Já começou a catástrofe causada pelo
aquecimento global, que se esperava
para daqui a trinta ou quarenta anos.
A ciência não sabe como reverter seus
efeitos. A saída para a geração que
quase destruiu a espaçonave Terra
é adaptar-se a furacões, secas,
inundações e incêndios florestais
O aquecimento global fez diminuir em 20% a calota polar ártica nas
últimas três décadas, reduzindo o território de caça dos ursos-polares.
Muitos deles ficaram sem alimento. A mudança radical de seu habitat
provocada pelo homem está custando caro aos ursos. Recentemente, no Mar
de Beaufort, no Alasca, pesquisadores americanos que há 24 anos estudam
a região identificaram um caso inédito de canibalismo na espécie: duas
fêmeas, um macho jovem e um filhote foram atacados e comidos por um
grupo de machos. Estimativas apontam que os ursos-polares podem
desaparecer em vinte anos.
A história do relacionamento entre o homem e a natureza é marcada pelo
livro Silent Spring (Primavera Silenciosa), de 1962. Nessa obra seminal,
a bióloga americana Rachel Carson alertou pela primeira vez para os
perigos do uso indiscriminado de pesticidas, até então encarados pela
maioria das pessoas como uma bênção da ciência para solucionar o
problema da fome. A descrição dramática feita por ela das primaveras
"sem cantos de pássaros" sacudiu a consciência das pessoas em escala
mundial e serviu de ponto de partida para o moderno movimento
ambientalista.
A nova consciência ecológica abriu caminho para leis de controle dos
pesticidas e para acordos internacionais sobre o meio ambiente, como o
que baniu a produção de químicos responsáveis pela destruição da camada
de ozônio. Quase cinqüenta anos depois, o entendimento sobre o fato de
que "somos parte do equilíbrio natural" – como definiu a bióloga – pode
nos ser útil diante de uma catástrofe global iminente provocada pelo
aquecimento global. Como uma praga apocalíptica, as mudanças climáticas
já semeiam furacões, incêndios florestais, enchentes e secas com tal
intensidade que ninguém mais pode se considerar a salvo de ser
diretamente atingido por suas conseqüências.
Solo que arde
Nas últimas três décadas, o total de terras atingidas por secas severas
dobrou em decorrência do aquecimento global. Na China, segundo o mais
recente estudo da ONU, todos os anos 10 000 quilômetros quadrados em
média – o equivalente a metade do estado de Sergipe – se transformam em
deserto. Na Etiópia, secas anuais condenam 6 milhões de pessoas à fome.
Na Turquia, 160 000 quilômetros quadrados de terras cultiváveis sofrem
com a desertificação gradativa e a conseqüente erosão do solo.
O primeiro estudo rigoroso sobre o aquecimento global foi realizado por
cientistas da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, em 1979.
De lá para cá, ambientalistas e governos debateram, quase sempre aos
berros, questões que lhes pareciam básicas. Primeiro, o grau de
responsabilidade da ação humana. Segundo, se os efeitos das mudanças no
clima da Terra são iminentes. A terceira questão é o que pode ser feito
para impedir que o problema se agrave. O debate, nos termos descritos
acima, está morto e enterrado.
As pesquisas convergiram, além do benefício da dúvida, para a
constatação de que nenhuma influência da natureza poderia explicar
aumento tão repentino da temperatura planetária. Até os mais céticos
comungam agora da idéia apavorante de que a crise ambiental é real e
seus efeitos, imediatos. O que divide os especialistas não é mais se o
aquecimento global se abaterá sobre a natureza daqui a vinte ou trinta
anos, mas como se pode escapar da armadilha que criamos para nós mesmos
nesta esfera azul, pálida e frágil, que ocupa a terceira órbita em torno
do Sol – a única, em todo o sistema, que fornece luz e calor nas
proporções corretas para a manutenção da vida baseada no carbono, ou
seja, nós, os bichos e as plantas.
A baixa do rio
No Oceano Atlântico, a temperatura da água está meio grau mais alta do
que há vinte anos. Esse calor a mais altera o padrão de circulação dos
ventos, provocando deslocamento de massas de ar seco para a região
amazônica. A mudança impede a formação de nuvens, causando a escassez de
chuvas. Em 2005, o fenômeno provocou a maior seca dos últimos quarenta
anos na Amazônia. O Rio Amazonas baixou 2 metros. Mais de 35 municípios
do Amazonas e do Acre ficaram isolados, sem comida, água, luz ou
transporte. A grande seca pode se repetir a qualquer momento.
A vida em uma Terra mais quente
O que fazer para sair dessa crise é bem mais controverso, apesar de
ninguém ignorar que, para evitar que a situação piore, é preciso parar
de bombear na atmosfera dióxido de carbono, metano e óxido nitroso.
Esses gases resultantes da atividade humana formam uma espécie de
cobertor em torno do planeta, impedindo que a radiação solar, refletida
pela superfície em forma de calor, retorne ao espaço. É o chamado efeito
estufa, e a ele se atribui a responsabilidade pelo aumento da
temperatura global.
Há um acordo internacional que estabelece metas de redução, o Tratado de
Kyoto, assinado por 163 países e rejeitado pelos Estados Unidos,
precisamente o país que emite 25% de todo o gás carbônico. É mais uma
razão para não esperar grande coisa de documento. "Kyoto tem um grande
significado simbólico, mas suas metas são muito modestas", pondera o
americano Jonathan Overpeck, da Universidade do Arizona. No protocolo,
que entrou em vigor no ano passado, os países se comprometeram a reduzir
em 5% as emissões de CO2 em relação aos níveis de 1990. "Mesmo que todos
os países interrompessem imediatamente a liberação de gases do efeito
estufa", disse o americano John Reilly, diretor do programa de mudanças
climáticas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), "a
atmosfera já está de tal forma impregnada que a temperatura média do
globo ainda subiria por mais 1 000 anos e o nível do mar continuaria a
se elevar por mais 2.000."
Na realidade, as emissões de gases estão subindo e as previsões são de
mais calor. Como o aquecimento global já é inevitável, cientistas e
ambientalistas têm colocado uma nova questão na linha de frente da
batalha das mudanças climáticas: como se preparar e se adaptar à vida em
um planeta bem mais quente. O tema central desta reportagem não é a
previsão de mau tempo no futuro, ainda que este seja um de seus
destaques. O que se lerá aqui diz respeito, sobretudo, ao impacto do
aquecimento global que já se faz sentir no mundo atual e como teremos de
aprender a viver com isso.
A primeira coisa que precisa ser aprendida é como conviver com a fúria
da natureza injuriada. De acordo com um levantamento da Organização das
Nações Unidas, em 2005 ocorreram 360 desastres naturais, dos quais 259
diretamente relacionados ao aquecimento global. O aumento foi de 20% em
relação ao ano anterior. No início do século XIX, de acordo com alguns
historiadores, dificilmente havia mais de meia dúzia de eventos de
grandes dimensões em um ano. No total, foram 168 inundações, 69 tornados
e furacões e 22 secas que transformaram a vida de 154 milhões de
pessoas.
O sumiço do gelo
O norte dos Andes é a região de maior concentração de glaciares nos
trópicos. Só no Peru existem 3 044 deles. Até a década de 80, essas
geleiras incrustadas no interior das cordilheiras, remanescentes da era
glacial, permaneciam praticamente inalteradas. Um estudo recente da ONU
concluiu que houve uma drástica redução das áreas dos glaciares peruanos
nos últimos quinze anos por causa das mudanças climáticas.
As seis pragas do aquecimento
Seis mudanças de grandes proporções causadas pelo aquecimento global
estão relacionadas a seguir. Todas estão ocorrendo agora, afetam não
apenas o clima mas perturbam a vida das pessoas e têm como única
previsão futura o agravamento da situação. É assustador observar que
eventos assim, de dimensões ciclônicas, sejam o resultado do aumento de
apenas 1 grau na temperatura média da Terra, uma fração do calor
previsto para as próximas décadas.
• O Ártico está derretendo – A cobertura de gelo da região no verão
diminui ao ritmo constante de 8% ao ano há três décadas. No ano passado,
a camada de gelo foi 20% menor em relação à de 1979, uma redução de 1,3
milhão de quilômetros quadrados, o equivalente à soma dos territórios da
França, da Alemanha e do Reino Unido.
• Os furacões estão mais fortes – Devido ao aquecimento das águas, a
ocorrência de furacões das categorias 4 e 5 – os mais intensos da escala
– dobrou nos últimos 35 anos. O furacão Katrina, que destruiu Nova
Orleans, é uma amostra dessa nova realidade.
• O Brasil na rota dos ciclones – Até então a salvo desse tipo de
tormenta, o litoral sul do Brasil foi varrido por um forte ciclone em
2004. De lá para cá, a chegada à costa de outras tempestades similares,
ainda que de menor intensidade, mostra que o problema veio para ficar.
• O nível do mar subiu – A elevação desde o início do século passado
está entre 8 e 20 centímetros. Em certas áreas litorâneas, como algumas
ilhas do Pacífico, isso significou um avanço de 100 metros na maré alta.
Um estudo da ONU estima que o nível das águas subirá 1 metro até o fim
deste século. Cidades à beira-mar, como o Recife, precisarão ser
protegidas por diques.
• Os desertos avançam – O total de áreas atingidas por secas dobrou em
trinta anos. Uma quarto da superfície do planeta é agora de desertos. Só
na China, as áreas desérticas avançam 10.000 quilômetros quadrados por
ano, o equivalente ao território do Líbano.
• Já se contam os mortos – A Organização das Nações Unidas estima que
150.000 pessoas morrem anualmente por causa de secas, inundações e
outros fatores relacionados diretamente ao aquecimento global. Em 2030,
o número dobrará.
Desastre no Alasca
No Alasca, onde as temperaturas médias do inverno aumentaram 4 graus nos
últimos cinqüenta anos, a paisagem se modificou por completo. A camada
de gelo que cobre o mar desapareceu em algumas regiões (nas fotos, o
glaciar Muir com a diferença de 63 anos). No passado, 10 milhões de
quilômetros quadrados do Oceano Ártico permaneciam congelados durante o
verão. Hoje, segundo estudos do Arctic Climate Impact Assessment, a área
congelada é pelo menos 30% menor.
O planeta é gigante, o equilíbrio é frágil
Em escala geológica, a temperatura da Terra sempre funcionou como um
relógio pontual. A cada 100.000 anos, mudanças sutis na órbita do
planeta e na sua inclinação em relação ao Sol provocam uma queda na
temperatura e fazem com que as massas de gelo dos pólos aumentem de
tamanho e se aproximem da linha do Equador. São as glaciações. A última
terminou há 10.000 anos. Foi nessa pequena janela geológica entre o fim
da última era glacial e hoje, marcada por temperaturas amenas, que a
humanidade desenvolveu a agricultura, construiu as cidades e viajou à
Lua.
Nos últimos 120 anos, com o relógio fora de ordem devido à atividade
humana, a temperatura média do planeta aumentou 1 grau. Pode parecer
pouco, mas mudanças climáticas dessa magnitude têm conseqüências
drásticas. Há 12.000 anos, quando a temperatura média era apenas 3 graus
mais baixa que a atual, uma camada de gelo cobria a Europa até a França.
Uma vez alterado, o mecanismo natural do clima, dizem os cientistas, não
é fácil de ser reajustado. "Ao quebrar o equilíbrio climático, a
humanidade mexeu com processos que não conhece por completo e que estão
fora do alcance e da capacidade da mais avançada tecnologia", analisa o
geofísico Paulo Eduardo Artaxo, da Universidade de São Paulo.
Os gases responsáveis pelo aquecimento excessivo são produzidos pelos
combustíveis fósseis usados nos carros, nas indústrias e nas
termelétricas e pelas queimadas nas florestas. Processos naturais, como
a decomposição da matéria orgânica e as erupções vulcânicas, produzem
dez vezes mais gases que o homem. Por eras, garantiram sozinhos a
manutenção do efeito estufa, sem o qual a vida não seria possível na
Terra. Para se manter em equilíbrio climático, o planeta precisa receber
a mesma quantidade de energia que envia de volta para o espaço. Se
ocorrer desequilíbrio por algum motivo, o globo esquenta ou esfria até a
temperatura atingir, mais uma vez, a medida exata para a troca correta
de calor.
O equilíbrio natural foi rompido pela revolução industrial. Desde o
século XIX, as concentrações de dióxido de carbono no ar aumentaram 30%,
as de metano dobraram e as de óxido nitroso subiram 15%. A última vez em
que os níveis de gases do efeito estufa estiveram tão altos quanto agora
foi há 3,5 milhões de anos. O ano passado foi o mais quente desde que as
temperaturas começaram a ser registradas, em 1866. Pelo que se sabe, o
planeta está mais quente do que já foi em qualquer momento dos últimos
dois milênios. Se mantiver o ritmo atual, no fim do século a temperatura
média será a mais elevada dos últimos 2 milhões de anos.
Efetio irreversível?
Sabe-se que o próximo relatório do Painel Internacional de Mudança
Climática (IPCC,) das Nações Unidas, a mais respeitada autoridade em
aquecimento global, a ser divulgado em 2007, depois de revisto pelos
cientistas e pelos órgãos governamentais, deve estimar um aumento na
temperatura média do planeta entre 2 e 4,5 graus até 2050. "Dois graus é
uma barreira psicológica para os cientistas", diz Marc Lucotte, diretor
do Instituto de Ciências do Ambiente da Universidade de Quebec, no
Canadá. Acima desse patamar, a probabilidade de ocorrerem tragédias
muito maiores que as observadas em anos recentes, como inundações,
secas, ondas de calor, furacões e epidemias, aumenta muito.
"Aí será tarde demais para tentar uma volta atrás", afirma o
ambientalista Carlos Rittl, coordenador da campanha de clima do
Greenpeace no Brasil. Na pior das hipóteses, um aumento de 4 graus iria
igualar as temperaturas do Ártico aos patamares registrados há 130.000
anos, segundo um estudo feito com base em análises geológicas por
cientistas da Universidade do Arizona e do Centro Nacional de Pesquisas
Atmosféricas dos Estados Unidos. Nesse passado distante, o nível dos
oceanos era 6 metros mais alto e a camada de gelo do Ártico praticamente
havia desaparecido. "Isso não significa que o nível do oceano subirá
imediatamente a 6 metros quando o termômetro registrar um aumento de 4
graus na temperatura", disse Jonathan Overpeck, um dos coordenadores do
estudo. "Mas a partir de então o processo de derretimento dos glaciares
será rápido e irreversível."
Irreversível? Muitos cientistas começam a acreditar que as mudanças
climáticas chegaram a um ponto de não-retorno. Esse fenômeno leva agora
o nome de tipping point, termo em inglês popularizado como título de
livro por Malcolm Gladwell, escritor badalado de Nova York. Em ciência,
significa o momento em que a dinâmica interna passa a encarregar-se de
uma mudança iniciada previamente por forças externas. Em vários aspectos
já cruzamos o limite sem volta.
A limpeza da atmosfera é tarefa para gerações. O degelo nas regiões
polares está além do tipping point. Obviamente, como conseqüência do
volume de água do degelo, os oceanos continuarão a subir. O aquecimento
dos mares alimentará novos furacões, aumentando a capacidade destrutiva
desses fenômenos meteorológicos. "A violência desses desastres naturais
só pode ser atenuada se houver uma redução na temperatura da água, o que
parece improvável", afirma o biólogo americano Thomas Lovejoy,
presidente do Centro Heinz para a Ciência, em Washington. Recentemente,
Lovejoy constatou um novo efeito desastroso do excesso de gás carbônico:
os mares estão ficando mais ácidos. As alterações no PH marítimo levam à
redução do número de moluscos e plânctons, que estão na base da
alimentação dos ecossistemas marítimos, e ameaçam aniquilar os recifes
de corais. Obviamente, não há muito que se possa fazer para salvar a
vida marinha.
Agonia submarina
O excesso de gás carbônico na atmosfera está tornando os oceanos mais
ácidos. Isso enfraquece os corais, viveiros do mar, e os plânctons, base
da cadeia alimentar subaquática.
Um pacto global pela salvação
O derretimento dos glaciares, concordam os especialistas, já atingiu
dinâmica própria, impossível de ser freada. O impacto do aquecimento
global pode ser percebido em toda parte, mas não há nada mais explícito
que a redução das geleiras e do Ártico. Praticamente todos os glaciares
da Terra estão encolhendo. Dos 150 que existiam no Glacier National
Park, nos Estados Unidos, em 1880, restam cinqüenta, e a estimativa é
que o último desaparecerá até 2030. O mesmo se vê nos Andes, na
Patagônia e nos Alpes. Blocos de gelo do tamanho de pequenos países têm
se desprendido da Antártica e boiado no Atlântico Sul até se dissolver
no mar.
Nos últimos cinqüenta anos, o volume de gelo no Ártico caiu quase à
metade e, nessa velocidade, terá desaparecido totalmente no verão de
2080. Segundo um estudo do meteorologista americano Eric Rignot, da
Nasa, o ritmo do derretimento da cobertura de gelo da Groenlândia dobrou
nos últimos dez anos. Segundo o IPCC, o nível dos mares subiu entre 10 e
20 centímetros no último século. O aumento decorre da combinação do
aquecimento das águas – e sua conseqüente expansão – com o derretimento
do gelo nos pólos e nas montanhas. A estimativa é que suba mais 1 metro
até o fim do século. Caso a camada de gelo da Groenlândia, que chega a
3,2 quilômetros de espessura em alguns pontos, derreta por completo, o
nível do mar atingirá 7 metros. Cidades como Recife e Parati precisariam
de diques de 8 metros de altura para sobreviver.
O cenário é adverso, mas não justifica a inércia. Os recursos para
reduzir os efeitos colaterais do aquecimento são conhecidos.
Basicamente, é necessário encontrar um uso mais eficiente de energia e
diminuir a emissão de gases que provocam o efeito estufa. Cerca de 75%
desses gases vêm do combustível fóssil utilizado na produção de energia,
nas indústrias e nos automóveis. Outros 25% são provenientes das
queimadas – talvez o item mais fácil de consertar. Há preocupação real
entre os governos. Vários países estão reconsiderando a energia nuclear,
que hoje provê 16% do total.
Só a China quer construir 32 usinas até 2020. Os Estados Unidos estão
interessados em produzir combustível para carros usando milho, da mesma
maneira que o Brasil faz com a cana. Mas nenhum país vai muito longe
porque as alternativas custam caro e os riscos para a economia são
altos. Campanhas de ONGs e ambientalistas propõem que cada pessoa faça
sua parte, como deixar o carro na garagem alguns dias por semana. São
atitudes louváveis, mas de pouco efeito prático. "São necessárias
grandes estratégias e investimentos pesados para transformar o modo como
o mundo viveu nos últimos vinte anos", define o americano John Reilly,
do MIT. Por isso, frear o ritmo do aquecimento global exige o
envolvimento de governos.
Não é o caso de pôr todos eles a negociar, como ocorreu em Kioto, e
convencê-los de que é hora de ajudar o planeta. Haveria tantos
interesses divergentes que um consenso seria praticamente impossível.
"Na realidade, para resolver o problema do efeito estufa bastaria um
acordo entre as dez ou vinte maiores economias", diz David Keith,
presidente do Conselho de Energia e Meio Ambiente do Canadá. Trata-se
dos maiores poluidores e também são países que têm tecnologia e dinheiro
para mudar o padrão energético.
Os maustripulantes
Os seres humanos se adaptaram aos novos ambientes – essa é a chave do
sucesso evolutivo da espécie. Mas um mundo mais quente pode ser cheio de
surpresas – a maioria delas desagradável. Há quatro anos, os canadenses
precisaram se acostumar com a visão de urubus no verão, um fenômeno
inédito. Esses pássaros preferem as regiões mais quentes e nunca eram
vistos em latitudes tão altas. No Brasil, uma elevação de apenas 1 grau
reduziria a área propícia para o cultivo do café em 32%. Se o aumento do
calor for de 3 graus, a redução será de 58%. "Em dias com mais de 34
graus, as flores do café abortam os grãos e a produtividade cai
drasticamente", diz Hilton Silveira Pinto, pesquisador da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). "Eu não ficaria surpreso se tivéssemos
de importar café da Argentina."
Com um aumento de 3 graus, haverá uma redução de 20% na produção de
arroz; na de feijão, de 11%; e na de milho, de 7%. A temperatura mais
alta pode tornar o Sul e o Sudeste atrativos para mosquitos que
transmitem doenças hoje típicas da Amazônia e do Centro-Oeste. Centros
de saúde terão de se preparar para atender casos de malária e de dengue.
Em vinte anos, o mar estará 8 centímetros mais alto na costa brasileira.
Essa pequena diferença poderá fazer com que, quando a maré estiver alta,
as ondas invadam o litoral. "Será preciso construir diques em Parati e
no Recife", afirma Afrânio Mesquita, oceanógrafo da Universidade de São
Paulo. "Teremos de aprender com a Holanda, que tem vastas áreas abaixo
do nível do mar." Adaptar-se ao clima mais quente parece ser viável para
a humanidade. Se é o que nos resta fazer, teremos de fazê-lo. Isso não
nos livrará, porém, da condenação das gerações futuras. Seremos sempre
estigmatizados como os tripulantes que por pouco não destruíram o único,
pálido, frágil e azul oásis de vida na imensidão do universo.
Gore, o guru da turma
Há décadas os ambientalistas alertam para os riscos da escalada do
aquecimento global, mas seus argumentos raramente foram ouvidos. Pudera.
As soluções apresentadas para acabar com o efeito estufa passavam por
fechar indústrias, prejudicar economias e sacrificar parte do bem-estar
conquistado pela humanidade ao longo do século XX. Agora que as
conseqüências do aquecimento se abatem sobre várias regiões do globo e
os governos se mobilizam em torno da questão por meio do Tratado de
Kyoto, o ambientalismo começa a conquistar seus mais céticos opositores:
os grandes empresários e investidores. Parte deles acredita que a
produção de energia limpa pode se transformar num excelente negócio, sem
que para isso seja preciso abrir mão das premissas sagradas do
capitalismo. Esses empresários avaliam que, como diz John Doerr, um dos
grandes investidores do Vale do Silício, "a revolução verde pode se
tornar a grande oportunidade empresarial do século XXI".
À frente desse movimento, que vem sendo chamado de nova revolução verde,
está o ex-vice-presidente americano Al Gore. Afastado dos cargos
públicos desde que perdeu a disputa pela Casa Branca para George W.
Bush, em 2000, Gore se transformou num pregador incansável em favor da
salvação do planeta por meio de investimentos em novas tecnologias e
modelos de negócios. Nos últimos anos, ele já fez mais de 1 000
palestras em empresas e universidades, discursando sobre as
conseqüências das mudanças climáticas e o que pode ser feito para
combatê-las. Há três semanas, estreou nos cinemas americanos o
documentário Aquecimento Global, uma Verdade Inconveniente, que tem Gore
como protagonista e é amplamente baseado em suas palestras. A fita tem
ajudado a imprimir a Gore uma certa aura de astro e guru. Ao comparecer
à apresentação do filme em Cannes, no mês passado, ele atraiu mais
atenção do que celebridades como Penélope Cruz e Tom Hanks.
Para provar que investir no verde pode ser um bom negócio, há dois anos
Gore abriu com outros sócios a empresa Generation Investment Management,
um fundo que administra 200 milhões de dólares aplicados em produção de
energia sustentável. Também em sociedade com investidores, comprou por
70 milhões de dólares um canal de TV a cabo destinado a divulgar causas
ecológicas. Negócios como esses seriam impensáveis até poucos anos
atrás, quando a imagem que Wall Street tinha dos ambientalistas era a de
um bando de chatos usando sandálias e rabo-de-cavalo.
(Por Jaime Klintowitz , com reportagem de Duda Teixeira, Gabriela Carelli,
Leoleli Camargo, Rafael Corrêa, Ruth Costas e Thomas Favaro,
Veja, 21/06/2006)