brasileiro (por carros e caminhões) está quase totalmente baseado no petróleo. E a indústria nacional vem aumentando o uso de gás natural. Juntos, petróleo e gás respondem por 48,4% da matriz energética brasileira.
Nas situações em que a energia depende de uma tomada de luz, porém, a hidreletricidade reina soberana. Ela fornece 73% da eletricidade brasileira. Por causa da alta dependência das hidrelétricas, o sistema elétrico brasileiro foi concebido como um dos mais seguros do mundo. Ele é todo interconectado, de forma a unir regiões cujo regime de chuvas nunca coincide. Isso significa que a energia gerada no Sudeste pode iluminar a casa de uma família no extremo Sul. "Por causa da estiagem no Sul, 60% da energia consumida na região está vindo do sistema Sudeste-Centro-Oeste", afirma Hermes Chipp, presidente do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), entidade criada em 1998 para administrar a geração e a transmissão de energia.
Mas isso não significa que o sistema seja perfeito. Na crise de 2001, houve uma sucessão de falhas. O nível dos reservatórios foi baixando ano a ano, desde 1997. A opção das usinas térmicas, que geram eletricidade a partir do gás natural, não deu certo. Anunciadas em 1999, elas não ficaram prontas a tempo. Como alguém que gasta as economias, o país ficou sem recursos para pagar a dívida energética. O resultado foi o racionamento. O episódio trouxe algumas lições. Primeira: é perigoso depender de uma única fonte de eletricidade. Segunda: economizar é essencial, porque energia é um bem escasso.
Outro limitador da energia das hidrelétricas tem sido o impacto ambiental. As hidrelétricas envolvem gente, animais e plantas. Ecossistemas inteiros. Grupos ambientalistas costumam fazer grande pressão contra as obras. A maior resistência tem ocorrido na Bacia Amazônica, sobretudo na hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Na semana passada, o Movimento Pró-Belo Monte impediu agências bancárias de abrir, queimou toras e levou gado para as ruas do município de Altamira, como forma de pressão para a obra andar. Por enquanto, tudo continua parado.
Pelas novas regras dos leilões de hidrelétricas, os investidores adquirem o direito de construir uma usina com licença ambiental prévia. Mas o governo não tem conseguido licenciar hidrelétricas em número suficiente para abastecer o mercado. No último leilão, em dezembro, foram oferecidas mais térmicas que hidrelétricas. O impacto ambiental das térmicas é ainda maior, pois gera energia pela queima de combustíveis fósseis. ä "Criou-se um mecanismo perverso no Brasil. Ficou muito mais fácil construir térmicas, mais caras e mais poluentes", diz o consultor Mário Veiga.
2) GÁS NATURAL
Com a conversão de indústrias, que deixaram de usar diesel, com as usinas térmicas e com a frota de veículos movida a GNV, o mercado de gás natural vem crescendo 15% ao ano, desde 2001, e já responde por 8,7% da energia brasileira. Dos 50 milhões de metros cúbicos de gás natural que o Brasil consome todo dia, metade vem das jazidas da Bolívia. Recentemente, o Brasil sentiu o drama de depender do gás boliviano.
Quando nacionalizou suas reservas, no dia 1o de maio, e tomou as refinarias e outras propriedades da Petrobras, o presidente boliviano, Evo Morales, reforçou a lição do racionamento de 2001: é preciso diversificar. Apesar de o contrato de fornecimento com a Bolívia valer até 2019, os bolivianos resolveram renegociar o preço do combustível. Embora não tenha se concretizado, também surgiu o temor de que fechassem as torneiras. "A pior notícia até agora foi o cancelamento do projeto de duplicar o gasoduto Brasil-Bolívia, porque sua capacidade está quase esgotada", diz Adriano Pires, especialista em energia do Centro Brasileiro de Estudos em Infra-Estrutura (CBIE).
A Petrobras nega que haja risco de crise no abastecimento. "O gás é substituível, não é como a energia elétrica", afirma o diretor de Gás e Energia da estatal, Ildo Sauer. No Nordeste está o pior gargalo. A construção de gasodutos para levar o gás do Sudeste até lá demoraria no mínimo dois anos e meio. O consultor Mário Veiga sugere uma solução mais econômica: converter o gás em eletricidade nas usinas termelétricas e "transportá-lo" pela rede elétrica. Assim seria possível importar gás natural liquefeito (GNL). "O custo do GNL está caindo muito rápido", diz Veiga.
Há outras frentes de batalha. A Petrobras deflagrou a antecipação da produção nos campos onde já encontrou gás. A meta da estatal é entregar 60 milhões de metros cúbicos de gás por dia em 2008, mais que o dobro dos 28 milhões de hoje. Também negocia a importação de GNL para atender o Nordeste. E adotou uma solução mais inovadora: converter as usinas térmicas para funcionar tanto a gás como a diesel e até com álcool.
3) ÁLCOOL
Com a disparada no preço do petróleo, a mistura de álcool à gasolina se tornou concreta para reduzir a dependência do petróleo. Carros bicombustíveis, uma invenção brasileira, já circulam nos EUA e na Europa, embora em pequena quantidade. Outro motor do fenômeno é o apelo ambiental. Mais limpo, o álcool, ou etanol, é também chamado de energia renovável. Apesar de a queima de álcool emitir gases causadores do efeito estufa, seu ciclo de produção inclui a plantação de cana, um vegetal que devolve oxigênio ao meio ambiente. "Para nos tornarmos um grande fornecedor mundial de álcool, é só uma questão de tempo", diz Antonio de Pádua, diretor-técnico da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica).
O Brasil também está prestes a lançar um novo combustível "verde", um diesel de origem vegetal chamado H-Bio. "O H-Bio utilizará óleos vegetais em larga escala nas refinarias", afirma Luiz Pinguelli Rosa, coordenador do Programa de Planejamento Energético da Coppe-UFRJ e ex-presidente da Eletrobrás. Feito a partir de sementes como mamona ou girassol, ele vem sendo misturado ao diesel para abastecer veículos. Foi lançado em 2004, como programa de governo, subsidiado, para incentivar a agricultura familiar. Gargalos tecnológicos, porém, ainda o tornam pouco competitivo.
4) PETRÓLEO
Recém-chegado ao seleto grupo de países auto-suficientes em petróleo, o Brasil alcançou o que os especialistas chamam de segurança estratégica. O petróleo responde por quase 40% da matriz energética. Numa hipótese um tanto absurda, mas nunca totalmente descartável, se o Oriente Médio fechasse as torneiras, o Brasil estaria a salvo. A principal questão, ainda sem resposta, é se a auto-suficiência brasileira resistirá a índices maiores de crescimento econômico. Governo e Petrobras afirmam que sim. Muitos especialistas temem que não e dizem que, mais do que nunca, é preciso investir nas fontes alternativas.
5) FONTES ALTERNATIVAS
Um ousado programa de energias alternativas foi lançado em 2004 pelo ä governo brasileiro como o "maior do mundo". Entre usinas movidas a bagaço de cana (biomassa), vento (eólica) e energia solar, o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) contratou projetos suficientes para abastecer uma cidade de 1 milhão de habitantes. É ainda muito pouco. O Proinfa deveria estar operando até o fim deste ano, mas foi adiado para 2008. Só quatro de um total de 144 usinas estão funcionando.
Se o brasileiro diminuir o consumo de luz em 10%, poupará o suficiente para iluminar por um ano inteiro o equivalente a dois Estados da Bahia
O principal trunfo até agora foi trazer à tona o enorme potencial do país. Estudos sugerem que a força do vento em áreas do Nordeste, do Sudeste e do Sul equivale a "três Itaipus". Parece perfeito, certo? O combustível sai de graça e não alaga a casa de ninguém. Mas o vento só serve como energia complementar, pois uma hora pára de ventar. O índice de aproveitamento é geralmente de 20%. Outra energia limpa, a solar, é a mais abundante, mas também a mais cara. O investimento inicial é quatro vezes superior ao da hidrelétrica.
Apesar da indefinição sobre o que fazer com os rejeitos nucleares, que levam milhares de anos para desaparecer, e do trauma coletivo por acidentes como o de Chernobyl, a energia nuclear tem se revelado uma das fontes mais limpas. A França garante quase 80% de sua energia graças a reatores atômicos. No Brasil, a opção atômica estacionou nas usinas de Angra 1 e Angra 2. As duas juntas fornecem menos de 4% da energia que o país consome. A construção de Angra 3 já esteve em pauta várias vezes desde 2001, mas não deslanchou. Com o desenvolvimento de reatores que reaproveitam o lixo tóxico, a promessa nuclear conquistou os ambientalistas.
6) EXISTE ENERGIA LIMPA?
A equação energética brasileira não será resolvida independentemente do resto do planeta. A Agência Internacional de Energia (IEA) soltou o alerta no ano passado: o consumo de energia no mundo não é nem econômica, nem social nem ambientalmente sustentável. Um estudo sobre a demanda de energia mundial até 2030 estima que sejam necessários US$ 13 trilhões em investimentos para o planeta não parar nos próximos 25 anos. Mais da metade em países em desenvolvimento como China, Índia e Brasil. O desafio é duplo: encontrar investidores e não piorar o efeito estufa com emissões de gás carbônico.
A China fez sua opção pela hidreletricidade e pela energia nuclear, para tentar reduzir a dependência de combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão). Três Gargantas é apenas um entre as dezenas de projetos em andamento. Na Índia, a meta é dobrar o potencial energético em dez anos. O motor da economia indiana é o setor de serviços, cujo consumo de energia é mais baixo. Há quem aconselhe o Brasil a copiar esse modelo para dar uma guinada econômica sem ter de esvaziar os reservatórios ou acionar todas as térmicas.
Mas Índia e China ainda são altamente dependentes do carvão, cuja queima gera a maior emissão de gases causadores do efeito estufa. A conclusão inescapável é que não dá para separar a questão energética da ambiental. O que deixa o Brasil diante de um desafio ainda maior: conciliar as necessidades ambientais às energéticas. Nesse campo, não há resposta fácil. "A fonte mais limpa de energia que existe é ser eficiente", diz Roberto Schaeffer, doutor em planejamento energético da Coppe-UFRJ. "O carro mais limpo do mundo sempre será pior que um ônibus. Em algum momento, será preciso mudar o padrão de consumo. Se cada chinês fizer como os americanos e usar carro, em vez de bicicleta, aonde vamos chegar?" O recado vale também para o Brasil.
O petróleo verde
Atenção ao que está acontecendo nos EUA em relação ao uso do álcool como combustível: neste mês, três produtores americanos lançaram ações na Bolsa de Nova York e vários estão prospectando investimentos no Brasil. Estão atrás de recursos para financiar a produção e pesquisa, seguindo a bem-sucedida estratégia da Pacific Ethanol, que tem Bill Gates, o bilionário dono da Microsoft, como sócio. A empresa nem começou a produzir álcool e suas ações dobraram de valor neste ano.
Volta e meia, missões de empresários e governos estrangeiros vêm ao país conhecer usinas, plantações e tecnologias. Gente acostumada a ganhar muito dinheiro, como Bill Gates. Ele esteve no Brasil no início do ano. Sabe-se que seu apetite agrícola é grande. Gates poderia investir algo em torno de US$ 200 milhões na aquisição de uma usina brasileira para exportar álcool para os EUA. Essa mesma cifra já foi desembolsada pelo megainvestidor George Soros. Ele comprou uma usina de álcool em Minas Gerais.
Sergey Brin e Larry Page, os bem-sucedidos donos do fenômeno Google, visitaram usinas no interior de São Paulo, alimentando as especulações sobre novos investidores milionários num setor que, no passado, já foi sinônimo de decadência. Há poucos dias, o ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton disse: "O modelo brasileiro é um exemplo a ser copiado".
Desde o Proálcool, nos anos 70, a gasolina deixou de ser a única fonte dos tanques. Nos anos 80, 92% dos carros brasileiros rodavam a álcool. O sucesso minguou, mas o Brasil ainda tem a mais bem-sucedida experiência com combustíveis alternativos. "A demanda americana sobe exponencialmente e o álcool produzido aqui não tem economicidade, o Japão é um comprador em potencial e o custo de produção da Europa é elevado demais. O Brasil tem tudo para se tornar um grande exportador", afirma Aaron Brady, especialista em energia da Cambridge Energy Resources - consultoria de Daniel Yergin, autor do best-seller O Petróleo, uma descrição romanceada da indústria -, que aposta na guinada brasileira.
Especialista diz que álcool é fundamental para o futuro
Formado em Engenharia Mecânica pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) e especialista em Meio Ambiente e Energia da revista britânica The Economist, Vijay Vaitheeswaran publicou no ano passado o livro Power to the People, um estudo sobre como a revolução energética transformará nossas vidas e o planeta.
ÉPOCA - O senhor está otimista ou pessimista sobre a possibilidade de termos um futuro menos poluente?
Vijay Vaitheeswaran - Há três sérios problemas ameaçando o planeta. Um é a forma como usamos energia, que cria problemas graves, como o aquecimento global. Em segundo lugar, os países estão preocupados com o fornecimento devido à concentração do petróleo no Oriente Médio. O terceiro ponto é que quase 2 bilhões de pessoas não têm acesso à energia. O sistema montado em cima de petróleo e carvão é insustentável. Por outro lado, vivemos num tempo de inovações e oportunidades em energia sustentável.
ÉPOCA - O senhor diz que os EUA são viciados em petróleo. Há cura?
Vijay - Logo depois dos atentados de 11 de setembro, eu dizia que, ao comprar petróleo da Arábia Saudita, os americanos financiavam também o terrorismo. Só quando nos livrarmos do petróleo, não enfrentaremos problemas assim. É aí que entra o Brasil. Uma das mais promissoras soluções para reduzir a dependência do petróleo é o etanol. Não que o mundo usará 100% álcool. O Brasil não tem como abastecer o mundo, mas o álcool terá um papel muito importante ao reduzir nossa dependência do petróleo.
(Por Isabel Clemente, Época, 26/06/2006)
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG74565-6009-423-1,00.html