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2006-05-31
Fernando Katukina é chefe de uma tribo indígena que vive em grande parte sem água corrente, eletricidade ou elos com o mundo fora de seu canto remoto do oeste da Amazônia.

Mas Katukina diz que possui um tesouro que pode estar na vanguarda da biotecnologia. Se o projeto iniciado pelo chefe tiver sucesso, as riquezas da tribo serão transformadas em algo que ele e o governo brasileiro acreditam deter grande promessa para a indústria farmacêutica global: a secreção de uma rã venenosa.

Os xamãs tribais usaram a mucosidade como remédio ancestral para tratar doenças, dores e até preguiça. Os ingredientes ativos têm propriedades anestésicas, tranqüilizantes e outras. Os pesquisadores dizem que a promessa está em isolar os peptídeos da secreção e depois reproduzi-los na produção de remédios contra hipertensão, ataque cardíaco e outras doenças.

Katukina já tem o apoio do governo do Brasil, que vê no projeto uma oportunidade para desenvolver sua própria pesquisa de farmacêuticos. Em particular, o desafio científico da rã, conhecida localmente como kambo, vai aprofundar o conhecimento do Brasil no ramo farmacogenético -o uso combinado de genética e farmacologia- e aproveitar o conhecimento tradicional dos povos indígenas.

"O conhecimento tradicional também pode ajudar a medicina moderna e gerar benefícios econômicos significativos", disse Bruno Filizola, coordenador técnico do projeto e biólogo do Ministério de Meio Ambiente em Brasília, capital.

A dimensão indígena também é crucial porque o Brasil, como outras nações em desenvolvimento, está tentando combater o que entende como biopirataria, o roubo de recursos biológicos de habitats naturais do país para uso comercial. Apesar de o projeto ainda estar nos primeiros estágios, cerca de 20 cientistas estão buscando um patrocínio inicial de perto de US$ 1 milhão (em torno de R$ 2,2 milhões) de mais de uma dúzia de universidades, governos estaduais e de agências federais.

Há muito mais que esperança ingênua em jogo. Os pesquisadores brasileiros já ensinaram aos agricultores do país, que hoje estão entre os maiores exportadores, a manipular os solos e alterar as lavouras que não eram adequadas ao clima do país. Agora, muitos cientistas acreditam que a ciência pode transformar as florestas brasileiras em laboratórios produtivos.

"O Brasil tem uma comunidade grande crescente de pesquisadores dispostos a desenvolver sua própria pesquisa e produtos", disse Joshua Rosenthal, vice-diretor de uma divisão de treinamento internacional e pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisa em Bethesda, Maryland.

Pesquisadores brasileiros não esquecem o caso da jararaca, a cobra da Amazônia. A gigante farmacêutica Squibb usou o veneno da cobra para desenvolver o captopril, um remédio para pressão sangüínea comercializado a partir de 1975. Apesar de estar disponível na forma genérica desde 1996, o remédio foi o produto de maior venda da empresa, hoje parte da Bristol-Myers Squibb, e arrecadou US$ 1,6 bilhão (em torno de R$ 3,5 bilhões) em 1991.

Apesar de abrigar a maior floresta atlântica do mundo e um dos mais diversos ecossistemas do planeta, o Brasil em geral tem demorado a desenvolver seu patrimônio genético -as plantas e animais dentro de seu território e o potencial de lucro que oferecem. O documento do ministério também lamenta o atraso histórico na pesquisa brasileira e a conseqüente perda de bilhões em receita de fármacos, produtos agrícolas e outros bens comerciais.

Um resumo do Projeto Kambo, escrito por uma equipe de pesquisadores do Ministério de Meio Ambiente, diz: "O patrimônio genético nacional pode ser chave para a transformação do Brasil no contexto político e socioeconômico global." Os países em desenvolvimento promovem cada vez mais a idéia de desenvolver e comercializar seus remédios tradicionais e artes locais. Eles estão questionando os direitos dos estrangeiros de explorar produtos derivados de substâncias locais.

Em uma reunião da ONU, na cidade de Curitiba no mês passado, delegados de nações em desenvolvimento pediram mudanças na lei internacional para permitir que os governos impeçam o patenteamento estrangeiro -ou ao menos compartilhem dos lucros- de recursos biológicos encontrados em seu território.

Em dezembro, em uma reunião da Organização Mundial de Comércio em Hong Kong, o ministro de comércio da Índia disse aos delegados que o progresso nas negociações internacionais dependia de mudanças nessas linhas.

A indústria privada está temerosa. O caminho da pesquisa até o desenvolvimento de um produto é longo e caro. Raro é o composto que pode se tornar a próxima droga milagrosa ou outro sucesso comercial sem ser adulterado, argumentam.

"As nações em desenvolvimento devem trabalhar para desenvolver seus próprios recursos -e não bloquear os esforços de outros para pesquisar e investir", disse Alan Oxley, ex-embaixador australiano de assuntos comerciais que hoje é consultor em Melbourne e dirige um instituto de pesquisa patrocinado em parte pela indústria farmacêutica americana.

O Brasil quer tomar a dianteira com o kambo. O projeto foi lançado no ano passado depois que Marina Silva, ministra de meio-ambiente do Brasil, recebeu uma carta de Katukina, chefe da tribo, denunciando o uso do veneno de Kambo por pessoas de fora. Seus benefícios observados nos últimos anos fomentaram o comércio pirata do veneno em cidades pelo Brasil.

Se mal administrado, o veneno pode ser perigoso, advertiu Katukina. Além disso, se o ganho econômico gerado pelo remédio não reverter para a tribo, chamada Katukina, seu uso equivaleria à biopirataria, disse ele.

Silva, nativa do Estado da tribo, o Acre, concordou. Ela autorizou a criação do projeto do ministério para estudar o kambo, estipulando que os lucros derivados da pesquisa fossem compartilhados com a tribo.

"O conhecimento é da tribo", disse ela em recente entrevista telefônica. "Ela deve dividir as recompensas."

Os pesquisadores estudaram o kambo, ou Phillomedusa bicolor antes. Chamada de rã macaco gigante em inglês, porque sobe alto nas árvores, o kambo atraiu atenção dos pesquisadores estrangeiros há décadas. Alguns dos compostos do veneno, secretado pela pele da rã, foram até mesmo patenteados no exterior.

Ainda assim, enquanto os pesquisadores tentam entender o veneno, nenhuma das patentes levou a produtos de sucesso. "Esses compostos têm efeitos potentes na fisiologia humana", disse Paul Bishop, bioquímico da ZymoGenetics, empresa farmacêutica de Seattle e detentor de cinco patentes baseadas no veneno de kambo. "No entanto, não compreendemos plenamente a ação a secreção ou porque ocorre nas defesas dessa rã de árvore."

É aí onde o Brasil espera progredir. Enquanto biólogos e químicos investigam o kambo, seu habitat e a composição do veneno, uma equipe de antropólogos e médicos estudará o impacto de longo prazo de seu uso na tribo Katukina.

Em uma manhã em março, dois pesquisadores da Universidade Federal do Acre visitaram a reserva da tribo, uma seção de 320 quilômetros quadrados de floresta perto da fronteira com o Peru.

Ali, em meio a cinco conjuntos de cabanas de madeira, dois xamãs concordaram em administrar o remédio, chamado de "vacina do sapo".

Reginaldo Machado, biólogo, tirou a camisa e ficou suando ao lado do xamã mais velho, que tocou a ponta quente e vermelha de um galho em brasa três vezes no ombro do cientista. O outro xamã, com outro galho na mão, emplastrou as minúsculas queimaduras com o veneno gosmento.

Machado, que estava sofrendo com pedras nos rins crônicas, levantou-se depois de segundos, com ondas de calor, náusea e dores de estômago. Dez minutos depois, voltou, surpreso.

"De fato, me sinto mais forte", disse ele. "Há mais aqui do que mito."
Apesar das roupas ocidentais há muito terem substituído as saias de capim tradicionalmente usadas pela tribo, a vacina de sapo é um dos costumes úteis que os katukina preservam.

Depois de pegar a rã nas árvores, os membros da tribo amarram-na entre dois pilares, coletando a secreção de suas costas e laterais com um pedaço de madeira, onde fica secando. Então eles soltam o animal e depois, com água ou saliva, reidratam o veneno antes de aplicarem-no.

Apesar do termo "vacina", a substância não vacina contra nenhuma doença ou germe específico. Quando o corpo processa as toxinas -que explicam a indigestão e suores de Machado- seus compostos induzem o que os usuários chamam de uma sensação prolongada de bem-estar e alerta. Como os índios acreditam que o veneno aguça os sentidos, os caçadores katukina usam-no com freqüência: fileiras de cicatrizes de queimaduras marcam seus braços, peitos e barriga.

A maior parte dos katukina fala apenas a variante tribal de pano, um grupo lingüístico amazônico. O chefe Fernando Katukina, apenas um dos dois membros da tribo que trabalham fora da reserva, está convencido do valor do kambo e convencido que o medicamento, se usado por outros, pode melhorar a economia da tribo, que atualmente está em nível de subsistência.

"A vacina nos pertence", disse ele. "A ciência pode nos ajudar a desenvolvê-la, mas o conhecimento o kambo é katukina." (New York Times, 30/5)

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