Como estratégia de defesa, a Via Campesina tenta provar que vem sendo alvo de truculência e injustiça durante a investigação após a invasão no Horto Florestal Barba Negra, da Aracruz Celulose, em Barra do Ribeiro, no último dia 8 de março.
Nota divulgada na internet pela Via Campesina e declarações da advogada da entidade, Cláudia Ávila afirmam que a polícia civil, o Ministério Público Estadual (MPE) e a Justiça do Rio Grande do Sul têm usado de brutalidade, autoritarismo e motivações políticas para punir com extrema rapidez os responsáveis pela depredação do Horto Florestal.
"Há cunho político nessa decisão. Existe uma tentativa de criminalização dos movimentos sociais. Temos visto o Judiciário e a grande mídia a serviço do agronegócio. O processo contra as associações é mais uma demonstração disso", avalia a advogada.
Os campesinos explicam, em outra reportagem do
Ambiente Já, que a manifestação foi simbólica, além de ser a única saída encontrada para chamar a atenção da sociedade sobre os problemas ambientais e sociais causados pelo deserto verde no País. O ato destruiu estufas, inutilizou pelo menos 1 milhão de mudas de eucaliptos e causou um prejuízo material aproximado de US$ 400 mil, segundo o presidente da Aracruz, Carlos Aguiar
Em entrevista publicada no site de notícias
Eco Portal, uma das integrantes do movimento das mulheres camponesas (MMC) comenta os motivos pelos quais a ação foi planejada. De acordo com Margarida Silva, nome fictício utilizado para proteção da entrevistada, "as mulheres estão preocupadas com a situação ambiental, o desgaste irreversível da biodiversidade e principalmente pelo avanço do agronegócio que facilita as empresas transnacionais de se apropriarem dos recursos e riquezas naturais que pertencem ao país".
Na primeira dezena de abril, a polícia civil – responsável pela investigação do caso junto com o Ministério Público (MP) – concluiu o processo. No dia 24 do mesmo mês foi a vez do MP apresentar denúncia ao Foro de Barra do Ribeiro. Assinada pelo promotor Daniel Soares Indrusiak, a ação imputou uma série de crimes contra as associações, dentre eles, delitos de dano, furto, cárcere privado, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. A denúncia foi acatada pelo juiz da Comarca de Barra do Ribeiro responsável pelo caso, José Pedro de Oliveira Eckert.
Desde então foram denunciados à Justiça 37 integrantes da Via Campesina, ainda que a polícia civil não tenha conseguido definir quem participou da destruição ao Horto Florestal. O Ministério Público apurou que os denunciados planejavam a ação há pelo menos 90 dias, utilizando como subterfúgio a ocorrência de grande evento de debates políticos e sociais em Porto Alegre, capital gaúcha, no mesmo período, conforme atas de reunião e preparação apreendidas em Passo Fundo.
Paralelo a isso foi solicitado a quebra de sigilo bancário de três entidades: Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais da Região Sul do Brasil (AMTR/SUL), Associação Nacional das Mulheres Campesinas (ANMC) e Associação das Mulheres Trabalhadoras do Rio Grande do Sul (MMTR).
A decisão é contestada pela advogada das Associações. "Não havia razão para pedir a quebra". Além do mais, segundo Cláudia Ávila, "nos documentos apreendidos pela polícia constam a origem e o destino do dinheiro encontrado. Esses documentos estiveram com o Ministério Público, assim como a declaração de renda de 2004 da Associação estadual". No momento, a papelada apreendida nas sedes das entidades "está em poder do juiz de Barra do Ribeiro", acrescenta.
Procurado pela reportagem por duas semanas consecutivas, o juiz de Barra do Ribeiro José Pedro de Oliveira Eckert não quis falar, alegou falta de tempo. Na última tentativa, afirmou, por meio de sua secretária, que não iria se manifestar sobre o caso.
Segundo justificativa do promotor João Francisco Ckless Filho – que no mês de maio substituía Daniel Soares Indrusiak, em férias – "a quebra foi decretada por ser considerada urgente" e "não foi ouvido o MST por achar que a demora iria gerar prejuízo nas informações". E completa que "os princípios constitucionais são valorados com outros direitos. Por isso a garantia do sigilo foi colocada de lado para dar espaço à investigação". Ckless admite a ausência de provas contra as entidades. "O que há são indícios com base na documentação apreendida".
Após voltar de férias, Indrusiak falou com o Ambiente Já. Ele assegura que as denúncias estão baseadas "nas provas efetivas do crime", dentre elas imagens audiovisuais da depredação, fotos, documentação relativa à movimentação financeira das entidades, além de depoimentos de pessoas que presenciaram o ato. Mas ele adianta que o "fato de as pessoas terem sido denunciadas não quer dizer que necessariamente serão condenadas".
O promotor enxerga "eventual recebimento de verba pública e internacional", mas procura deixar claro "não existir juízo prévio de ilegalidade". Segundo Indrusiak, "houve uma movimentação financeira expressiva nos últimos anos, mas não há explicação de onde veio e para que pretexto. São essas dúvidas que precisam ser respondidas para que se possa terminar com a margem de especulação".
Indrusiak justifica a urgência nas informações porque "o público demanda por notícias corretas sobre em quais atividades essa verba está sendo usada". Ao final da entrevista, comenta estranhar algumas críticas da sociedade, que ora julga pela morosidade da justiça, ora critica a própria agilidade nos procedimentos.
Entidade denuncia que o objetivo das investigações é incriminar lideranças
Em
nota publicada no dia 22 de março, a Via Campesina denuncia irregularidades e arbitrariedades que teriam sido cometidas na ação policial, comandada pelo delegado de polícia de Camaquã, Rudimar de Freitas Rosales. Isso demonstra, na avaliação das associações, que o objetivo das investigações policiais não é esclarecer fatos, e sim incriminar lideranças, e dessa forma negar a legitimidade da luta coletiva realizada por mais de 2 mil mulheres contra o deserto verde.
A Via Campesina conta que, no dia em que o delegado Rosales, acompanhado de seis agentes policiais, foi até o prédio da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais, em Passo Fundo, com mandado de busca e apreensão, apreendeu, além de vários documentos, moeda nacional e estrangeira. "Em dólares, segundo a advogada, foi cerca de cinco mil. Tinha também algumas moedas, centavos, troco de viagem, da Guatemala e pesos chilenos".
"Eles chegaram por volta das 14h, arrombaram o portão, invadiram o espaço da associação com armas de fogo na mão e renderam sete mulheres e uma criança que ali se encontravam encurralando-as para o espaço da cozinha", recorda.
Sendo questionadas de forma veemente, as mulheres não estavam entendendo o que se passava. Segundo a advogada, os policiais não haviam se identificado e apresentado nenhum mandado até aquele momento. "Passados vários minutos é que mostraram o mandado de ingresso, expedido pelo Juiz Dr. Sebastião Francisco da Rosa Marinho", afirma o texto divulgado na internet.
Cláudia Ávila afirma que os policiais agiram com desrespeito ao entrar sem mandado de busca e apreensão na sede da Associação Nacional. "A ação se estendeu à sede Nacional, que funciona no andar inferior da Associação estadual e tem entrada por outra rua", relata.
Conforme ela, os policiais arrombaram gavetas, levaram dinheiro, passagens urbanas e interurbanas, CPUs, disquetes e cds. "E esse material foi apropriado pela polícia sem nenhuma ordem judicial". A sede das duas entidades fica no mesmo prédio. Cada uma ocupa um andar.
As entidades já solicitaram ao MP e ao juiz de Barra do Ribeiro para que examinem os documentos apreendidos. "Foi dito no processo que pediu a reconsideração do juiz, para que olhassem os documentos comprobatórios. O MP também teve acesso. Ele ficou cinco dias com o processo e disse que o documento não interessava", comenta Cláudia, acrescentando que as Associações não têm cópia da papelada apreendida.
A advogada desconfia do tratamento dado pela justiça aos movimentos sociais e define como "esdrúxulo" o raciocínio do Ministério Público, que conseguiu "vislumbrar nexo entre a ação das mulheres e a pretensa ilegalidade dos recursos de associações de mulheres camponesas". Além disso, sugere extraordinária desenvoltura do MP, "que 12 dias após o recebimento do inquérito policial – concluído com inédita agilidade – ofereceu denúncia contra 37 pessoas".
O Ministério Público se defende e afirma não haver parcialidade nem outros interesses no caso. "O MP é independente. Dá normas gerais. O procedimento é legal", enfatiza João Francisco Ckless Filho.
Segundo o promotor titular, Daniel Soares Indrusiak, houve uma movimentação financeira expressiva nos últimos anos por parte dessas associações, cuja procedência ainda é obscura. Ele acrescenta não haver uma marginalização dos movimentos: "muito pelo contrário, o Ministério Público sempre garantiu a liberdade. O problema surge quando esses movimentos sociais legítimos são utilizados para a prática do crime. O protesto não pode exceder ao crime", justifica.
Recursos
As associações acusadas de depredar o Horto Florestal entraram primeiramente com recurso de Agravo de Instrumento no Tribunal de Justiça do Estado. A medida foi negada pela justiça na última semana de maio.
Com isso, a advogada Cláudia Ávila informou que outro recurso foi enviado ao TJE. "O Mandado de Segurança foi impetrado pelas associações no dia 1° de junho contra a decisão que determinou a quebra de sigilo".
Um dia depois, "o desembargador relator Dr. Amoré Roque Pottes de Mello decidiu que não daria a liminar por hora, dando o prazo de 10 dias para que o Juiz de Barra do Ribeiro preste informações para instruir o Mandado de Segurança", disse.
A professora de Ética e Legislação em Jornalismo na Faculdade de Comunicação Social da PUCRS, Ana Claudia Nascimento lembra que a Constituição, no artigo 5°, afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de natureza. Isso garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País "a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".
Segundo ela, a lei deve funcionar para todos, ou seja, "o sigilo é igual tanto para pessoa pública quanto para pessoa comum. A não ser que, em alguns momentos eu comprove que a quebra de sigilo é importante para montar um perfil de eventuais vinculações a um interesse público, se aquela pessoa for pública", analisa.
No inciso XII, deste mesmo artigo, a lei assegura o direito e confirma: "é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal". Aqui, segundo Ana Claudia, pode estar embasada a decisão do MP e do juiz de Barra do Ribeiro em decretar a quebra do sigilo.
Há uma máxima no direito afirmando: o que não está nos autos do processo não está no mundo. Ou seja, no momento em que o juiz decidir por um pedido liminar, por exemplo a quebra de sigilo, ele terá que verificar aquilo que foi apresentado no processo, se há ou não indícios de eventual interesse público que justifiquem a quebra.
"Mesmo assim, pelo que está no próprio inciso XII, não há essa possibilidade para sigilo bancário de dados, só para sigilo de dados telefônico". No entanto, a professora admite já estarem abrindo exceções, "por que em razão de quebra do sigilo telefônico, tu chegas à conclusão de que há negociações e que aquilo ali está virando financeiro. Por tabela tu acabas pedindo quebra de sigilo bancário".
Há ainda um outro viés a ser pensado. A própria subjetividade dos juízes, que fundamentam suas decisões em interpretações próprias e acabam decidindo de acordo com ela. Vladimir Passos de Freitas, desembargador federal aposentado e representante, na América Latina e no Caribe, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), diz não acreditar que haja juízes parciais, a favor de um lado ou de outro, como regra.
"Pode haver alguém que ideologicamente é de uma ala radical e que passa isso para as suas sentenças. Isso não é bom. Mas é meio que inevitável, por que a Constituição é enorme e protege tudo de uma forma genérica, e por isso acaba ficando muito grande o grau de subjetivismo". Ele ressalta que em alguns casos judiciais "a mesma coisa tem decisões totalmente diferentes. E aí a pessoa tendo mais sorte de cair com um juiz ou com outro vai ser beneficiada ou prejudicada. Infelizmente é assim", analisa.
Por Tatiana Feldens, 14/06/2006.