Mata Atlântica - Uma fábrica de serviços ambientais
2006-05-29
Dona Maria nunca se preocupou em fechar a torneira de casa. Na verdade, nem há torneira. A água, cristalina, jorra continuamente de um cano sobre a pia da cozinha, que ela utiliza tanto para lavar os pratos quanto para beber.
Dona Creuza, igualmente, nunca comprou uma garrafa de água na vida. Quando está com sede, basta encher o copo na torneira mais próxima. A água, sempre pura, desce diretamente de uma cachoeira, sem a necessidade de qualquer tipo de tratamento.
Duas caiçaras sorridentes, elas têm o privilégio de viver dentro do maior remanescente contínuo de mata atlântica do País, no Vale do Ribeira, litoral sul de São Paulo. Dona Maria Sales do Prado, na Estação Ecológica Juréia-Itatins, em Iguape, e Dona Creuza Xavier, no Parque Estadual da Ilha do Cardoso, em Cananéia.
Para elas, água não é algo que se compra do governo ou no supermercado. É uma coisa natural, que brota da natureza. Um dos muitos serviços ambientais prestados gratuitamente pela mata atlântica, mas que se torna cada vez mais caro à medida que a floresta é consumida em outras regiões do Estado.
Sábado (27/5) foi o Dia da Mata Atlântica. E para aqueles que não estão preocupados com espécies ameaçadas de extinção - se o sapinho xis ou o macaquinho ípsilon vai desaparecer da face da Terra -, dona Maria e dona Creuza são um lembrete de que há outros motivos para preservar a floresta. Mesmo reduzida a 7% de sua cobertura original, ela presta serviços ambientais que são cruciais para a qualidade de vida nos centros urbanos ao seu redor. Água limpa e regulação climática, só para citar alguns.
"A floresta é nossa vida; se ela morrer, a gente morre também", resume dona Creuza, sem ensaios nem demagogia.
"A mata é o que nos dá oxigênio, é o nosso termômetro, nosso ar-condicionado natural", completa Ezequiel de Oliveira, de 66 anos, um dos líderes da comunidade do Marujá, na ponta sul da Ilha do Cardoso. "Uma vez tentaram trazer água encanada para cá e a gente não deixou. Imagine, que absurdo, a Sabesp querer pegar a nossa água e vender de volta para nós."
Fábrica de água
O que os caiçaras sabem por convivência, a ciência comprova com estudos. E não é preciso ser caiçara nem morar ao lado da mata para se beneficiar dela.
"A conservação da mata atlântica é fundamental para a manutenção das reservas de água de São Paulo", diz a coordenadora de projetos da SOS Mata Atlântica, Malu Ribeiro. Segundo ela, mais de 80% do abastecimento hídrico da região metropolitana da capital vem de reservatórios de superfície, cuja quantidade e qualidade da água depende largamente dos ecossistemas florestais do entorno.
Com a floresta, a água da chuva é absorvida, purificada, chega ao subsolo e abastece os lençóis freáticos que alimentam os reservatórios na superfície. Sem a floresta, a água escorre direto para o rios, arrastando terra, areia, lixo e outros poluentes ao longo do caminho. Os rios ficam assoreados, a poluição aumenta, o lençol freático fica empobrecido e, no fim, a água sai mais cara e mais cheia de cloro da torneira.
"O que você acha que é mais barato: investir em alta tecnologia para despoluir e rebaixar a calha dos rios ou conservar a floresta?", pergunta Malu. "Se quisermos continuar morando na cidade, temos de investir em conservação. Não porque a floresta é bonitinha, mas porque é essencial para a nossa vida."
A mata atlântica também é crucial para a regulação térmica e climática da região. Algo que pode ser verificado no Parque Estadual Fontes do Ipiranga, em plena zona sul de São Paulo (onde ficam o Zoológico e o Jardim Botânico).
Segundo o plano de manejo da unidade, que está em fase de conclusão, os 564 hectares de mata do parque produzem uma zona de estabilidade térmica com temperaturas até 5°C mais amenas que no centro da cidade. O ar fresco é irradiado para o entorno, beneficiando bairros vizinhos como Sacomã e Jabaquara.
"É a influência dessa mancha verde que segura a temperatura", diz o diretor do Jardim Botânico, Dácio Roberto Matheus. Medições também mostram que há mais garoa sobre o parque do que em outras partes da cidade. "São Paulo é a terra da garoa. Mas se perder a mata, perde a garoa também." A vegetação ainda ajuda a evitar enchentes nos Rios Ipiranga e Tamanduateí. "A floresta funciona como uma esponja", diz Matheus. "Só 23% da água que cai no parque vai para fora dele."
Os mesmos fenômenos são reproduzidos na escala regional. Se a Serra do Mar fosse desmatada, por exemplo, todo o litoral paulista ficaria sem água, e as cidades de ambos os lados ficariam mais quentes e secas, segundo a geógrafa Magda Adelaide Lombardo, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro. Haveria enxurradas, e as praias ficariam mais turvas e poluídas.
Fora dos grandes maciços florestais, a legislação ambiental exige a preservação de, no mínimo, 30 metros de mata ciliar à beira dos corpos d´água (podendo chegar a 500 metros). Mas o desrespeito é grande. Só no Estado de São Paulo seria preciso restaurar cerca de 1 milhão de hectares, segundo Helena Carrascosa von Glehn, coordenadora do Projeto de Recuperação de Mata Ciliar da Secretaria de Estado do Meio Ambiente.
"Nem todo mundo está preocupado com espécies ameaçadas, mas todo mundo bebe água", resume.
Culinária
Assim como os pecuaristas precisam de pasto para criar o gado que vai ser servido no churrasco de domingo, os pescadores precisam da mata atlântica para produzir o peixe, as ostras e os caranguejos que serão servidos nos restaurantes durante o fim de semana na praia.
Os manguezais, que fazem a ligação entre a floresta e o mar, são o berçário de muitas espécies de peixes, crustáceos e moluscos. Do interior da mata saem as samambaias, bromélias, musgos e outras plantas ornamentais que vão decorar os jardins chiques de São Paulo e são fonte de sustento para muitas comunidades tradicionais.
"Se não tivermos a natureza fornecendo esses serviços para nós, não há tecnologia que vá reproduzir isso", diz a diretora da Fundação Florestal, Maria Cecília Wey de Brito.
Por Herton Escobar, O Estado de S. Paulo, 28/05/06
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