Al Gore abraça a bandeira do meio ambiente na luta contra o aquecimento global
2006-06-13
Ele começa suas apresentações com uma brincadeira: "Meu nome é Al Gore. Eu
costumava ser o futuro presidente dos Estados Unidos". Para surpresa de todos
os que acompanharam o drama que cercou a apertada derrota dele para George W.
Bush na eleição de 2000, decidida por um único voto na Suprema Corte, Gore
agora se transformou numa estrela pop.
Em janeiro, Gore brilhou no festival de Sundance, que reúne o melhor da
produção de cinema independente dos EUA. No mês passado, dividiu o tapete
vermelho de Cannes com os maiores astros do cinema mundial. Gore - cuja
derrota para Bush foi associada a sua imagem de candidato sem graça,
entediante, professoral - vem fazendo sucesso nas telas de cinema. E,
paradoxalmente, falando de um assunto aparentemente chato: ciência. Gore é a
estrela do filme An Inconvenient Truth (Uma Verdade Inconveniente),
documentário baseado em sua militância ecológica.
Gore apareceu recentemente na capa de revistas como Wired, especializada em
tecnologia, e Vanity Fair, especializada em celebridades, sempre falando de
sua paixão: a luta contra o aquecimento global. Sua batalha é convencer o
mundo de que a ameaça de mudança climática causada pelo homem é grave e de
que ela exige ação imediata.
Essa militância revelou um lado pouco conhecido da personalidade de Gore: um
homem cheio de paixão, divertido, convicto, totalmente autêntico. Exatamente
o oposto do candidato derrotado em 2000. Para quem sempre esteve a seu lado,
ele parece o mesmo. "Quando Gore está sendo ele mesmo, é fantástico", disse o
senador democrata Chuck Shummer à revista New York. "Mas não foi assim que
ele se comportou como candidato à Presidência. Foi por isso que perdeu."
A ressurreição de Gore levou a New York a estampar em sua capa uma pergunta
que, poucos meses atrás, pareceria uma piada: "Presidente Gore?". Será que,
depois de ter desistido da política em um momento de profunda derrota pessoal,
Gore pode voltar a ser o candidato democrata, em uma tentativa de revanche
sobre a turma de Bush?
Há um diagnóstico quase consensual sobre a campanha de 2000: Gore deixou que
seus marqueteiros, de olho nos milhares de pesquisas de opinião, extraíssem
dele até o último resquício de autenticidade. O colunista da revista Time Joe
Klein afirma, em seu recém-lançado livro, Politics Lost (A Política Perdida),
que os profissionais chegaram a proibir Gore de falar em meio ambiente
durante a campanha. Não que meio ambiente fosse atrair muitos votos. Para a
parcela da população que realmente se importa com o assunto, Gore - e não
Bush - já era o candidato preferido. Mas esse era um tema em que Gore poderia
se mostrar como realmente é. Tanto no entusiasmo quanto na capacidade
intelectual que revela ao falar de algo que conhece de verdade.
Gore não é nenhum novato no debate sobre aquecimento global. Em 1982, quando
quase ninguém no mundo falava nisso, exceto alguns cientistas, o então
deputado Gore organizou o primeiro debate parlamentar sobre o tema. Em 1992,
quatro anos depois de tentar obter pela primeira vez a candidatura democrata
à Presidência, Gore escreveu o livro Earth in Balance, a terra em equilíbrio.
Nele, fez várias previsões sobre catástrofes a caminho por causa do
aquecimento global. Sua idéia era transformar o livro em documentário. A
candidatura a vice-presidente na chapa de Bill Clinton obrigou-o a guardar a
idéia por oito anos. Só depois da derrota para Bush, em 2000, e da desistência
da candidatura em 2004, Gore resolveu colocá-la em prática.
Nesse tempo todo, seu livro havia se transformado numa apresentação de slides
que, sempre com notável sucesso, ele exibiu mais de mil vezes em
universidades, escolas, centros comunitários, associações empresariais,
enfim, onde quer que encontrasse uma platéia disposta a ouvir. Foi numa
dessas platéias que Gore conheceu a ambientalista Laurie David, que o
apresentou ao diretor David Guggenheim. Começava sua carreira rumo a
Hollywood. Agora, o sucesso do filme dirigido por Guggenheim pode reviver a
carreira política de Gore.
Os democratas têm uma chance renovada de vencer as eleições de 2008. Bush, em
seu segundo mandato, não poderá se candidatar. A queda recorde em sua
popularidade (abaixo de 30%) anuncia tempos difíceis para os republicanos.
Além das dificuldades na Guerra do Iraque, Bush desagradou a boa parte de
eleitorado conservador por ter ampliado o déficit público e por ter imposto o
poder federal em questões morais antes regidas individualmente pelos
diferentes Estados americanos. Para completar, a tragédia causada pelo
furacão Katrina em Nova Orleans abalou a imagem de que Bush era um presidente
capaz de tomar as decisões necessárias na hora certa.
O problema para os democratas é o rumo a seguir. Por enquanto, a favorita
para obter a candidatura à Presidência no partido é a senadora por Nova York,
Hillary Clinton, mulher do ex-presidente Clinton. Mas Hillary poderá
reencarnar um velho problema dos democratas: o candidato conquista a maioria
dos votos nas primárias do partido, mas é incapaz de conquistar os votos dos
indecisos nas eleições. Os indecisos são imprescindíveis para qualquer
partido vencer a eleição nos EUA. Para os democratas, eles são ainda mais
imprescindíveis. Enquanto os republicanos podem contar com um ä eleitorado
cativo que reúne cerca de 40% dos votos, os democratas têm apenas 30% de
eleitores fiéis. Precisam conquistar 10 pontos porcentuais a mais que os
republicanos para vencer. Embora Hillary seja um dos astros do partido no
Senado, a maior parte dos estrategistas democratas teme que seu compromisso
com causas polêmicas, como a defesa do aborto, elimine qualquer chance real
de vitória.
O segundo lugar na preferência dos democratas para candidato é John Kerry,
derrotado por Bush em 2002. Naquela eleição, Kerry foi a opção moderada. Não
entusiasmava o eleitor democrata fiel, mas parecia mais palatável aos
indecisos. Foi um fracasso.
O novo Gore tem qualidades indiscutíveis. No terreno do aquecimento global, a
natureza tem provado todas as suas teses. Furacões mais freqüentes e mais
letais, como o Katrina, foram uma das previsões feitas por Gore em seu livro
de 1992. Como Bush e a maioria dos republicanos negam que o planeta esteja
esquentando devido à ação do homem, Gore tem um ótimo tema de campanha para
combater os adversários. Exatamente no assunto sobre o qual mais tem a dizer.
Gore leva vantagem sobre Hillary também na questão iraquiana. Ao contrário da
senadora - que apoiou, como a maior parte da bancada democrata, a ida de
Bush à guerra -, Gore sempre criticou a idéia. Desde o início, afirmou que a
tentativa de derrubar Saddam tirava o foco das verdadeiras necessidades do
combate ao terrorismo.
Se Gore está à esquerda de Hillary quando o assunto é meio ambiente ou a
guerra, está à direita dela quanto à segurança nacional. Durante dois mandatos
como vice-presidente, Gore adquiriu um conhecimento razoável sobre as
necessidades de armamento dos EUA e sempre foi um defensor de intervenções
armadas no exterior, como no Kosovo ou na Bósnia.
Misturando meio ambiente, oposição à guerra e preocupação com o terrorismo,
Gore pode ser o candidato ideal para o seu tempo, aquele que percebe, antes
ou melhor que os outros, quais são as questões realmente importantes de sua
era. Pessoalmente rico e com excelente popularidade entre os democratas, Gore
poderia facilmente arrumar dinheiro para desafiar Hillary nas prévias do
partido. Mas será que ele quer voltar à política?
Inteligentemente, Gore não diz nem que sim nem que não. "A política é algo
que está no meu passado", é uma das respostas que dá quando lhe perguntam. É
um fato. Mas Gore nunca descarta a hipótese de que ela também esteja em seu
futuro. Gore afirma que sua militância em prol do combate ao aquecimento
global não exige que ele seja candidato. "Embora eu não tenha a menor dúvida
sobre a grande diferença que um presidente pode fazer", diz ele.
Gore costuma afirmar que os anos passados longe de Washington lhe ensinaram
muita coisa. Eleito pela primeira vez para o Congresso com 28 anos, passou
quase a metade da vida na política. Longe dela, dedicou-se a dar aulas em
duas universidades, a gerir sua rede de TV a cabo com conteúdo saudável para
jovens e a seu fundo de investimentos ecologicamente correto. Gore diz que
aprendeu ser possível influenciar os rumos do planeta de muitas outras
maneiras além da política. Respondendo sobre se não se arrepende de ter se
afastado dos holofotes de Washington, Gore se mantém dúbio: "Ninguém sente
falta de você, se você não for embora".
Gore está longe de ser uma unanimidade no partido. Boa parte dos democratas
acredita que ele continua sendo o candidato pedante e antipático de 2000. Mas
sua nova roupagem parece estar conquistando cada vez mais entusiastas.
"Estou convalescendo da política", disse Gore em entrevista à revista New
York. "Mas sempre é possível ter uma recaída."
(Por Marcelo Musa
Cavallari, Época, 12/06/2006)
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG74429-6013-421-1,00.html