A superfície do Aterro Mantovani é um mostruário da Era Industrial. Pontas de fitas magnéticas, fraldas descartáveis, pedaços de plásticos, papéis e tecidos de cores variadas, substâncias gosmentas e líquidos de tons e cheiros metálicos afloram da terra, como se fossem expelidos. Lá embaixo, em suas entranhas, pelo menos 221 mil toneladas de resíduos industriais de todos os tipos se misturam, numa sinistra sopa de letras da tabela periódica.
Em cima, uma lúgubre lagoa preta de 110 metros por 40, e 1 metro de profundidade, exibe a céu aberto 15 mil toneladas da chamada borra oleosa, resíduo de óleo queimado em diversos processos industriais. Considerado um dos maiores passivos ambientais do País, o aterro, que operou legalmente entre 1977 e 1987, recebeu o lixo de pelo menos 62 indústrias, incluindo algumas das maiores do Brasil e do mundo.
No fatídico dia 11 de setembro de 2001 (o do atentado contra as torres gêmeas), 48 dessas empresas firmaram com o Ministério Público um Termo de Compromisso (TC), prometendo conter a contaminação do lugar e buscar uma solução final para o problema. Outras 14, que representam 51% dos resíduos, segundo os registros do aterro, ficaram de fora, e são objeto de ação civil. Entre essas está a Petrobrás, que tinha como contratada a Ibrasol, que enviou 36% dos resíduos depositados no aterro, de acordo com esses registros (que listam “apenas” 140 mil toneladas).
As empresas formaram um comitê, contrataram a Geoklock Consultoria e Engenharia Ambiental e, nesses quase cinco anos, investiram R$ 9,5 milhões em obras para conter a contaminação do lençol freático. O aterro se situa numa região de sítios do município de Santo Antonio de Posse, 150 quilômetros ao norte de São Paulo. De 2001 para cá, sete empresas desistiram do acordo, alegando problemas financeiros ou que sua cota não condizia com sua real responsabilidade.
As outras 41 seguiram em frente, e amanhã devem endossar, na sede do Ministério Público Estadual em São Paulo, novo aditamento ao TC, no qual se comprometem a investir outros R$ 8,5 milhões nos próximos dois anos, para remover aquelas 15 mil toneladas de borra oleosa da lagoa e transportá-las para uma indústria de cimento certificada pelos órgãos ambientais, que a utilizará como combustível em seus fornos. A lagoa será impermeabilizada com argila dos lados e por cima, e aterrada.
Toda essa operação consumirá 90% do dinheiro. Os outros 10% serão gastos numa investigação mais detalhada dos produtos depositados no aterro. O levantamento servirá de base para uma proposta de solução final, com recuperação total da área, que exigirá outros R$ 50 milhões a R$ 100 milhões e 10 a 15 anos, estima o geólogo Ernesto Moeri, presidente da Geoklock.
A idéia é devolver à natureza o Sítio Pirapitingüí, onde está localizado o aterro, drenando completamente a “pluma contaminante” que se alastrou pelo lençol freático e impermeabilizando as valas onde estão depositados os resíduos - a maior parte dos quais deverá ficar enterrada lá para sempre. “Queremos tirar o mínimo possível”, antecipa Moeri.
A estratégia gera desconfiança na vizinhança. “Achamos que essa proposta de tirar a borra oleosa é mais uma forma de empurrar com a barriga”, impacienta-se Sebastião Cetin, morador de um dos quatro sítios vizinhos. “Tira um caminhão por ano, tá tirando, né?” completa sua irmã Cleide.
Délcio Rodrigues, diretor do Instituto Ekos Brasil, organização não-governamental custeada pela Geoklock e outras empresas e instituições, compreende a ansiedade dos moradores. “Fomos lá e explicamos por que a remoção não é a melhor opção, mas a reação é natural: ‘Not in my backyard (não no meu quintal)’”, diz Rodrigues, ex-diretor do Greenpeace. Para o ambientalista, a remoção implica riscos de acidentes no transporte e apenas transfere o problema para outro lugar, onde os resíduos teriam de ser depositados ou incinerados, causando poluição do ar.
Daniela Buosi, gerente do programa Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Solo Contaminado (Vigisolo), do Ministério da Saúde, também vê com preocupação a idéia de se remover todo o lixo tóxico do aterro: “Caminhões entrando e saindo durante dois anos com material contaminado pode ter riscos para a saúde.”
A advogada Katy Corban, do Instituto Brasileiro de Direito Ambiental (Ibrada), uma das defensoras da retirada de todos os resíduos, rebate: “Existem meios de fazer a remoção de forma segura, e levar esse material para local apropriado.” Estudo da Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos, feito a pedido da prefeitura de Santo Antonio de Posse, calculou os custos da remoção total entre R$ 155 milhões e R$ 173 milhões. “O ideal seria a remoção total, mas é preciso entender os componentes ambientais, sociais e econômicos”, pondera Lúcio Flávio Lima, gerente da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) em Campinas.
A Cetesb estima que todo o sítio de 25 hectares - incluindo resíduos depositados pela Rebrasoil, usina de re-refino de óleo que operou ao lado do aterro - contenha 326 mil toneladas de resíduos. É o equivalente a mais de três porta-aviões Ronald Reagan, a maior máquina de guerra do mundo, com 340 metros de comprimento, 120 aviões e 6 mil tripulantes, que pesa 99 mil toneladas.
O aditamento de amanhã é visto como um avanço importante pelo Ministério Público. “É a primeira vez que se está falando em tirar coisas de lá”, diz a promotora Luciana Guimarães, de Jaguariúna. “Na hora em que virmos pelo menos um caminhão tirando coisas de lá, renovaremos nossas esperanças.” Segundo Luciana, “o MP tem optado pela via consensual, porque a ação civil já tramita há muito tempo e não há sentença”. A ação, contra as 14 empresas que não aderiram ao TC, foi aberta em 2001. Processos desse tipo podem durar 30 anos.
Para as empresas, isso não tem sido sem custo. “É muito difícil justificar esse gasto perante as diretorias e acionistas”, observa Claudio Guedes, gestor do comitê das empresas. As que ainda mantêm o compromisso, responsáveis por 41% dos resíduos, arcam com a parte das que pularam fora. No rateio, cada empresa paga uma cota proporcional ao volume de resíduos depositados no aterro, segundo registros entregues pelo seu dono, Valdemar Mantovani, ao Ministério Público. A cota é multiplicada por 2,5, para cobrir as que não estão participando.
Algumas das que vão pagar agora pela remoção da borra oleosa nada têm a ver com ela. “Tudo isso se vai discutir no momento em que se definir com a Cetesb como será a remediação”, prevê Guedes, referindo-se à solução final de recuperação do aterro. As empresas que estão arcando com os custos acham que o Estado deveria assumir a cota de 59% das que não pagam. Elas argumentam que tinham autorização para enviar os resíduos para o aterro, e se ele não os tratou corretamente, foi por falha de fiscalização. Moeri vai mais longe. “Se fosse na Europa, o governo pagaria a conta”, diz o dono da Geoklock, suíço de nascimento. “Na Suíça, o governo entraria com 90% dos gastos e as empresas, com 10%.”
Brandindo a lei, que prevê responsabilidade integral de cada empresa pelo destino final de seus resíduos, a Cetesb já disse que não botará a mão no bolso.
Empresa diz que qualidade da água melhorou
Valdemar Mantovani, criador do aterro e dono do Sítio Pirapitingüí, põe em dúvida a eficácia do trabalho da Geoklock. Ele diz que as barreiras hidráulicas colocadas pela empresa - que “sugam” a pluma de contaminação que se move lentamente pelo lençol freático - não estão funcionando, e que líquidos contaminados já as atravessaram e poluem a nascente de uma lagoa do sítio. A Geoklock nega. A empresa diz que retira amostras dessa nascente e de outras seis águas superficiais a cada seis meses, e de mais de 50 poços na região a cada ano. “A qualidade das águas subterrâneas já melhorou substancialmente”, garante Ernesto Moeri, presidente da Geoklock. “Não constatamos contaminação nos corpos de água”, confirma Lúcio Flávio Lima, gerente da Cetesb em Campinas.
Em 1977, Valdemar Mantovani, então com 37 anos e o primário completo, era sócio em um caminhão de transporte de combustível, quando lhe propuseram remover borra oleosa para a Vasoil, subsidiária da Refinaria Manguinhos que fazia o re-refino do óleo usado. A firma lhe adiantou o dinheiro para comprar um caminhão e o Sítio Pirapitingüí, de 25 hectares.
Mantovani obteve a autorização 005/1977 da Cetesb para depositar os resíduos no sítio, a céu aberto. “Não havia nenhum aterro no Brasil. Jogavam resíduos nos rios”, recorda ele. “A Cetesb passou a recomendar às empresas, por escrito, que contratassem meu aterro.”
Tudo corria bem até que, em 1981, notificação assinada pelo então superintendente de Resíduos Sólidos da Cetesb, José Francisco Furquim de Campos, advertiu que o aterro tinha sido autorizado a receber borra ácida e Terra Füller (argila usada em transformadores), não outros resíduos líquidos que estava recebendo.
“Queriam criar dificuldades para vender facilidades”, analisa Mantovani. Furquim veio visitá-lo em seu escritório em Jaguariúna (134 quilômetros ao norte de São Paulo), onde hoje ele mora, aos 66 anos. Furquim, já falecido, explicou que podia obter na Cetesb a licença para um aterro industrial, de acordo com as novas normas, mais rigorosas. E lhe propôs uma sociedade. “Aceitei na hora”, conta Mantovani.
Nascia a Central Técnica de Tratamento e Disposição de Resíduos Industriais Ltda. (Cetrin). “Fluíram as facilidades”, narra o empresário. “Veio tudo o que você pensar.” Fernando Golias, até então fiscal da Cetesb, veio trabalhar no aterro. Com a garantia de não ter problemas com a Cetesb, 62 empresas - incluindo gigantes como Petrobrás (por meio da contratada Ibrasol), Johnson & Johnson, Rhodia, Basf, Cargill e Texaco - passaram a enviar seus resíduos para o aterro.
Em 1985, um dos poços de monitoramento do solo acusou a primeira contaminação. Os resíduos tóxicos começavam a vazar dos tambores e valas para alastrar-se pelo lençol freático. Furquim apresentou a solução: Mantovani devia criar, sozinho, nova pessoa jurídica. No ano seguinte, surgiu o Aterro Industrial Mantovani. “Era para pôr a culpa só em mim”, interpreta o empresário. “Estou aqui pagando o pato.” Em 1987, a Cetesb interditou o aterro. A partir daí, Mantovani conta que investiu R$ 100 mil em obras para impedir o alastramento da contaminação no subsolo.
Num terreno ao lado, dentro do sítio, Mantovani abriu a Rebrasoil, dedicada ao re-refino de óleo. Em 2001, a usina foi interditada pela Cetesb, sob acusação de que o resíduo do re-refino estava sendo enterrado no sítio. Mantovani garante que todo o resíduo era mandado para a Estre, empresa de tratamento de resíduos de Paulínia, da qual guarda até hoje os manifestos de carga. Condenado a multa de R$ 90 milhões, Mantovani, alvo de 44 ações, ficou com os seus sete bens indisponíveis. Na ação criminal, ele foi absolvido em maio de 2004.
(Por Lourival SantAnna/
Estadão, 26/06/2006)
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