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2006-06-06
Sem alarde, o governo federal avança no plano de licitar, até julho, duas grandes usinas hidrelétricas: Santo Antônio e Jirau. Foram desenhadas para funcionar no leito do rio Madeira, em Rondônia. Ambas são obras caras (cerca de R$ 20 bilhões), grandiosas (capacidade de 6.500 megawatts) e demoradas (a construção deve levar seis anos).

Conforme quer o governo, as obras teriam início entre 12 e 16 meses após o lançamento do edital. Esses ingredientes tornam o projeto sério candidato ao empreendimento mais polêmico na área de infra-estrutura na região amazônica. Para entender a complexidade da discussão que envolve as usinas do rio Madeira, é preciso, antes, olhar a situação de Rondônia. Por lá inexistem planos consistentes e contínuos para o desenvolvimento. A economia vive de sucessivos ciclos de extração -borracha, cassiterita, café e ouro. A moda agora é o plantio de grãos e a pecuária, atividades que muitas vezes chegam a reboque do corte ilegal de madeira amazônica. Colonos vindos de diversos locais, especialmente do Sul, chegam mais rápido do que o saneamento, a luz, os médicos, as escolas e os empregos legalizados.

É para esse ambiente que as barragens de Santo Antônio e Jirau prometem trazer, pelo menos, os R$ 20 bilhões em investimentos -um terço do orçamento do BNDES para 2006, por exemplo. O banco, aliás, deve ser um dos principais financiadores da empreitada hidrelétrica no rio Madeira. O mais provável, segundo fontes ligadas ao complexo, é que a BNDESPar, braço do BNDES, torne-se sócia do negócio. O tamanho da fatia que caberá à BNDESPar ainda está sendo resolvido. Mas a intenção é que as obras saiam do papel em 2007, sob o carimbo de empreendimento privado. Isso é possível, se a maior parte do dinheiro para levantar as hidrelétricas sai dos cofres governamentais? Sim, é, a partir da formação de uma sociedade de propósito específico (SPE).

A empreiteira que cuidar das obras ficará com 51% das ações e controla as usinas. As estatais que se associarem a ela, por sua vez, dividirão os 49% restantes dos papéis: uma PPP (Parceria Público-Privada) na qual o "público" entra como investidor financeiro e o "privado", pela "expertise", usa pouco capital próprio, mas se firma como sócio operacional. Pessoas ligadas ao empreendimento dão como certa a vitória do grupo encabeçado pela construtora Odebrecht, maior empresa de engenharia e construção da América Latina. Ao lado dela estariam três empresas governamentais: Furnas, Eletrobrás e Eletronorte.

Segundo essas fontes, além da BNDESPar, Santander e BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) também darão força ao investimento. Odebrecht, Furnas e os demais integrantes do consórcio pretendem fazer um "road show" nas próximas semanas, em busca de novos investidores para as usinas. Não descartam a possibilidade de entrar em contato com fundos de pensão ou com interessados em consolidar uma parceria depois de garantida a vitória na licitação.
Necessidade de energia
Estudos do Ministério de Minas e Energia mostram que 83,92% da energia produzida no Brasil tem meios hidráulicos como fonte. Esse número deve cair para 70,99% até 2023. Além disso, 41% do território está isolado quanto às opções energéticas. Se até 2015 fosse implementado todo o sistema defendido pelo ministério, que prevê Santo Antônio e Jirau, o percentual baixaria para 10%.

O Plano Nacional de Energia, que cobre até 2030, deve ser entregue até outubro. Carta obtida pela Folha do ministro de Minas e Energia, Silas Rondeau, endereçada à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, sustenta que os estudos da equipe técnica da área energética demonstram que, a partir de 2010, o crescimento do mercado demandará novos empreendimentos "na proporção de 2.460 megawatts médios adicionais de energia firme a cada ano, para os primeiros cinco anos [2006 a 2010] e de um montante de 15.400 megawatts médios para o período de 2010 a 2015".

Ou seja, se o Brasil crescer a uma taxa entre 4% e 4,5% ao ano, faltará luz, a menos que as fontes produtoras sejam rapidamente incrementadas. A carta é de 20 de dezembro. Como até agora o Ibama, órgão do Ambiente, não licenciou o complexo do rio Madeira, fontes ouvidas pela Folha ligadas ao projeto dizem que Marina Silva fez ouvidos moucos às pressões de Rondeau. Não querendo atrair para si novos problemas, por conta de licenciamento açodado, a ministra calou-se, dizem essas fontes. Evitaria, assim, bater de frente com a ex-titular de Minas e Energia, Dilma Rousseff, defensora do projeto. A Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) também não aprovou o estudo de viabilidade das usinas do Madeira.

Hidrelétricas trazem ameaça à selva e a 1.500 espécies, afirmam ambientalistas
Mesmo que o projeto de construção de duas hidrelétricas no rio Madeira ainda esteja em discussão em Brasília, as empresas Odebrecht e Furnas temem manifestações ambientalistas contrárias. Resolveram adiantar-se aos políticos e doutrinar a população.

A Folha apurou que líderes locais são cooptados para chamar quem estiver interessado em ouvir sobre as usinas. Nos encontros, geralmente realizados em escolas e nos fins de semana, são feitas palestras por funcionários da Odebrecht e de Furnas. Agradam a alguns; causam sarcasmo em outros.

Quem gosta, na maioria, são os jovens brancos e os colonos. Querem progresso, trabalho e oportunidade de "sair do mato". Quem desgosta são os índios (que se consideram espremidos em reservas cada vez mais rodeadas pelos brancos), os ribeirinhos mais velhos, os moradores que participam de organizações de cunho ambiental e os que já foram desapropriados uma vez -na década de 80, também para a construção de usinas- e jamais viram a cor do dinheiro das indenizações.

Os ambientalistas questionam o fato de o Madeira ser um rio com muitos sedimentos. Em poucos anos, resíduos entupiriam as barragens e o nível do rio tenderia a subir, inundando outras casas além das que constam do projeto. Outro dano: cerca de 700 espécies de peixes e 800 de aves estariam ameaçadas, devido às mudanças bruscas em seu habitat.

Os empreiteiros negam essas hipóteses. Seus estudos mostram que os sedimentos são feitos de argila, moles o bastante para passar pelas barragens.

Outro argumento dos ambientalistas é que o Brasil não precisa destinar novos rios de dinheiro, literalmente, para obter mais energia. O país poderia aumentar sua capacidade energética em 30% a 40%. Bastaria aproveitar melhor o que já produz. Essa conversa não encontra eco no Ministério de Minas e Energia. Os técnicos sustentam que o Brasil precisa, sim, de energia nova.

Por fim, recordam, haveria danos à selva. Grileiros -instalados no local, como a Folha pôde comprovar -atrairiam madeireiros, que serviriam como isca aos agricultores e pecuaristas. E aí, adeus à floresta. Viriam as queimadas, os pastos e a soja -muita soja.

Terrenos grilados

A Folha visitou Jaci-Paraná, cidade próxima a Porto Velho e uma das possíveis atingidas pelas hidrovias. Negociou dois terrenos grilados -um, grande, para comércio, "perto da cidade" foi vendido por R$ 22 mil. Outro, menor, "mais para o meio do mato", foi oferecido por R$ 2.500. Vale ressaltar que a transação ocorreu em uma farmácia, a Drogaria São Paulo. O representante dos grileiros, contudo, só atende no balcão quem vai atrás de remédios. Investidores potenciais sentam-se confortavelmente em uma pequena mesa, que fica no meio da loja.

O complexo do Madeira prevê também a instalação de uma hidrovia. Dessa idéia, porém, os ambientalistas gostam. O governo, todavia, não parece estar muito interessado. Pelo contrário. Difícil entender, porque a hidrovia é a parte mais barata do projeto -consumiria algo em torno de R$ 50 milhões dos R$ 20 bilhões.

O argumento dos governantes é que ela incentivaria os colonos do Sul a "subirem o Madeira". Eles se instalariam no meio da floresta e ceifariam, em nome do progresso, o que vissem pela frente.

Ambientalistas têm uma visão menos pessimista. Eles acreditam que a hidrovia é o caminho mais lógico para transportar grãos e similares sem precisar abrir novas estradas por entre as árvores.

As usinas de Santo Antônio e Jirau serão capazes de gerar, juntas, 6.500 MW até 2011. Levando em conta que a energia média consumida por uma família seja de 200 kW mensais, as hidrelétricas do Madeira serão potentes o bastante para iluminar 14,5 milhões de lares por mês.

A obra das duas usinas, dizem Odebrecht e Furnas, levará de seis a dez anos para acabar. Resultará na criação de 14 mil empregos diretos no período. As empresas avaliam que isso é o suficiente para absorver 100% da mão-de-obra ociosa existente no Estado e observam que esse número deve ser multiplicado por três, levando em consideração a geração de trabalho indireto.

Defendem ainda que o projeto tem como base estudos feitos desde 2001 por cinco entidades - todas civis, universitárias e especializadas. Esses documentos, dizem, mostram danos mínimos ao ambiente e a contribuição das duas hidrelétricas para integrar o transporte de cargas entre Brasil, Bolívia e Peru. Além disso, facilitarão o tráfego de mercadorias dentro da própria região Norte, caso sejam instaladas hidrovias no rio Madeira, como descrito no projeto original.

Os rondonienses terão de pagar o preço para a oferta de empregos. O Madeira é enorme e largo. Seria perfeito para uma hidrelétrica, não fosse o fato de que suas quedas-dágua -um dos aspectos mais relevantes para a geração da energia- são tímidas. Por isso, ele terá de ser alargado; barragens serão construídas, uma de 13,9 m e outra com até 15 m.

Cerca de 2.800 famílias ribeirinhas poderão ter de ser levadas para outro lugar, pois suas respectivas casas serão engolidas pelas águas do Madeira. Odebrecht e Furnas dizem que não é tudo isso: 800 famílias acabariam efetivamente transladadas, porque há diferença entre "afetados" e "deslocados". Para onde eles vão? Ninguém sabe ao certo. Como o projeto ainda está no papel, não foi batido o martelo sobre o local dos reassentamentos nem o valor das indenizações.

Ofertas

Segundo vários ribeirinhos entrevistados pela Folha, porém, as coisas estão adiantadas. Já começaram visitas de pessoas que fizeram ofertas por seus terrenos, a título de indenização: R$ 3.000 por uma casa à beira do Madeira.

Supondo verdadeira a proposta, o dono da casa precisa provar que o terreno é dele para receber dos empreendedores os R$ 3.000- algo praticamente impossível em Rondônia. A maioria das terras é invadida ou comercializada por grileiros, muitas vezes debaixo do nariz do Estado. Escritura, papel, assinatura, carimbo de cartório são caras para os padrões locais. A Folha passou três dias viajando pela região. Não encontrou nenhum morador que tivesse os papéis.

Estados e municípios prometem ajudar os ribeirinhos a conseguir os documentos. Querem até participar do empreendimento. São favoráveis ao empreendimento pela capacidade de desenvolvimento que trarão à região.

Sérgio Santos dos Anjos tem 22 anos, vista boa, mão firme para a pescaria, dois irmãos que o ajudam na labuta e uma grande esperança: a construção das usinas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, será o marco de uma virada em suas vidas. "Dizem que a pesca vai acabar. Aí a gente vai ter de procurar pra fora, né?", disse ele à Folha. "Eu não sou contra a usina. Ninguém iria gastar tanto dinheiro pra fazer uma coisa ruim; eles vão trazer emprego. Quando acabarem as obras, a gente se vira."

Luís Vidal Nogueira viveu mais um pouquinho. Aos 56 anos, seringueiro filho de seringueiro, ele é conhecido na região da Jaci-Paraná, região próxima a Porto Velho que será inundada com a construção das barragens. Faz pouco das promessas dos empreiteiros. "Tudo não passa de ilusão. Para nós, daqui, só vai sobrar o emprego braçal. O de escravo. Pergunta ao povo de Samuel se alguém foi indenizado."

A Folha perguntou. Conceição Silvia do Nascimento, 33, unhas vermelhas, vaidade facilmente percebida pelo contraste com a camiseta e a calça jeans puídas. Sua família morava na região inundada quando a usina de Samuel tomou o rio Jamari, meados dos anos 80. "Eles só chegaram e disseram: vocês têm tantos dias para sair. Se não sabe assinar, coloca o dedo aí", relatou ela. "Meu pai morreu de desgosto, igual aos peixes. Tiraram ele da água. Nós nunca recebemos um tostão: a Eletronorte empurra pro Incra, o Incra diz que é a Eletronorte. Por isso eu me juntei ao MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens]."

Antes de sair de Jaci-Paraná, a reportagem encontra o administrador do povoado, umas 1.500 casas, segundo Jurandir Rodrigues Oliveira. "Há menos de dois anos era a metade. O pessoal está louco com essa história de usina. Está chegando gente de todos os lugares, estão grilando terreno adoidado aí", disse. O próprio Oliveira está empolgado. Mas, e se a água subir e inundar a sua casa? Ele continuaria gostando do projeto? "Aí, não, né? Aí é diferente." (JL)
<(Por Janaina Leite, Folha de São Paulo, 05/06/2006) http://www1.folha.uol.com.br/fsp/

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