Polêmica entre Natura e Ver-o-peso expõe dilemas na proteção de conhecimentos tradicionais no Brasil
2006-05-31
Vendedoras de ervas do mercado Ver-o-peso, em Belém do Pará, acusam a empresa Natura de se apropriar de conhecimentos tradicionais para a fabricação de perfume. Na última terça-feira (23/05) a empresa divulgou carta justificando sua conduta conforme a legislação vigente. A polêmica revela a inadequação da legislação que protege os conhecimentos tradicionais e o longo caminho ainda a percorrer para a construção de uma relação entre o setor privado e comunidades tradicionais.
A Natura do Brasil, empresa fabricante de cosméticos, está envolvida em uma polêmica com vendedoras de ervas do tradicional mercado Ver-o-peso, de Belém, no Pará. A empresa entrevistou seis ervateiras há dois anos sobre seus conhecimentos na manipulação de ervas que contém três essências aromáticas - a priprioca, o breu branco e o cumaru - e o material gravado em vídeo foi utilizado pela empresa para promoção de seus produtos, “justamente para valorizar a tradição da população do Norte”, nas palavras do vice-presidente de inovação da Natura, Eduardo Luppi. As vendedoras afirmam que foram pagas na ocasião pelo "uso da imagem", mas não pela cessão dos saberes.
Em comunicado divulgado no último dia 23, a empresa afirma que não se aproveitou das vendedoras e que "o uso de conhecimento difuso, isto é, sem fonte determinada, não é regulado por lei no País. Além de discutível, a remuneração ao conhecimento tradicional difuso, da forma como o assunto é abordado pela legislação existente, pode trazer riscos ou inviabilizar iniciativas que busquem a promoção de negócios sustentáveis." A empresa esclarece ainda que as filmagens serviriam para vídeos institucionais e "não para ajudar a desenvolver a tecnologia de extração e formulação das fragrâncias".
A Natura sustenta, portanto, que a legislação sobre acesso a conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade (Medida Provisória 2.186-16, de agosto de 2001) não se aplica ao caso. Mas esta interpretação está longe de encerrar a polêmica. O caso entre Natura e as vendedoras de ervas do Ver-o-peso está sendo analisado por uma comissão de bioética da Ordem dos Advogados do Brasil, seção paraense, e também pelo Ministério Público Federal e Estadual, no Pará. “Estamos com um procedimento administrativo aberto para apurar se a legislação foi cumprida ou não”, diz o procurador Alexandre Soares, do MPF.
Isso porque a referida legislação exige a repartição dos benefícios, econômicos e não-econômicos, derivados do uso do conhecimento ou do recurso genético para fins de pesquisa científica, bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico. Essa legislação deriva da obrigação internacional assumida pelo Brasil ao ratificar a Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas (CDB), que reconhece a necessidade de se equilibrar a relação entre provedores e usuários de recursos genéticos (e conhecimentos associados).
A legislação não prevê qualquer exceção referente à “conhecimento tradicional difuso” ou de “domínio público”. Portanto, a atividade realizada pela Natura estaria, em princípio, enquadrada sob o escopo da MP. A empresa estaria obrigada, assim, a obter autorização de acesso do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen) e estabelecer uma negociação de repartição de benefícios com as vendedoras de ervas, por meio de um contrato aprovado pelo conselho, colegiado governamental responsável por controlar o acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade brasileira e vem há mais de dois anos discutindo o conceito de acesso a conhecimento tradicional associado à biodiversidade. "Embora a empresa argumente que o desenvolvimento tecnológico independe do conhecimento tradicional acessado, essa circunstância não afasta a aplicação da MP, já que o objetivo do acesso ao conhecimento sobre as ervas foi desenvolver – ainda que através de técnicas próprias – um produto derivado da biodiversidade para o mercado", afirma Fernando Mathias, advogado do ISA especializado no tema.
A Medida Provisória conceitua “acesso a conhecimento tradicional associado” como “obtenção de informação sobre conhecimento ou prática individual ou coletiva, associada ao patrimônio genético, de comunidade indígena ou de comunidade local, para fins de pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico ou bioprospecção, visando sua aplicação industrial ou de outra natureza”.
Valorização da biodiversidade
O advogado Fernando Mathias, do ISA, lembra que o argumento de que qualquer conhecimento tradicional é de “domínio público” é recorrentemente utilizado por empresas menos preocupadas do que a Natura em valorizar a biodiversidade. “Estas corporações se utilizam de conhecimentos sobre o manejo de plantas e animais visando aplicá-los a processos de bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico, com o objetivo de lançar produtos no mercado. O argumento foi utilizado por um laboratório recentemente, que se valeu dos conhecimentos tradicionais de comunidades caiçaras do litoral de São Paulo para o desenvolvimento de um medicamento antiinflamatório", exemplifica. “A reticência deste laboratório em se submeter ao Cgen chegou a render uma briga judicial, e o caso é reconhecido hoje como um exemplo de biopirataria nacional, na medida em que houve a apropriação de um conhecimento compartilhado coletivamente através de instrumentos de propriedade intelectual, as patentes”.
Mathias aponta uma diferença básica de atitude entre os casos da Natura e o do laboratório. “A empresa reconhece que existe uma diversidade cultural responsável por uma riqueza de conhecimentos sobre a natureza, e que essa diversidade é central para sua missão. Esse reconhecimento, por si, já representa um avanço no panorama do setor privado, que almeja em sua grande maioria manter o padrão atual de conduta, ignorando que nesses casos isso significa justamente a prática de apropriação indevida de conhecimentos e recursos genéticos, o que define a chamada biopirataria. É preciso então mudar rumos dentro do setor privado, o que nem sempre é fácil”.
O advogado do ISA ainda diz que, se por um lado a noção de “domínio público” anula os direitos coletivos de povos ou comunidades detentoras de conhecimentos ligados à biodiversidade, por outro lado o modelo de repartição de benefícios estabelecido pela legislação atual traz inúmeras dificuldades, na medida em que exige a identificação de um “titular” do conhecimento tradicional acessado, que fará jus à repartição de benefícios através de um contrato. “No entanto, como a ampla difusão é um traço característico dos conhecimentos tradicionais detidos por milhares de comunidades indígenas, locais, quilombolas, ribeirinhas etc., a identificação de um titular é feita necessariamente em detrimento de outras que fazem parte de um universo indefinível”, ressalva.
Mathias, que é representante da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (ABONG) e membro convidado permanente no Cgen, aponta que, do jeito que está, a lei traz problemas tanto para os provedores do conhecimento (comunidades) como para os usuários interessados (empresas). “O que fazer com aqueles que detêm o mesmo conhecimento, mas que ficaram ‘de fora’ da repartição de benefícios? Por outro lado, qual a segurança jurídica que pode ter uma empresa sabendo que a qualquer momento pode aparecer alguém reclamando direitos sobre o conhecimento acessado?”, questiona.
Legislação insuficiente
De acordo com Eduardo Vélez, diretor do Departamento de Patrimônio Genético do Ministério do Meio Ambiente e secretário-executivo do CGen, a paralisia da normatização sobre a repartição de benefícios relacionados a conhecimentos tradicionais no conselho permite que todo tipo de problema ocorra nesta área. E lembra que a legislação tampouco resolve a repartição de benefícios a partir de fontes secundárias, quando o acesso a conhecimentos tradicionais se dá por meio de livros ou bancos de dados. “Acredito que a atual legislação prejudica a todos, empresas e comunidades, abrindo espaço para episódios que são muito ruins, pois impedem que alianças entre estes dois lados se fortaleçam”. Vélez lembra que o Ministério do Meio Ambiente deve encaminhar, nas próximas semanas, um Ante-Projeto de Lei ao Congresso para avançar a legislação sobre o tema. (Saiba mais em http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=2114)
Fernando Mathias sublinha que a polêmica entre a Natura e o Ver-o-peso revela que o atual sistema baseado unicamente em contratos regidos pela legislação civil não é adequado. “Isso exige uma outra abordagem para além do que hoje prevê a legislação de acesso, incorporando noções de direitos coletivos (além dos direitos individuais) sobre conhecimentos tradicionais enquanto patrimônio imaterial compartilhado e coletivamente construído”, afirma. “O desafio é criar instrumentos para repartir benefícios a partir desses princípios. Nesse sentido, o setor privado ainda tem longo caminho para criar e cultivar laços de confiança junto a comunidades locais culturalmente diferenciadas, com vulnerabilidades econômicas diante da realidade corporativa de grandes empresas”. Leia abaixo a carta da Natura na íntegra:
A Natura, o Ver-o-Peso e o Estado do Pará
Cajamar, 23 de maio de 2006
A Natura, como é de conhecimento público, vem debatendo com vendedoras de ervas do Mercado Ver-o-Peso o tema da utilização do conhecimento tradicional de essências aromáticas da floresta amazônica para produção de perfumes. O impasse começou a ganhar forma em outubro de 2005 quando pesquisas realizadas pela companhia foram questionadas junto a Ordem dos Advogados do Brasi/Seção do Pará e, logo a seguir, ganhou a mídia, na forma de denúncias quanto aos procedimentos dos trabalhos levados à prática.
Diante desses acontecimentos, a Natura, em respeito à opinião pública e em harmonia com o marco regulatório governamental, vem buscando dois caminhos principais de diálogo, simultâneos e interligados. De um lado, enfatiza a sua disposição para o diálogo e o entendimento, determinada que está em valorizar o Mercado Ver-o-Peso e as ervateiras da região, sempre orientada pela atuação transparente e construção de parcerias. De outro lado, tem se empenhado em tornar cristalino o seu posicionamento quanto à utilização de ativos da biodiversidade brasileira em suas linhas de produto, assinalando jamais ter cometido qualquer ilegalidade, inclusive porque o uso de conhecimento difuso, isto é, sem fonte determinada, não é regulado por lei no País. Além de discutível, a remuneração ao conhecimento tradicional difuso, da forma como o assunto é abordado pelo legislação existente, pode trazer riscos ou inviabilizar iniciativas que busquem a promoção de negócios sustentáveis.
OS FATOS.
Para alimentar sua plataforma tecnológica, baseada no uso sustentável de ativos da floresta, a Natura investe recursos em pesquisa e busca inspiração em múltiplas fontes, tais como literatura acadêmica e popular, fornecedores de matérias-primas, comunidades agrícolas e extrativistas e mercados populares. Dentre as muitas missões que realizou para conhecer as práticas de manejo e as tradições culturais associadas ao desenvolvimento de óleos essenciais de Priprioca – como, por exemplo, à Ilha de Silves, no Estado do Amazonas, ou ao centro de pesquisa da Universidade de Campinas, UNICAMP, no Estado de São Paulo –, a Natura visitou o Mercado Ver-o-Peso, em Belém. Ali, entrevistou comerciantes de ervas com a finalidade de produzir um vídeo para uso institucional e não para ajudar a desenvolver a tecnologia de extração e formulação das fragrâncias.
Isto porque este processo é extremamente complexo. Na realidade, o desenvolvimento de óleos extraídos da Priprioca envolve casas de perfumaria especializadas que operam mundialmente e que detêm know-how tecnológico por vezes desconhecido no Brasil. A esses óleos essenciais as casas de perfumaria somam entre 100 a 200 substâncias que vão sendo incorporadas até chegar ao produto final.
Contudo, por reconhecer que o Mercado Ver-o-Peso é um importante símbolo das tradições populares paraenses e brasileiras procuramos divulgar – sempre de forma transparente e aberta – as tradições relacionadas com o hábito da perfumação em nossa comunicação institucional e comercial. Em outras palavras, a Natura buscou inspiração no Mercado Ver-o-Peso da mesma forma que em diversas outras localidades. Vale lembrar ainda que a companhia remunerou devidamente os expositores filmados pelos direitos de uso de imagem, informando a todos as finalidades do documentário.
INVESTIMENTOS E INCLUSÃO SOCIAL.
A presença da Natura no Estado do Pará tem gerado, nas últimas décadas, resultados expressivos para os muitos públicos de relacionamento da empresa e para a sociedade em geral. Esses resultados decorrem de diversas iniciativas que desenvolvemos e que continuaremos a desenvolver na região.
A Natura cria oportunidades de trabalho e renda para um grupo de cerca de 20 mil Consultoras Natura, que são as responsáveis por comercializar nossos produtos junto aos consumidores. Por meio dessa atividade, cada uma dessas mulheres obteve um ganho médio no ano passado de R$ 2.4 mil. Estamos também investindo recursos em uma unidade industrial, a primeira fora do Estado de São Paulo, que envolverá cerca de 2.300 famílias, em 23 municípios do Estado, no fornecimento de oleaginosas e frutos para a produção de óleos da biodiversidade brasileira para utilização em nossos produtos.
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL.
Finalmente, é importante reforçar que o nosso modelo de negócios tem permanentemente buscado conciliar geração de renda com conservação da natureza e justiça social. Nesse contexto, inovar significa não somente lançar novos produtos, mas primordialmente tirar o melhor proveito de nosso jeito de fazer negócios para identificar novas formas de inclusão social e preservação da natureza.
Aqueles que acompanham a trajetória e torcem pelo sucesso da Natura sabem que acreditamos, genuína e intensamente, que “floresta em pé é um bom negócio”, embora cientes de que toda atividade pioneira possui riscos. Por fim, reforçamos nosso compromisso com o Estado do Pará e com o desenvolvimento sustentável da região Norte. E no construtivo diálogo com as comunidades regionais, e com aqueles que trabalham no Mercado Ver-o-Peso, em particular.
Por
Por Bruno Weis
(Envolverde/Instituto SocioAmbiental)