Radiação ionizante em alimentos: risco ou segurança?
2006-06-27
Impactos à saúde e ao meio ambiente derivados do uso de radiação ionizante em alimentos constituem um assunto polêmico porque há fortes argumentos defendendo a tese de que são inócuos, assim como indícios e pesquisas que sustentam o contrário. O uso desta radiação em alimentos não é uma novidade, nem no Exterior, nem no Brasil, mas ainda está sendo regulamentado.
No início da semana passada, o Ministério da Agricultura realizou uma reunião com representantes da sua Coordenação de Fiscalização de Trânsito de Vegetais (Departamento de Sanidade Vegetal), incluindo pessoal do Ministério do Meio Ambiente, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) para tratar da aplicação da radiação ionizante ao tratamento fitossanitário. O objetivo é o controle de pragas nos alimentos.
De acordo com a técnica Sheila Diana de Castro Ribeiro, do Departamento de Sanidade Vegetal do Ministério da Agricultura, a novidade é que está sendo buscada uma norma para a aplicação desse tipo de radiação não ao controle da qualidade de alimentos, como já existe atualmente, mas à garantia da eliminação das chamadas pragas quarentenárias – aquelas de importância econômica potencial, já presentes no país, mas que não se encontram amplamente distribuídas e possuem programa oficial de controle. Trata-se, conforme Sheila, de uma exigência do setor exportador, a fim de obter a aceitação de produtos agrícolas brasileiros no Exterior, com a garantia de que não haja disseminação de pragas que não existem nos países de destino.
“Já existe a radiação de alimentos no Brasil, autorizada pela CNEN e pela Anvisa, para o controle da qualidade de produtos, a fim de aumentar o prazo de validade de certos alimentos, mas não para o controle de pragas”, ressalta Sheila, acrescentando que a diferença entre os dois processos será relativa ao estabelecimento da dose de radiação, a qual deverá variar de acordo com o gênero do alimento. Ela detalha que enquanto o controle da qualidade refere-se principalmente à aparência externa, o controle fitossanitário por irradiação “será feito para que a praga não escape nem se mova”.
Para fazer valer a aplicação da radiação com fins de controle de doenças fitossanitárias, será editada uma instrução normativa, a qual regulamentará a norma internacional do Fundo das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) que trata das diretrizes para utilização da irradiação ionizada (NIMF nº 18). Sheila acredita que até agosto ou, no máximo, em setembro, estará pronta a minuta do documento que vai ser submetido, a partir de então, a uma consulta pública, por 90 dias. Com a aprovação da CNEN, o Ministério da Agricultura deverá credenciar as empresas para aplicar a técnica. “Foi uma demanda principalmente dos exportadores de mamão do Espírito Santo, da Bahia, do Ceará e do Rio Grande do Norte”, informa Sheila.
Impactos
Conceitualmente, a ionização é um tratamento físico dos alimentos com radiação de elevada carga energética. O tratamento é aplicado com diferentes propósitos, como prevenção da germinação de batatas, cebolas e alhos; desinfestação por esterilização dos insetos que infestam os grãos, as frutas secas, os vegetais e nozes; retardamento da maturação e envelhecimento dos vegetais; prolongamento da validade e prevenção de doenças pela redução do número de microorganismos viáveis na carne, aves e mariscos; redução dos microorganismos em especiarias e ervas.
A radiação ionizante consiste na excitação de átomos de forma a arrancar-lhes elétrons que serão bombardeados por aceleradores de partículas, atingindo uma determinada massa. São também definidas como ondas eletromagnéticas de alta energia (raios X ou raios gama) que, ao interagirem com a matéria, desencadeiam uma série de ionizações, transferindo energia aos átomos e moléculas presentes no campo irradiado e promovendo, assim, alterações físico-químicas intracelulares. A dose absorvida de radiação é a energia depositada por quilograma de tecido e é expressa em "rad" ("radiation absorbed dose", ou dose de radiação absorvida). Pelo sistema internacional de medidas, utiliza-se a unidade "gray" (Gy), que equivale a 100 rad. Ela é adotada para qualquer tipo de radiação ionizante e não especificamente para o uso de raios-X (RX).
Segundo o doutor em Física Johnny Dias, do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), a irradiação em alimentos é um processo bastante conhecido visando à conservação da qualidade e à eliminação de microorganismos que levam ao apodrecimento vegetal. “Não podemos afirmar que existam riscos ambientais nesse processo porque as máquinas utilizadas são dedicadas e há um grande controle dos feixes de radiação de íons”, assinala o professor.
Ele destaca ainda que as energias envolvidas em tais processos são muito baixas e com padrões calculados, não havendo riscos ao meio ambiente nem à saúde humana. “Não temos indícios de que faça mal, embora não tenhamos estudos conclusivos a respeito”, pondera. De acordo com Dias, seria necessário observar uma mesma população por um período de 200 anos ou mais para ter a plena certeza dos efeitos da radiação. “Sabemos que quando um corpo é atingido por radiação ionizante, há modificação das células”, admite. Os efeitos biológicos desse tipo de radiação, portanto, não dependem apenas da dose absorvida (Gy), mas das características da radiação ionizante e da sua capacidade de produzir íons e dissipar energia em sua trajetória no meio ou tecido.
No exterior
Na Europa, a utilização de radiação ionizante para tratamento de alimentos baseia-se na Diretiva 1999/2/ da Comunidade Européia. Esta lei aproxima as legislações dos Estados-Membros respeitantes aos alimentos e ingredientes alimentares tratados por radiação ionizante. Ela abrange aspectos gerais e técnicos para o processo de ionização e rotulagem dos alimentos ionizados, bem como as condições de autorização dos alimentos ionizados. Conforme a diretiva, apenas serão autorizados tratamentos por radiação ionizante se existir uma necessidade tecnológica razoável, não apresentarem riscos para a saúde, resultarem em benefício dos consumidores, não forem utilizados como um substituto para as práticas de higiene e saúde ou boas práticas de produção. Todos os alimentos que recebem tal tratamento devem ser rotulados e identificados. E para poder ser incluído na lista de produtos autorizados para ionização, o alimento precisa de parecer favorável do Comitê Científico para a Alimentação Humana.
Mesmo com a diretiva, existem diferenças entre os países. Bélgica, França, Itália, Holanda e Reino Unido são os únicos países da União Européia que permitem irradiação em produtos como ervas aromáticas secas, especiarias e condimentos vegetais, mas em baixas doses.
Até 1998, o Comitê tinha opinião favorável à irradiação de frutas, vegetais, cereais, raízes tuberosas, condimentos e temperos, peixes, moluscos, carnes frescas, frango, queijos, goma arábica, caseína, ovos brancos, flocos de cereais, farinha de arroz e produtos derivados de sangue. Porém, enfatizava que a irradiação em alimentos não poderia ser usada para encobrir a má higiene dos mesmos.
Em abril de 2003, o Comitê revisou sua opinião a respeito do uso dessa técnica. Confirmou que apenas doses específicas de radiação e por classes de alimentos deveriam ser endossadas, para adequação toxicológica e nutricional. Assim, cada Estado membro deverá ter autorizações nacionais para o uso da irradiação até que uma lista completa de produtos seja autorizada em toda a União Européia. O Comitê Europeu para Normalização (CEN) padronizou um determinado número de métodos analíticos para dar suporte aos países membros.
Argumentos contra a radiação
Existem pelo menos uma dúzia de ONGs européias contrárias à aplicação de radiação ionizante em alimentos. Um dos argumentos que elas apresentam é que a técnica não serve para prevenir doenças que possam ser transmitidas por meio de alimentos, mas sim para mascarar péssimas condições sanitárias de estabelecimentos onde se abatem e fazem pré-processamento de produtos animais.
Outro argumento contrário é que a radiação forma novas espécies de substâncias químicas nos alimentos, conhecidas como suspeitas de provocarem câncer e defeitos de nascimento, destruir vitaminas e outros nutrientes essenciais, corromper o sabor natural, o odor e a textura dos alimentos. De acordo com este ponto de vista, uma ampla gama de problemas de saúde tem sido observada em animais nutridos com alimentos irradiados, como morte prematura, mutações, defeitos de nascimento ou morte no nascimento, hemorragias internas fatais, danos em órgãos, disfunções do sistema imunológico, retardo no crescimento e deficiências nutricionais.
Existem ainda as questões da poluição do ar e da redução da segurança ocupacional dos trabalhadores que atuam em operações de irradiação, além de argumentos econômicos. A ONG norte-americana Public Citizen (Cidadão Público) alega que pequenos produtores rurais temem a migração de operações de agronegócios para países onde os custos de produção sejam mais baratos e haja maior segurança ambiental e à saúde.
Outra queixa dos opositores ao uso da ionização em alimentos diz respeito à dose. Um estudo do professor Mitsuko Ukai, do Departamento de Ciência dos Alimentos da Universidade de Hokkaido, no Japão, revê as técnicas de Ressonância Elétrica (Electron Spin Ressonance) por meio do estudo das propriedades dos radicais induzidos por radiação. Ukai recomenda que a dose de irradiação, tanto por ondas eletromagnéticas quanto por raios de partículas elementares, seja reduzida abaixo dos níveis recomendados pelos padrões da FAO, atualmente na média de 10 KGy.
Por Cláudia Viegas, 27/06/2006.