Avanço da soja eleva risco de contaminação de trabalhadores no Piauí
2006-06-12
José Vileno Pereira trabalhou durante quase um ano na Fazenda Confiança, em Ribeiro Gonçalves, no Sul do Piauí. Sua função era fazer a “dosagem” do agrotóxico que dois aviões espalhavam diariamente sobre a plantação de soja. Para desempenhar essa atividade considerada de alto risco, ele não recebeu equipamentos de proteção, nem treinamento. Tinha como colegas de trabalho mais oito homens, que se dividiam entre o abastecimento do avião e a aplicação manual dos produtos químicos.
Hoje, Pereira não trabalha mais naquela fazenda. Depois de sentir fortes dores-de-cabeça e ver suas pernas e o rosto incharem, teve de ser internado durante 26 dias em um hospital de Teresina. “Fiz os exames, mas não deu nada. Voltei pra casa e fiz um novo exame que apontou a intoxicação por agrotóxico”. Ele ainda retornou ao trabalho na fazenda, ficou mais 15 dias, mas foi "encostado". Desde então, passou a receber o auxílio-doença da Previdência Social, utilizando o dinheiro para comprar medicamentos. Tem 34 anos e dois filhos. “Às vezes me sinto melhor, às vezes não. Agora não sei como vai ser ou quando vou poder voltar a trabalhar.”
Pereira é um dos trabalhadores que manipulam diariamente produtos químicos nas fazendas de soja da região de Cerrado piauiense que engloba as cidades de Uruçuí, Ribeiro Gonçalves e Baixada Grande do Ribeiro. No ano passado, após uma palestra no município da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) sobre sintomas de intoxicação por agrotóxico, a população de Ribeiro Gonçalves passou a suspeitar que trabalhadores já mortos ou doentes estavam contaminados. A Federação dos Trabalhadores na Agricultura reuniu 15 óbitos registrados no período de um ano e apresentou a denúncia à Delegacia Regional do Trabalho.
“Tem muita gente doente aqui na região. E são sempre homens entre 18 e 40 anos, apresentando os mesmos sintomas: dor-de-cabeça, fraqueza”, conta Jurandir Rodrigues, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ribeiro Gonçalves.
Após a denúncia, foi criada uma força-tarefa formada por representantes do governo estadual, Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), Delegacia Regional do Trabalho, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e secretários de Saúde de Ribeiro Gonçalves e Baixa Grande do Ribeiro, entre outros órgãos. Houve até mesmo uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília, realizada em novembro do ano passado para discutir o assunto.
Os primeiros exames realizados pelo governo estadual, entretanto, não apresentaram resultados conclusivos. “Houve erros na coleta de sangue feita pela primeira vez. Mas naquelas já foram encontradas algumas alterações que são indício de contaminação”, afirma Francisco Luis Lima, médico da DRT. A falha, segundo ele, foi devido, principalmente, à demora no envio para o laboratório – o que teria as estragado as amostras.
No início deste ano, novos exames foram feitos e o resultado, divulgado em abril, apontou que, entre os 116 trabalhadores examinados, 10% apresentaram quadro de possível intoxicação por agrotóxicos, 18% têm alteração hepática, 3% alteração nos rins. Todos são moradores de Baixo Grande Ribeiro, Ribeiro Gonçalves e Uruçuí e trabalham em fazendas de soja. Dos examinados, 19% têm até um ano de exposição aos produtos químicos, 18% até dois anos e 10% deles apresentaram mais de 10 anos de exposição.
O pesquisador da Universidade Federal do Piauí e integrante do Cerest, Jorginei Morais - que falou em nome da Secretaria estadual de Saúde -, afirma que será necessário fazer exames durante um período de tempo para verificar se há contaminação. “Não podemos concluir se há contaminação com apenas uma bateria de exames. Somente em casos de exposição aguda. Mas nem todos os tipos de agrotóxicos podem ser detectados assim, é preciso comparar resultados. Nessa região há muitos casos de esquistossomose, doença de Chagas e os sintomas são parecidos: cansaço, febre, dor-de-cabeça”, argumenta Jorginei.
Mas ele reconhece que a grande quantidade de agrotóxico aplicada na lavoura de soja traz um risco grande para a região. “Mais cedo ou mais tarde vamos detectar algum tipo de contaminação. Já acompanhávamos essa questão no estado, mas a denúncia dos trabalhadores serviu para sensibilizar os outros órgãos.”
Jorginei explica que os agrotóxicos mais utilizados na lavoura de soja contêm organofosforados, carbamatos ou piretróides. De acordo com dados da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) do Estado de São Paulo, esses três tipos de substâncias podem intoxicar o trabalhador se houver contato do produto com a pele - por respingos ou pelo uso de objetos contaminados - ou ainda por via respiratória e ingestão acidental. Se o nível de intoxicação é agudo, os sintomas surgem logo após a exposição ao produto e podem levar o trabalhador à morte. Dependendo do nível de contaminação, podem aparecer sintomas como dor-de-cabeça, fraqueza, náuseas, tremores no corpo ou dor de estômago. Como esses produtos químicos se acumulam no organismo, após um longo prazo, podem ocorrer câncer, doenças renais ou lesão hepática.
Para se proteger, o trabalhador deveria utilizar luvas e botas de borracha, capas de plástico que cubram todas as partes do corpo, óculos para serem usados no preparo do concentrado, chapéu de palha ou plástico, além de respiradores para proteger boca e nariz. Vale lembrar, contudo, que a região é quente. Cobrir totalmente o corpo e ficar sob o sol o dia inteiro pode causar um desconforto muito grande ao trabalhador. A introdução dos equipamentos de proteção individual, portanto, deveria ser precedida de um processo de conscientização e diálogo com os trabalhadores. O que raramente acontece.
O laudo da terceira bateria de exames feita em abril ainda não foi divulgado pelo governo estadual. Mas o procurador Tranvanvan de Souza Feitosa, do Ministério Público Federal do Piauí, avalia que os indícios de contaminação e o relato dos sintomas apresentados por esses trabalhadores já apontam para “um caso clássico de intoxicação”. Para ele, a situação é ainda mais grave porque os órgãos estaduais não têm fiscalizado a manipulação e o armazenamento desses produtos nas fazendas.
Após tomar conhecimento das denúncias, o Ministério Público Federal, em conjunto com o MP Estadual e o do Trabalho, requisitou à Secretaria de Desenvolvimento Rural (estadual) e à Secretaria de Defesa Agropecuária (federal) informações sobre a fiscalização na região. “A Secretaria de Desenvolvimento Rural enviou dados sobre a fiscalização do comércio de agrotóxico, mas não sobre a atuação nas fazendas. E a secretaria federal respondeu que essa é uma obrigação do governo estadual e que ela só atua em casos de omissão. Então, a minha avaliação é de que há omissão por parte dos dois órgãos”, diz o procurador.
Segundo ele, mesmo as fazendas notificadas pelos órgãos estaduais por irregularidades no uso dos agrotóxicos não têm recebido multas ou punição. Feitosa afirma que a Procuradoria da República no Piauí tem aproveitado os relatórios apresentados pela DRT – durante as ações de fiscalização em que se constata situação de trabalho escravo – para incluir na denúncia crimes ambientais, cometidos pelo fazendeiro, que ameacem a saúde do trabalhador.
Levantamento da organização não-governamental Conservação Internacional-Brasil aponta que o Cerrado é um dos biomas mais ameaçados do mundo. Dos mais de 2 milhões de quilômetros quadrados originais de vegetação nativa restam apenas 20%. E a expansão da atividade agropecuária pressiona cada vez mais as áreas remanescentes. A organização considera que áreas no Sul dos Estados do Piauí e Maranhão possuem expressiva cobertura de vegetação nativa. E são exatamente nessa regiões que avança desde a década de 80 a monocultura da soja.
“Tomando como exemplo municípios localizados na região do Alto Parnaíba, no Sul do Piauí, nota-se que somente em 1993 a soja começou a ser plantada na região e de maneira muito tímida. Já em 2002, a área ocupada por essa cultura já tinha multiplicado por seis a área original e aparentemente essa atividade encontra-se em franca expansão”, diz o relatório. "Sabemos que o consumo de agrotóxicos e fertilizantes cresceu por causa da expansão agrícola, mas ainda não temos dados concretos sobre os efeitos disso e o grau de contaminação do cerrado", avalia Mario Barroso, integrante da ONG.
O MPF cobrou mais empenho dos órgãos estaduais para fiscalizar as fazendas, analisando que a região sofre uma “acelerada ocupação por empreendimentos agrícolas, a qual vem provocando visível adensamento ocupacional na região dos cerrados piauienses, (...) onde é notória a ausência do Estado”. E lembra que, para aumentar a produtividade, as propriedades têm utilizado grandes quantidades de agrotóxicos, “fato já constatado pelo Ibama/PI”.
Segundo Paula Mazullo, chefe da Delegacia Regional do Trabalho no estado, nas visitas às fazendas da região Sul, os auditores verificam há algum tempo a manipulação incorreta de agrotóxicos e armazenamento inadequado das embalagens, o que pode contaminar o ambiente. “São casos em que os trabalhadores não usam equipamentos de proteção e os fazendeiros desrespeitam as normas para armazenar os vasilhames vazios, que não devem ser queimados ou enterrados.” A lei determina que eles sejam enviados aos postos oficiais de recolhimento.
Na época em que foi feita a denúncia, os moradores também relataram a morte de peixes e a suspeita de que os rios Uruçuí Preto e Ribeiro Gonçalves estariam contaminados. E o Ministério Público também recomendou à Secretaria estadual de Meio Ambiente o monitoramento e a divulgação de informações sobre a qualidade do solo e da água da região a cada seis meses.
As primeiras amostras, no entanto, foram enviadas ao laboratório há 15 dias. Segundo Jorginei, integrante da Cerest, no início do ano não foi feita a coleta porque era período de chuvas e isso prejudicaria a análise. “Em novembro, quando o nível dos mananciais estará mais baixo, faremos nova coleta.”
O Ibama não pretende examinar nenhuma amostra de solo ou água da região porque considera que essa é atribuição do governo estadual. “Estamos acompanhando e dando suporte à força-tarefa”, justifica Carlos Moura Fé, diretor-técnico do órgão no estado.
Porém, o saldo das ações de fiscalização da DRT que o órgão acompanhou em fevereiro dá um exemplo do alto número de irregularidades cometidas pelos fazendeiros dessa região. Foram visitadas nove propriedades rurais para verificar se a legislação ambiental estava sendo cumprida. Resultado: seis delas receberam multas por não seguir as normas estabelecidas para a aplicação do agrotóxico, pelo mau armazenamento das embalagens ou por não enviarem os vasilhames usados aos postos credenciados.
“Havia embalagens deixadas a céu aberto ou próximas às casas dos trabalhadores”, conta Judenio Souza, técnico do Ibama que participou das fiscalizações.
Enquanto o poder público realiza longa investigação para verificar os efeitos nocivos do uso do agrotóxico na região do Cerrado e enquanto as responsabilidades forem passadas de mão em mão, a população terá que aguardar para ver implantadas ações que protejam sua saúde. “O estado tem procurado esconder os fatos porque têm medo da repercussão. Mas não adianta o município crescer e nós vermos nossos trabalhadores morrerem ou sem poder trabalhar”, completa Jurandir, do sindicato de Ribeiro Gonçalves.
(Por Fabiana Vezzali - Especial para a Carta Maior, 09/06/2006)
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=11404