No dia 22 de maio de 1989, durante uma inspeção de rotina, um grupo de
técnicos descobriu o primeiro foco de uma infecção devastadora conhecida
como vassoura-de-bruxa numa plantação de cacau no sul da Bahia. A praga
é mortal para os cacaueiros. Os técnicos, porém, se tranqüilizaram com a
suposição de que se tratava apenas de um foco isolado. Engano. Em menos
de três anos, de forma espantosamente veloz e estranhamente linear, a
vassoura-de-bruxa destruiu as lavouras de cacau na região – e fez surgir
um punhado de explicações para o fenômeno, inclusive a de que o Brasil
poderia ter sido vítima de uma sabotagem agrícola por parte de países
produtores de cacau da África, como Costa do Marfim e Gana. Reforçando,
então, as suspeitas de sabotagem, técnicos encontraram ramos infectados
com vassoura-de-bruxa amarrados em pés de cacau – algo que só poderia
acontecer pela mão do homem, e nunca por ação da própria natureza. A
Polícia Federal investigou a hipótese de sabotagem, mas, pouco depois,
encerrou o trabalho sem chegar a uma conclusão. Agora, dezessete anos
depois, surge a primeira testemunha ocular do caso. Ele conta que houve,
sim, sabotagem, só que realizada por brasileiros.
Em quatro entrevistas a VEJA, o técnico em administração Luiz Henrique
Franco Timóteo, baiano, 54 anos, contou detalhes de como ele próprio,
então ardoroso militante esquerdista do PDT, se juntou a outros cinco
militantes do PT para conceber e executar a sabotagem. O grupo, que já
atuava em greves e protestos organizados na década de 80 em Itabuna, a
principal cidade da região cacaueira da Bahia, pretendia aplicar um
golpe mortal nos barões do cacau, cujo vasto poder econômico se
desdobrava numa incontrastável influência política na região. O grupo
entendeu que a melhor forma de minar o domínio político da elite local
seria por meio de um ataque à base de seu poder econômico – as fazendas
de cacau. "O imperialismo dos coronéis era muito grande. Só se
candidatava a vereador e prefeito quem eles queriam", diz Franco
Timóteo. A idéia, diz ele, partiu de Geraldo Simões, figura de proa no
PT em Itabuna que trabalhava como técnico da Ceplac, órgão do Ministério
da Agricultura que cuida do cacau. Os outros quatro membros do grupo –
Everaldo Anunciação, Wellington Duarte, Eliezer Correia e Jonas
Nascimento – tinham perfil idêntico: eram todos membros do PT e todos
trabalhavam na Ceplac.
Franco Timóteo conta que, bem ao estilo festivo da esquerda, a primeira
reunião em que o assunto foi discutido aconteceu num bar em Itabuna – o
Caçuá, que não existe mais. Jonas Nascimento explicou que a idéia era
atingir o poder econômico dos barões do cacau. Geraldo Simões sugeriu
que a vassoura-de-bruxa fosse trazida do Norte do país, onde a praga era
– e ainda é – endêmica. Franco Timóteo, que já morara no Pará em 1976,
foi escolhido para transportar os ramos infectados. "Então eu disse:
"Olha, eu conheço, sei como pegar a praga, mas tem um controle grande
nas divisas dos estados"." Era fim de 1987, início de 1988. Apesar do
risco de ser descoberto no caminho, Franco Timóteo foi escalado para
fazer uma primeira viagem até Porto Velho, em Rondônia. Foi de ônibus, a
partir de Ilhéus. "Em Rondônia, qualquer fazenda tem vassoura-de-bruxa.
Nessa primeira viagem, peguei uns quarenta, cinqüenta ramos. Coloquei
num saco plástico e botei no bagageiro do ônibus. Se alguém pegasse, eu
abandonava tudo." Nos quatro anos seguintes, repetiria a viagem sete ou
oito vezes, com intervalos de quatro a seis meses entre uma e outra.
"Mas nas outras viagens trouxe os ramos infectados num saco de arroz
umedecido. Era melhor. Nunca me pegaram."
Franco Timóteo conta que, quando voltava para Itabuna, entregava o
material ao pessoal encarregado de distribuir a praga pelas plantações.
A primeira fazenda escolhida para a operação criminosa chamava-se
Conjunto Santana, ficava em Uruçuca e pertencia a Francisco Lima Filho,
então presidente local da União Democrática Ruralista (UDR) e partidário
da candidatura presidencial de Ronaldo Caiado. Membro de uma tradicional
família cacaueira, Chico Lima, como é conhecido, tinha o perfil ideal
para os sabotadores: era grande produtor e adversário político. "Chico
Lima era questão de honra para nós", diz Franco Timóteo. Foi justamente
na fazenda de Chico Lima que foi encontrado o primeiro foco de
vassoura-de-bruxa, em 22 de maio de 1989 – e a imagem dos técnicos, no
exato momento em que detectam a praga, ficou registrada numa fita de
vídeo à qual VEJA teve acesso. Como medida profilática os técnicos
decidiram incinerar todos os pés de cacau da fazenda. Chico Lima ficou
arruinado. Hoje, arrenda as terras que lhe restam e vive dos lucros de
uma distribuidora de bebidas. Informado por VEJA da confissão de Franco
Timóteo, ele lembrou que sempre se falou de sabotagem – mas de
estrangeiros – e mostrou-se chocado. "Isso é um crime muito grande,
rapaz. Os responsáveis têm de pagar", disse.
Os ataques às fazendas, todas situadas ao longo da BR-101, aconteciam
sempre nos fins de semana, quando diminui o número de funcionários. O
grupo tinha o cuidado de usar um carro com logotipo da Ceplac para criar
um álibi: se eles fossem descobertos por alguém, diriam que estavam
fazendo um trabalho de campo. "A gente chegava, entrava, amarrava o ramo
infectado no pé de cacau e ia embora. O vento se encarregava do resto",
conta Franco Timóteo. Para dar mais verossimilhança a uma suposta
disseminação natural da vassoura-de-bruxa, o grupo tentou infectar pés
de cacau numa lavoura mantida pela própria Ceplac. Não deu certo, devido
à presença de um vigia, e o grupo acabou esquecendo, no atropelo da
fuga, um saco com ramos infectados sobre a mesa do escritório da Ceplac.
A operação criminosa, por eles apelidada de "Cruzeiro do Sul",
desenrolou-se por menos de quatro anos – de 1989 a 1992. "No início de
1992, parou. Geraldo Simões disse que a praga estava se propagando de
forma assustadora. Não precisava mais."
Os sabotadores nunca foram pegos, mas deixaram muitas pistas.
"Encontramos provas de que houve sabotagem em várias fazendas", conta
Carlos Viana, que trabalhava como diretor da Ceplac quando a praga
começou a se disseminar. Ele se lembra do saco plástico esquecido sobre
a mesa do escritório da Ceplac numa das lavouras – e isso o levou,
inclusive, a acionar a Polícia Federal para investigar a hipótese de
sabotagem. "Uma coisa eu posso garantir: os focos não foram acidentais",
diz Viana, que deixou o órgão e tem hoje uma indústria de óleo vegetal.
Um relatório técnico e oficial, elaborado pela Ceplac logo no início das
investigações, chegou a considerar a hipótese de que produtores do Norte
do país teriam levado a vassoura-de-bruxa para as plantações da Bahia –
mas movidos por "curiosidade ou ignorância". O relatório afirma que a
chegada à Bahia da Crinipellis perniciosa, nome científico do fungo
causador da vassoura-de-bruxa, "não pode ser atribuída a agentes
naturais de disseminação". VEJA consultou Lucília Marcelino,
pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, em
Brasília, para saber se a história contada por Franco Timóteo seria
viável. "Sob o ponto de vista técnico, sim", diz ela.
A sabotagem produziu um desastre econômico. Derrubou a produção nacional
para menos da metade, desempregou cerca de 200.000 trabalhadores e fez
com que o Brasil, então o segundo maior produtor mundial de cacau,
virasse importador da fruta. Um estudo da Universidade Estadual de
Campinas, elaborado em 2002, estima que a devastação do cacau na Bahia
provocou, nos últimos quinze anos, um prejuízo que pode chegar à
astronômica cifra de 10 bilhões de dólares. Mas, na mesquinharia
política dos sabotadores, o plano foi um sucesso. Em 1992, no primeiro
pleito depois da devastação, Geraldo Simões elegeu-se prefeito de
Itabuna pelo PT – e presenteou os quatro companheiros de sabotagem com
cargos em sua gestão. Everaldo Anunciação foi nomeado secretário da
Agricultura – cargo que deixaria dois anos depois, sendo substituído por
Jonas Nascimento, o outro petista sabotador. Wellington Duarte, também
membro do grupo da sabotagem, ficou como chefe-de-gabinete do prefeito.
E Eliezer Correia ganhou o cargo de secretário de Administração e
Finanças.
Como não pertencia ao PT, Franco Timóteo não ganhou cargo algum na
prefeitura. Em 1994, com o recrudescimento de suspeitas de que a
vassoura-de-bruxa fora uma sabotagem, ele resolveu deixar Itabuna e
mudar-se para Rondônia. O prefeito lhe deu um cheque de 250.000
cruzeiros reais (o equivalente a 800 reais hoje) para ajudar nas
despesas da viagem – paga, para variar, com dinheiro público. A operação
consta da contabilidade da prefeitura, em que está registrada sob o
número 2 467, e informa que o beneficiário era mesmo Franco Timóteo,
mas, providencialmente, não há processo descrevendo o motivo do
pagamento. "É estranho. Se havia algum processo, sumiu", diz o atual
prefeito, Fernando Gomes, do PFL.
Nos últimos anos, Franco Timóteo tem sido assaltado pelo remorso do
crime que cometeu. Um dos atingidos era seu parente. Silvano Franco
Pinheiro, seu primo, tinha uma empresa de exportação de semente de cacau
que chegou a faturar 30 milhões de dólares por ano. "Perdi tudo", conta
Pinheiro, que, há seis anos, ouviu a confissão de Franco Timóteo. "Falei
para ele sumir da cidade porque seria morto", conta o primo. Para expiar
sua culpa, Franco Timóteo também fez sua confissão para outro
fazendeiro, Ozéas Gomes, que chegou a produzir 80.000 arrobas de cacau e
empregar 1.400 funcionários – e hoje mantém ainda um padrão confortável
de vida, mas emprega apenas 100 funcionários, A produção caiu para
15.000 arrobas. "Quando ouvi a história, fiquei com muita raiva. Mas,
depois, ele explicou que não tinha idéia da dimensão do que fazia..." No
fim do ano passado, Franco Timóteo confessou-se ao senador César Borges,
do PFL baiano e plantador de cacau. "A história dele tem muitos pontos
de veracidade diante do que a gente sempre suspeitou ter acontecido",
diz o senador. O governador Paulo Souto, cujos familiares perderam tudo
devido à vassoura-de-bruxa, também ouviu uma confissão de Franco
Timóteo. O senador e o governador, porém, decidiram ficar em silêncio,
segundo eles para evitar a acusação de exploração política.
Os acusados desmentem categoricamente qualquer envolvimento na sabotagem
e dizem até que nem sequer conhecem Franco Timóteo. "Nunca vi esse
louco", diz Geraldo Simões, que, no governo Lula, ganhou a presidência
da Companhia das Docas da Bahia, da qual se afastou agora para concorrer
a deputado federal pelo PT. "Essa história toda é fantasiosa", diz
Eliezer Correia, que continua cuidando de cacau e hoje é chefe de
planejamento da Ceplac, em Itabuna. "É um absurdo", diz Wellington
Duarte, que, no atual governo, foi promovido a um dos chefões da Ceplac
em Brasília. Everaldo Anunciação, que foi nomeado para o cargo de
vice-diretor da Ceplac, diz que não liga o nome à pessoa. Jonas
Nascimento – demitido a bem do serviço público na década de 90, voltou
numa função comissionada, em 2003, no Centro de Extensão da Ceplac em
Itabuna – é o único que admite conhecer Franco Timóteo, mas nega a
história. Talvez seja o único a contar um pedaço da verdade. Ouvido por
VEJA, o publicitário Ithamar Reis Duarte, ex-secretário de Meio Ambiente
na gestão do petista Geraldo Simões, conta que essa turma toda – Franco
Timóteo e os petistas – é de velhos conhecidos. "Era um grupo que se
reunia sempre para planejar ações", diz ele, que participou de alguns
encontros. "Fazíamos reuniões até no meu escritório. Se alguém negar
isso, estará mentindo."
(Por Policarpo Junior,
Veja,
21/06/2006)