Novas liminares mantêm produtores dentro da Reserva Raposa Serra do Sol
raposa serra do sol
2006-06-08
As novas decisões da Justiça Federal de 1ª Instância são vistas como uma seqüência que restabelece a verdade combatendo a pecha de grileiros imposta a não-índios ocupantes da reserva Raposa Serra do Sol. Por outro lado, como reconhecimento da autoridade judicial de que as posses são legítimas. Assim foram as declarações de gestores federais à imprensa, quanto à desocupação da área não encontram respaldo judicial.
Na avaliação do advogado Valdemar Albrecht, patrono das ações, com o deferimento das liminares o juiz proíbe forçar ou permitir que isso seja feito em relação à saída dos proprietários das áreas na Raposa Serra do Sol. De um total de quatro, as duas liminares mais recentes, decididas em 31/05 e dadas ao conhecimento das partes no final da tarde de sexta-feira, 02/06, atendem ao pecuarista Domício de Souza Cruz e ao espólio de Joaquim Ribeiro Peres.
No primeiro caso, o advogado conta que, além dos agricultores, pequenos e médios pecuaristas foram amedrontados e psicologicamente atingidos até saírem de suas posses por se sentirem desamparados sofrendo pressões das mais diversas. “Inclusive se tem informações de que no escritório montado aqui para realizar as negociações, propostas teriam sido feitas às pessoas seguidas da ameaça: se você não aceitar estará sujeito a perder tudo”, disse o advogado.
Valdemar Albrecht informou que a fazenda Conceição do Maú (espólio de Joaquim Peres), é uma propriedade registrada na Junta Comercial de Manaus em 1901, arrolada entre os bens da empresa Silva e Filho. Conforme ele, naquela localidade o Conselho Indígena de Roraima (CIR) instrumentalizava indígenas para criarem embaraços. Nesse cenário, se instalarem nas cercanias da fazenda, cortar cercas e outros pequenos desaforos minando o psíquico da família que se sente desprotegida.
“Os proprietários recorrem à Polícia Civil e esta diz não ter competência para atuar em questões indígenas. Vão à Polícia Federal aonde lhes informam não ser ali o lugar para buscarem proteção por ser crime comum, portanto de competência da Polícia Civil e até hoje as duas instituições não se acertaram na obrigação de atender as ocorrências. Como os indígenas que residem nas proximidades são filiados ao CIR, essa ONG foi colocada no processo e está sujeita a penalização de R$ 50 mil por dia se qualquer indígena filiado à organização perturbar o proprietário”, declarou Albrecht.
AÇÕES – Cerca de 20 proprietários das regiões do baixo Surumu, Maú e do Tacutu ingressaram na Justiça questionando o laudo antropológico da Funai, pedindo para permanecerem em suas terras até que a validade do processo demarcatório da terra indígena Raposa Serra do Sol seja definitivamente resolvida pelo Poder Judiciário.
Quem de alguma forma forçar a saída dos produtores rurais da reserva indígena enquanto prevalecer a decisão liminar, arcará também com o pagamento de multa diária em proporção no valor de R$ 50 mil. O advogado pensa que como os fatos são os mesmos, as futuras decisões poderão ter o mesmo conteúdo.
Ele informou que as ações atacam o procedimento demarcatório e caberá ao Poder Judiciário examinar quais áreas preenchem as exigências da Constituição para serem delimitadas como indígenas. “Entendo que o procedimento feito pela Funai está ferido de morte em função das ilegalidades e nulidades formais e materiais. Terá que ser feita outra, desta vez com a Superintendência do Poder Judiciário”.
O advogado acredita que o laudo da Funai é nulo, segundo a prova judicializada, tanto pela forma utilizada para sua elaboração, quanto pela matéria. “Ele não obedeceu ao devido processo legal administrativo para se fazer e tem falsificações. O que é nulo não convalida. Se cai o laudo antropológico, cai todo o procedimento, a portaria, o decreto. Tudo terá que ser iniciado”, destacou Albrecht.
A proposta do Ibama em criar reserva ambiental sobrepondo outra do Estado, na região Sul de Roraima, esbarra em ditames constitucionais e reflete a negação da União ao princípio federativo do Brasil. A afirmação é do juiz Alcir Gursen De Miranda, mestre em Direito Agrário e presidente da Academia Brasileira de Letras Agrárias.
Na concepção dele, a criação de reservas ambientais ou indígenas não pode ser feita através de decreto administrativo, exceto se for de âmbito estadual. Gursen De Miranda justifica que desde a Constituição de 1891, a primeira orientando a organização do Brasil, as terras devolutas pertencem aos Estados. Esse princípio se mantém até hoje.
Nessa linha de raciocínio jurídico, a União somente terá parte dessa área, segundo o magistrado, se disser, através de Lei, qual a sua dimensão e o que fará nela. “Trata-se de uma previsão constitucional”, enfatizou ao falar ser preciso que o projeto específico, apesar dessa prática não ser adotada pelo Planalto, seja aprovado pelo Congresso.
Essa argumentação é explicitada na orientação expressada no artigo 20 da Constituição Federal de 1988. O inciso segundo estabelece como bens da União “as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em Lei”.
A União, portanto, não poderia definir nem ampliar, administrativamente, reservas ambientais e indígenas. A possível criação da Reserva Extrativista Baixo Rio Branco-Jauaperi tem agravante por englobar quase toda a extensão dos 285 mil hectares de reserva estadual, dentro do Programa de Manejo Sustentável de Roraima (Promasurr).
De acordo com Gursen De Miranda, a sobreposição afrontaria os artigos 23 e 24 da Carta Magna, nos quais está previsto que os Estados também têm competência para proteger, preservar e legislar sobre meio ambiente. “Essa interferência é ilegal, algo que, lamentavelmente, tem sido comum pela centralização de poder pela União”, disse.
PRESSÃO – O juiz comentou que, por “deter a chave do cofre”, o governo brasileiro pressiona os governadores a não reagirem. No caso de Roraima, a situação é mais grave por não ter força política no contexto nacional. “Há uma inversão de direito quando se requer área do Incra. Mesmo na faixa de fronteira, a atribuição é do Estado”, frisou.
NULAS – As demarcações de terras indígenas, afirmou Gursen De Miranda, são “nulas”, por não terem seguido o rito constitucional de criação por Lei. “Em momento algum a Constituição Brasileira fala ser competência do presidente da República. O Estado, portanto, pode requerer as respectivas anulações na Justiça”, opinou.
O Conselho Indígena de Roraima (CIR) não concorda com as liminares dadas pelo juiz Helder Girão Barreto e vai recorrer das decisões. A advogada Joênia Batista de Carvalho informou que tomará as medidas cabíveis em defesa das comunidades indígenas da reserva Raposa Serra do Sol.
Conforme a advogada, apesar de os ocupantes alegarem títulos e posses centenárias na região, a Constituição Federal é clara em declará-los nulos e sem efeito jurídico, sem falar que o direito sobre as terras tradicionalmente indígenas é indisponível, inalienável e imprescritível.
Em relação ao procedimento demarcatório ela recorre à Constituição Federal para dizer que a tarefa é de exclusiva competência da União. Por isso, o procedimento realizado desde a criação do primeiro Grupo de Trabalho, até a homologação da reserva é ato válido não contestado judicial ou administrativamente.
“O procedimento demarcatório foi embasado em procedimentos que a Constituição prevê em relação a terras indígenas, respeitando as questões sócio-cultural, ambiental, antropológica, sociológica, enfim, tudo o que prevê o reconhecimento de uma terra tradicional indígena. O relatório realizado em 1992 é plenamente legal. Mesmo que a ação popular contenha um laudo antropológico contraditório, a ação foi extinta e não tem qualquer efeito administrativo ou jurídico”, declarou a advogada do CIR.
Ela diz que a decisão da Primeira Instância da Justiça Federal contraria o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que já declarou sua competência em reclamações propostas pelo Ministério Público Federal extinguido e suspendendo outras ações possessórias que tratavam de matéria semelhante. Inclusive, de um dos que teve liminar concedida agora, o agricultor Nelson Itikawa.
“Ademais, as ações judiciais que discutem o ato do presidente da República, devem ser processadas e julgadas pelo Supremo. Por esses motivos, o CIR e as comunidades indígenas prejudicadas recorrerão pedindo a suspensão de todas as decisões de Primeiro Grau para ter seus direitos resguardados e que a União através da Funai possa proceder a regular desintrusão e reintegração de posse em favor dos povos indígenas da Raposa Serra do Sol, consolidada e fundamentada em dispositivos constitucionais”, declarou Joênia de Carvalho.
(Por Carvílio Pires e Ivo Galindo, Folha de Boa Vista, 06/06/2006)
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