Para encontrar floresta intacta em Mato Grosso, é preciso viajar muito. De
preferência para o extremo norte do estado, próximo à divisa com o Amazonas
ou com o Pará, onde os governos estadual e federal apressam-se para criar
unidades de conservação antes que o estrago da exploração madeireira seja,
ali também, praticamente irreversível.
Mas nas duas esferas de governo, boas propostas para proteção de áreas
importantíssimas para conservação da biodiversidade têm sido fortemente
barreiradas pela interferência dos deputados estaduais de Mato Grosso. Em
relação à criação do Parque Nacional do Juruena, com quase dois milhões de
hectares, os deputados perderam. Eles tinham uma proposta de transformar
parte da área em floresta estadual, mas a idéia foi sepultada com a criação
do parque nacional por decreto em 5 de junho. Agora, a expectativa é de que
os deputados dêem o troco, e logo. Mas no Parque Estadual do Cristalino.
Criado no ano 2000 e sem plano de manejo até hoje, o parque têm problemas
sérios de delimitação. São extra-oficias. No papel, está tudo certinho. Na
prática, não. Tudo porque o parque nasceu com 66.900 hectares e crescentes
assentamentos rurais no entorno, uma área conhecida como Gleba Divisa.
Trata-se de uma região cujo domínio legal ainda está em aberto. E por não
se saber quem tem direito a titular as terras, se é o estado ou o governo
federal, a região ficou exposta a posseiros de todas as espécies, que, desde
então, chegam aos montes em ônibus e caminhões lotados.
Essas ameaças de invasão justificaram a pressa do estado e de organizações
não governamentais locais em ampliarem o Cristalino. Mas ao levarem essa
proposta à Assembléia Legislativa, os deputados alegaram que a área é
importante para ocupação e para o desenvolvimento rural no norte de Mato
Grosso. Se foi difícil engolir esse argumento, talvez fique mais fácil ao
saber que o irmão do presidente da Assembléia Legislativa, deputado Silval
Barbosa, é posseiro dentro da área do parque do Cristalino -um dos redutos
eleitorais dele e de outros parlamentares.
Atalho
Diante da negativa da Assembléia Legislativa, técnicos da atual Secretaria
Estadual de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema) elaboraram um projeto de
criação de outro parque estadual, o que não depende de qualquer parecer dos
deputados. Sendo assim, em 2001 foi criada uma área de aproximadamente 120
mil hectares, contígua à unidade, conhecida como Parque Estadual do
Cristalino II. “São dois parques oficialmente, mas tratamos como se fossem
um”, diz Eliane Pena, gerente de monitoramento e administração de unidades
de conservação da Sema.
Os parques Cristalino I e II apresentam uma rica diversidade, como floresta
densa, áreas inundáveis, campos rupestres e serras. “Tantos ambientes
favorecem o surgimento de grande variedade de fauna e flora”, conta Eliane
Fachim, superintendente de Biodiversidade da Sema. Dentro dos cerca de 185
mil hectares das duas unidades já foram encontrados mais de 500 espécies
de aves. Além disso, o parque é importante como barreira para as frentes de
desmatamento. Faz limite com a base militar da Serra do Cachimbo, controlada
pela Aeronáutica, e com as recentes unidades de conservação criadas no sul
do Pará pelo governo federal, formando um mosaico de áreas protegidas.
Paliativos
Mas isso não diminuiu a pressão sobre a região. Enquanto o Incra dividia o
restante da área da gleba para assentamentos e os deputados tentavam
apresentar uma infinidade de propostas para reduzir a área dos parques, a
Justiça foi chamada. Em dezembro de 2002, o juiz federal Julier Sebastião
da Silva decidiu acabar com o conflito entre a extinta Fundação Estadual de
Meio Ambiente (A Fema, que foi substituída ano passado pela Sema), que
administrava os parques, e o poder legislativo, nomeando o Ibama como fiel
depositário do parque. Ou seja: na prática, o juiz conseguiu paralisar a
briga dos interesses políticos envolvendo a região do Cristalino, mas o
Ibama não estava preparado para assumir mais essa demanda.
Com isso, a confusão sobre quem estava na administração dos parques se
instaurou. “Tinha gente que achava que não havia nem mais parque”, conta
Fachim. O efeito colateral da decisão foi constatado anos depois, quando
se verificou um aumento significativo no número de invasões aos parques
durante o controle federal do Cristalino. “Até hoje essa questão não foi
definida. Oficialmente, o Ibama ainda está na jogada, mas a Sema é quem
controla o parque, na verdade”. Hoje, uma liminar dá à Sema o controle das
unidades.
Seja através de invasões e conversão da floresta em áreas rurais ou pelo
movimento noturno de caminhões que retiram madeira ilegalmente da unidade
de conservação, em seis anos o parque já perdeu 15 mil hectares de mata. Por
isso, desde o final do ano passado, operações de fiscalização começaram a
multar e a obrigar a retirada dos posseiros. Eles são indenizados apenas
pelo que foi construído antes da criação do parque, mas não pela terra.
“Ninguém que está no entorno do parque ou dentro tem título”, explica
Fachim.
Propostas de redução
Esse foi um dos argumentos usados pela Sema para rejeitar uma proposta dos
deputados para redução do parque, que teria parte de sua borda leste
transformado numa Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) para fins
de ecoturismo. A entrada de visitantes já é uma atividade prevista para a
unidade e o parque não pode ter suas áreas públicas cedidas a particulares
sob qualquer hipótese.
Mas uma das idéias mais perigosas é a nova investida da Assembléia
Legislativa, que quer tirar uma porção de 50 mil hectares do Cristalino II,
livrando a unidade de conservação de áreas degradadas antes e depois da
criação do parque. E isso a área técnica da Sema não aceita.
“Temos uma outra proposta, concordando em diminuir a área do parque, mas
retirando do desenho as áreas abertas antes da delimitação da unidade,
apenas”. A Sema quer unificar os parques e acabar com as fragilidades legais
que os deixam à mercê das propostas dos deputados de Mato Grosso, carentes
das mais preliminares bases técnicas.
Em Alta Floresta, a mobilização da sociedade contra a redução da área do
parque é cada vez mais significativa. O Instituto Centro Vida já liderou
movimentos que deram origem a abaixo-assinados e outras campanhas que, há
anos, têm chamado atenção para esse pedacinho de floresta amazônica com
biodiversidade excepcional. No fim de maio, a Associação Amigos do Parque
do Cristalino apresentou ao governador Blairo Maggi uma carta endossada por
diversas organizações ambientalistas pedindo a manutenção dos limites do
parque, que pode ficar ameaçado de não receber recursos do Programa de Áreas
Protegidas da Amazônia (Arpa), do WWF, se for reduzido.
Entre os presentes ao encontro com o governador, a sensação foi de dúvida.
Maggi não demonstrou firmeza em vetar a proposta dos deputados. “Às vezes o
governo ganha, às vezes perde”, disse. Diante da falta de pulso do
governador, o secretário de meio ambiente de Mato Grosso, Marcos Machado,
se viu obrigado a tomar as rédeas e garantiu aos ambientalistas que o
governo do estado não vai permitir que o parque seja diminuído.
(Por
Andreia Fanzeres,
O Eco, 17/06/2006)