Você já se imaginou convivendo com ratos, baratas, moscas e água pobre passando
perto de casa? Não? Pois saiba que é essa não é a descrição da realidade das
paupérrimas vilas africanas. Esse cenário está bem aqui. Faz parte da vida de
muitos santa-marienses. Ainda que a situação da cidade seja considerada uma das
melhores do Estado - 51% das casas têm esgoto tratado -, a população que
precisa conviver com a água pobre a céu aberto está privada de um direito
básico: saúde.
No último sábado (03/06), esse direito foi violado: Glaedes Maria Barbosa Cortes, 46
anos, morreu de pneumonia, dias após cair em uma vala de esgoto na frente de
casa, na Rua Coronel Valença.
A medida que se percorre os bairros de Santa Maria, percebe-se que o caso de
Glaedes por pouco não se repetiu. A catadora Vera Moraes, 44 anos, não esquece
da tarde em que seu filho, na época com 3 anos, caiu na sanga da Rua Alfredo
Viana, na Vila Urlândia. Grávida e com cinco filhos para cuidar, ela só viu
quando pessoas socorreram o menino.
- Foi um desespero. Perdemos tudo o que tínhamos com enchentes. Naquele dia,
por pouco, ele não morre. A tragédia ia ser pior - diz Vera.
E para quem pensa que o problema se concentra só nas casas, basta passar em
frente à Unidade de Saúde Vítor Hoffmann, na Vila Rossi. Há cerca de seis meses,
o esgoto corre a céu aberto, quase entrando no pátio onde pacientes esperam um
médico. Não é à toa que boa parte dos atendimentos feitos no local são de casos
de verminoses.
O médico infectologista Reinaldo Ritzel conta que doenças como leptospirose e
verminoses acompanham de perto a população que não tem acesso ao tratamento de
esgoto.
- Tratei de um menino que teve uma infecção tão grave que precisou fazer enxerto
de pele - conta o médico.
- Minha filha de 1 ano e 4 meses está cheia de feridas no rosto por causa das
moscas do esgoto - conta Sinara Fernandes, 31 anos.
Doenças trazidas pelo esgoto são velhas conhecidas das famílias que moram na
Rua Valdir da Silva. Marli Gomes dos Santos quase perdeu o filho, Maicon, 10
anos, para a leptospirose.
- Tem tanto rato correndo em meio ao esgoto que não dá para acreditar. Eles
invadem nossas casas - conta.
Conforme a Organização Mundial de Saúde (OMS), a falta de saneamento é causa
direta de 80% das doenças dos brasileiros. Estima-se que, para cada R$ 1
investido em saneamento, o governo deixaria de gastar R$ 5 em saúde pública.
Único projeto para aumentar rede não tem data para sair
As notícias para quem não suporta mais ter a sua casa invadida pelo esgoto toda
vez que chove ou já está cansado de esperar pelo fim do mau cheiro dos ratos e
do perigo de transmissão de doenças não são nada boas. A Companhia Riograndense
de Saneamento (Corsan) tem um único projeto para extensão da rede de esgoto em
Santa Maria, que só beneficia quem mora em Camobi. Além de deixar de fora muita
gente, não há a menor previsão para que a obra na Zona Leste saia do papel.
O projeto que deve ser executado em Camobi está orçado em R$ 15 milhões e
depende da liberação de dinheiro do Ministério das Cidades. Se ele for colocado
em prática, será a primeira vez que a cidade terá uma rede de esgoto mista (que
mistura a água da chuva com a que sai dos banheiros e cozinhas das casas).
Mas a própria Corsan admite que como o processo entre a elaboração do projeto e
a execução da obra é demorado, muita gente acaba não sendo beneficiada. Prova
disso é que moradores das vilas São José, Farroupilha, Sarandi, Diácono João
Luiz Pozzobon e Parque do Sol - todas em Camobi - vão ficar de fora desse
projeto. Essas comunidades cresceram desde que o projeto foi feito e, agora,
essa parte da população não terá direito a esgoto tratado.
De acordo com o superintendente regional da Corsan, Elias Pacheco, não existe
nenhum estudo em andamento para a ampliação da rede em outras partes da cidade.
Ele diz ainda que Santa Maria tem um dos melhores índices de números de casas
atendidas com tratamento de esgoto no estado e que fica
difícil contemplar toda a cidade porque a cada dia cresce o número de moradias.
Um drama que só muda de endereço
Ninguém sabe explicar de maneira mais simples o problema da falta de rede de
esgoto na cidade do que quem sofre com ele todos os dias.
- Nosso esgoto vai todo para a sanga. Quando chove, volta tudo pela rua e enche
de cocô dentro de casa. Não dá para ficar tomando cuidado com doença, tem de
ir até de pé no chão, tirando as coisas para fora para tentar salvar o que dá -
lamenta a empregada doméstica Laviane Mello Ferreira, 28 anos.
Para quem vive assim, conviver com o risco de ter uma doença ou perder tudo o
que tem dentro de casa acaba se tornando uma rotina. A moradora da Rua Alfredo
Viana, Márcia Lopes, 34 anos, é exemplo disso. Dia 20 de julho do ano passado,
quando ela chegou do trabalho, encontrou a casa caída e os cinco filhos presos
em meio aos escombros, cobertos do esgoto que transbordou da sanga da Vila
Urlândia.
- Já estamos até construindo a casa mais para trás. É a única esperança que
temos de evitar que o esgoto entre pela casa toda de novo - diz Márcia.
Fedor quando é calor, água podre em casa quando chove
O drama se repete em outros pontos da cidade. Na Vila Rossi, o carpinteiro
aposentado Osmar Nogueira, 64 anos, vê todos os dias os carros que passam pela
Rua Florianópolis atirar água imunda para dentro de sua casa.
- É uma tristeza. Penduramos as roupas na cerca e, quando vamos ver, está tudo
cheio de lodo.
- Não dá para suportar esse cheiro. Temos de agüentar esse fedor o ano inteiro
e, quando fica quente, é ainda pior, mal dá para agüentar dentro de casa. Sair
na rua, então, nem pensar - relata outra moradora da rua, Irondina da Costa, 57
anos.
O drama de Laviane, Márcia, Osmar, Erondina, vai apenas mudando de endereço a
medida que se percorrem os bairros de Santa Maria. São histórias que ganham
novos personagens mas que mantêm a mesma angústia: a de quem vive e vê os seus
filhos crescerem em meio aos ratos, às baratas e às moscas e ao esgoto
escorrendo perto de sua casa.
(Marilice Daronco,
Diário de Santa Maria , 08/06/2006)