Preservar é derrubar os mitos. (Entrevista Evaristo Eduardo de Miranda - agrônomo, chefe-geral da Embrapa Monitoramento por Satélite)
2006-06-12
Em 1637, o português Pedro Teixeira deu uma de louco. Juntou 70 barcos, quase 3 mil pessoas e decidiu subir o Amazonas até as nascentes para reconhecer o rio. O trajeto foi dificílimo, índios atacavam, a expedição foi ficando para trás. Mesmo assim Teixeira chegou a Quito, onde foi recebido com galhardia pelos espanhóis e logo em seguida expulso pela Real Audiência, que percebeu o perigo que era ter em suas plagas tal desbravador. O português, precavido que só, registrou toda a viagem. Fez três backups, fincou-se em Belém e ali, sob um marco com as quinas lusitanas, registrou em ata a posse da Amazônia. O tabelião, então, segurou um punhado de terra, jogou-a para cima, perguntou se alguém se opunha ao feito. Como ninguém se manifestou, pegou a terra de novo do chão e a colocou nas mãos de Pedro Teixeira. Portugal era dono da Amazônia.
O agrônomo Evaristo Eduardo de Miranda conta a história como se estivesse presente ao ritual de posse. Encanta-se com o olhar visionário desse lusitano e de outros que encamparam a Amazônia numa época em que mal se sabia do potencial da região. “Hoje, que se sabe, ninguém responde por ela”, afirma, indignado com a falta de planejamento que ainda turva o ordenamento territorial da área. Evaristo é chefe-geral da Embrapa Monitoramento por Satélite, um afluente da Embrapa que atua em pesquisa e desenvolvimento de sistemas de gestão territorial para a agricultura e o agronegócio. Em termos de dia-a-dia, ele busca conciliar propostas de proteção ambiental com produção agrícola.
Como quem sabe o vespeiro em que mexe, Evaristo fala com cuidado da agricultura e da pecuária na região amazônica, sempre em cima de uma agenda positiva. Há queimadas, mas a região é a maior produtora de soja do País. Há desmatamento, no entanto a pecuária já exporta para São Paulo e Minas Gerais. Há degradação, mas também fomentam-se áreas protegidas. “O importante é reconhecer que são muitas Amazônias, vários ecossistemas, os pontos culminantes do País, cabe uma Europa lá dentro”, sintetiza.
Nesta entrevista para o Aliás, entremeada por slides de power point, Evaristo monitora alguns caminhos para conhecer a área. No seu último slide, lá está a tirada de mais um desbravador: “A Amazônia, ainda sob o aspecto estritamente físico, conhecemo-la aos fragmentos. Mais de um século de perseverantes pesquisas, e uma inestimável literatura, de numerosas monografias, mostram-no-la sob incontáveis aspectos parcelados. A inteligência humana não suportaria, de improviso, o peso daquela realidade portentosa”. Euclides da Cunha, em Um Paraíso Perdido.
Nessa semana, o governo anunciou a criação do Parque Nacional do Juruena, entre Mato Grosso e Amazonas, visando conter o avanço da grilagem na região. O parque será mesmo uma barreira protetora?
O Parque do Juruena se justifica tanto pela biodiversidade quanto pela representatividade dos ecossistemas que cobre. Com quase 2 milhões de hectares, é uma área que, apesar de isolada, já sofreu ensaios de instalação de exploração madeireira. Pode ser que, amanhã, todo o entorno seja tomado por lavoura, pecuária, cidades, uma grande ocupação humana, como já aconteceu com o Parque do Itatiaia e o Parque da Serra da Bocaina. Mas ele estará preservado - pelo menos, é o que se espera dos parques. O problema é querer fazer dessas áreas um instrumento de política agrícola, de política fundiária, de política econômica. É uma ilusão criar uma muralha verde que barre o agronegócio e a invasão de terras. Será como uma Linha Maginot (linha construída pelos franceses após a 1ª Guerra Mundial, na fronteira com a Alemanha e a Itália, que não impediu a invasão da França na 2ª Grande Guerra). Os grileiros vão contornar o parque e se instalar do outro lado. É um risco, aliás, criar uma área protegida para que vire uma barreira. Ela não funciona, e ainda acaba sendo invadida, queimada, ocupada.
Isso já aconteceu com outras áreas protegidas?
Sim. No Estado do Tocantins, por exemplo, o número de incêndios nessas áreas foi maior que nas agrícolas. No Acre, as reservas extrativistas estão hoje desmatadas e com criação de gado. A própria Reserva Chico Mendes tem uma região de pastagem gigante. Estima-se que as protegidas, em média, possuem cerca de 7% de seu território desmatado. Mas esse número sobe para 20%, 30% nos Estados em que a ocupação humana é maior. A conclusão é a seguinte: a área protegida funciona enquanto a região está protegida. Quando criamos uma faixa do gênero na Serra do Tumucumaque, onde não há praticamente ninguém, aí pode dar certo.
Com a grande ocupação da Amazônia, há condições de se criar mais bolsões do gênero?
A questão, na verdade, não é criar mais parques. O que chamamos de áreas protegidas da Amazônia já atingiu cerca de 35% do seu território. Ou é terra indígena ou é unidade de conservação de vários tipos, desde áreas de proteção ambiental até estações ecológicas. É uma área razoável. O Ministério do Meio Ambiente, inclusive, não prevê uma demanda tão grande de parques. Já se montou um arcabouço, o essencial foi captado. A grande pergunta que se coloca hoje é o futuro desses 35%.
Falta planejamento para a região?
Desde o descobrimento até 1990, sempre tivemos políticas de ordenamento territorial para a Amazônia. Depois, são outros quinhentos. Os portugueses, assim que descobriram o Brasil, se preocuparam e se interessaram pela região. Foram de uma habilidade geopolítica formidável. Expulsaram os franceses, os ingleses e os holandeses e praticamente desenharam um mapa de Portugal ali. Basta ver o nome das cidades: Belém, Barcelos, Óbidos, Santarém, Alter do Chão, Ourém, Vigia, Guarda. Ainda contrataram os melhores cartógrafos do mundo para entortar os meridianos e fazer com que Tordesilhas passasse na embocadura do Rio Maranhão, fechando assim a entrada para os corsários. Como a Espanha reclamou, entregaram a província de Sacramento, na embocadura do Rio da Prata, mais as Filipinas. O que tinha na Amazônia na época? Ouro? Não tinha nem nunca teve. Mas eles eram visionários, capazes de projetar um futuro com evidências científicas e muita intuição. Dom Pedro II ainda defendeu as fronteiras dos missionários ingleses. O Barão do Rio Branco arrematou o negócio com dois cavalos, e não com um só. Alguém dizer hoje, seja no nível federal ou estadual, que é complicado preservar a Amazônia parece uma grande vergonha.
Mas a Transamazônica foi um bom projeto?
Foi um projeto questionável, mas foi um projeto. No governo militar, o bordão era integrar para não entregar. Então fizeram estradas. Teve o pólo de Carajás, a Zona Franca de Manaus, o Plano de Desenvolvimento Territorial Integrado, do Banco Mundial, da Colonização Agrícola da Amazônia. No governo Sarney surgiu o Ibama, que unificou a Sudepe, o IBDF, a Sema, fez legislação ambiental para agrotóxico, para mercúrio. A partir de 1990, porém, começa uma deriva. A Amazônia caiu em políticas setoriais, não há nenhuma instância supraministerial que cuide dela. A última foi a Secretaria de Assuntos Estratégicos. Depois, isso desapareceu. O Gabinete de Segurança Institucional e o Gabinete Civil deveriam assumir esse papel, chamar os vários ministros e coordená-los. Por mais que seja transversal, um único ministério não dá conta de tamanha diversidade e de tantos interesses. Não há ninguém hoje totalmente consciente da produção de soja, do asfaltamento das estradas, do problema da energia elétrica, do gás boliviano, do crescimento das cidades, da falta de saneamento. Precisamos é fazer um zoneamento ecológico que descontente todo mundo. Sim, porque a solução seria essa. Os índios diriam “não era exatamente o que a gente queria, mas tudo bem”. Os agricultores o mesmo. Os madeireiros idem. Os ambientalistas também. O bom zoneamento vai ter de conciliar esses interesses em condições objetivas.
O olho grande do mundo sobre a Amazônia tem a ver com essa falta de objetividade?
Claro! Se disséssemos o que queremos para a região, o mundo até poderia discordar, mas questionaríamos um canto do mapa. É como se montam parcerias. Nós fazemos a pauta, eles discutem isso conosco. Mas hoje não se sabe para onde vai. A grande chance que tivemos foi a Rio-92, era nossa obrigação chegar lá e apresentar uma proposta para a Amazônia... Por isso essa discussão sobre internacionalização. Só faltava chegar a esse ponto! Já basta o que ela está internacionalizada na prática. A Amazônia custou quatro séculos de vida, de gente, de sangue. O povo de lá tem direito a um desenvolvimento próprio, autóctone, com as características dele.
Ao mesmo tempo que divulgou o parque como uma muralha, o governo anunciou a licença de asfaltamento da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém. Não é um paradoxo, já que a rodovia torna a região ainda mais atraente para a agricultura?
Foi feito um esforço enorme de ordenamento dessa estrada envolvendo o IBGE, a Embrapa, o Ministério do Meio Ambiente, empresários, agricultores. Seu asfaltamento é um ganho. A BR-163 representa, para nós, US$ 600 milhões por ano de perda, de veículos quebrados, de gastos de combustível, de grávida que não chega, de pessoas morrendo. Provavelmente vai aumentar a expansão agrícola em alguns lugares, mas o esforço de zoneamento é localizado, não amazônico. Temos que resolver essa estrada.
É possível conter a conversão da floresta em área agrícola?
Você já deve ter ouvido falar que, na Amazônia, se desmata, depois aquilo vira um deserto e não se produz mais nada. É um mito. Há locais em que isso pode acontecer, mas são poucos. Essa idéia tem a ver com a falta de tecnologia, com a agricultura de índio, de quem não cuida da terra. Mas a cultura de Mato Grosso, por exemplo, é extremamente ecológica, tudo feito em plantio direto. Quase não aram a terra, e as culturas são plantadas na talha, um sistema que preserva muito o solo. OMato Grosso não só produz ¼ da produção nacional de soja como a produtividade do Estado é superior à dos Estados Unidos. Quando temos soja, temos milho e algodão também, porque são sistemas integrados. Mato Grosso é o maior produtor de algodão do Brasil. De três anos para cá, voltamos a exportar o produto graças à Amazônia.
Mas é necessário alta tecnologia para isso.
Sim, a produção de grãos exige maquinário, uma série de instrumentos, que também depende de uma cidade com oficina mecânica, trator, manutenção, assistência técnica. Ou seja, a produção está totalmente ligada à urbanização. A urbanização, aliás, é hoje um processo fundamental para se entender a Amazônia. Temos cerca de 25 milhões de habitantes na região, com 70% deles concentrados em áreas urbanas. Isso mudou o perfil de consumo. Nos últimos 10, 15 anos, houve a consolidação das cidades médias, com 15 mil, 30 mil, 50 mil habitantes. Fora o crescimento vertiginoso das capitais, como Belém e Cuiabá, com seus booms imobiliários. Surgiu uma classe média urbana, que dirige parte de sua poupança para a área rural. Ela está plantando café, cultivando soja. Os seringueiros, hoje, viraram atores secundários. Saíram das reservas e foram viver nas cidades. A produção de borracha no Acre, que era de aproximadamente 23 mil toneladas há cinco anos, caiu para 4 mil toneladas em 2005. O desenvolvimento ambiental, portanto, não está mais na mão do seringueiro, do garimpeiro, do quilombola, do extrativista, do índio, do ribeirinho. Os grandes personagens estão ligados ao mundo urbano.
A expansão da pecuária também é conseqüência da urbanização?
Em parte, sim. Nos últimos 10 anos, o rebanho bovino cresceu 14% em Rondônia, 12,6% no Acre, 8% em Mato Grosso e no Pará. No resto do Brasil, ficou em 0,7% ao ano. O rebanho cresceu muito porque o preço da terra lá é barato, mas também porque a tecnologia evoluiu. As raças estão mais adaptadas ao clima, os pastos também. É possível associar lavoura e pecuária alternando o plantio de soja no pasto, por exemplo. Com isso, aumentou muito a oferta de carne na Amazônia. Churrasco é o programa de domingo. Chegam a exportar para São Paulo e Minas, onde os bois, às vezes, são engordados, têm aqui um “acabamento”. É provável que, nas próximas duas décadas, meio milhão de hectares sejam facilmente incorporados a uma pecuária mais intensificada.
A indústria madeireira continua sendo a grande vilã da devastação da floresta?
Quando se fala em exploração madeireira, há pelo menos quatro situações diferentes. Uma são regiões tradicionais, em que se explora a madeira há mais de 30 anos, a infra-estrutura é boa, mas o estoque florestal é baixo. Há áreas que exploram madeira há uns 10 anos, com estrutura mediana. Outras possuem grande estoque de madeira, mas pouquíssima infra. E existe a fachada atlântica, onde desde o século 17 o pessoal explora madeira cronicamente. No entanto, em termos gerais, de 1998 até 2004, o consumo de toras caiu de 28,3 para 24,5 milhões de metros cúbicos. Produzimos, portanto, mais madeira na Amazônia batendo menos árvores. O rendimento industrial fez com que as empresas usassem melhor essas árvores. Temos 82 pólos madeireiros contra 72 em 1998. Isso dá uma renda bruta de US$ 2,3 bilhões, a geração é de 380 mil empregos. Dificilmente um ministro do Planejamento ou da Fazenda, seja ele quem for, vai abdicar de uma exportação que dá quase US$ 1 bilhão por ano.
O desmatamento e a violência andam de mãos dadas nessa região?
Em Anapu, sim. Ali todo mundo está errado. Há camadas sobre camadas de grileiros, o que toca em um dos maiores motores da violência na Amazônia, que é a questão fundiária. A imensa maioria das terras é do governo federal. E por que ele não as repassa para os Estados? Que política agrária pode fazer o Pará, que não controla suas terras? O governo federal não abre mão disso porque é um poder enorme, a ponto de decretar que determinada terra está protegida, e ponto. Agora, há outros lugares com violência na Amazônia, mas sem desmatamento, proveniente do tráfico de drogas nas fronteiras, das Farc. E há desmatamento que não causa violência alguma, a não ser para a biodiversidade. Tudo é plural, são muitas Amazônias.
Os currículos escolares contemplam essa diversidade?
Ainda existe um simplismo muito grande nos livros didáticos, que acabam veiculando mitos. Mito de que a Amazônia é o pulmão do mundo, por exemplo. O pulmão do mundo são os mares. Mito de que a Floresta Amazônica é uma natureza intocada. Essa floresta foi toda transformada pelo homem no Neolítico, a Amazônia é uma floresta produto de cultura, mais de ¾ do cerrado foi produzido pelo homem, pelo fogo. E é preciso lembrar que são 12, 15 tipos de floresta, mais os cerrados, os lavrados, as áreas de rocha, as montanhas mais altas do Brasil, áreas inundadas enormes, campos abertos de várzea, ilhas. Aliás, o Brasil pertence à Amazônia legal, porque ela é mais do que 50% do nosso território. Também há a diversidade socioeconômica. Tem gente vivendo no Neolítico, período em que não havia metal nem escrita, e outros habitando a Zona Franca de Manaus, as grandes cidades. Existe muita ideologia condenando, muita justiçando. Antes de uma coisa e outra, a gente devia compreender o que está acontecendo lá.
(Por Mônica Manir, O Estado de São Paulo, 10/06/2006)
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