Por Cláudia V Viegas*
Falar sobre ética é sempre excessivo, pois a ética é algo que existe para a ação. À medida que muito se fala sobre ela, pode-se levantar a suspeita de que ela é pouco praticada. Isto não é diferente no Jornalismo, onde ética é um dever de ação muito mais do que de declaração e muito mais ainda do que de exposição.
Um dos primeiros aspectos para falar em ética é desarmar-se, ou seja, é importante que, ao debater tal assunto, isto não seja feito num território de acusações e revanchismo. É importante que todos olhem um pouco para si e vejam o que realmente estão fazendo, independentemente da posição que ocupam. Outra questão importante é separar o jornalista do veículo em que ele atua. O jornalista, como cidadão, é um indivíduo com suas convicções e história: ele não é o veículo de comunicação, ele está no veículo, e à medida que concorda ou não com as formas de agir e se posicionar do veículo, pode ou não entrar em conflito, e dependendo da intensidade desse conflito, pode ou não permanecer nele. O conflito é sempre inerente à atuação do jornalista, ele não deixa de ser ético por suportar conflitos, ao contrário. Tudo depende de uma avaliação contínua e constante dos rumos que o veículo, em sua linha editorial e em sua postura, assume, e do grau em que o jornalista apóia – ou tolera – tal direcionamento. Assim, esta primeira distinção é necessária para tratar de ética no jornalismo, em qualquer tipo de jornalismo.
A maioria dos jornalistas que conheço é jornalista não por lazer, ou seja, não faz jornalismo apenas em eventos, ou em finais de semana, por hobby, ou dentro de uma ONG, como atividade subsidiária à sua profissão. A maioria dos jornalistas existe e vive e tenta exercer a sua dignidade e a sua ética num ambiente chamado “mercado”, profundamente desigual e discriminador, e está nesse ambiente para sobreviver. Evidentemente, alternativas podem ser criadas, mas nem todas são viáveis, nem todas “dão certo”.
O que muitas vezes choca é o discurso de que o jornalista não tem ética ou é mentiroso porque trabalha num ambiente “x” ou “y”, ou então o discurso, por extensão, de que apenas o jornalista que atua em ONG pode ter credencial para fazer um jornalismo ético. Seria bom, antes de fazer esse discurso, uma breve reflexão sobre as condições de produção do jornalista que atua em veículos “de mercado”, como se diz, e as condições de produção do jornalista que supostamente, como alguns dizem, “é mais ético” do que este primeiro, por atuar em ONGs ou apenas a serviço delas. Como vive cada um? Quem paga seu salário? Creio que este debate é fundamental antes de se partir para o “confronto armado” que normalmente se verifica nos ambientes de discussão da ética jornalística. Se o jornalista “de mercado” vive do salário que a empresa lhe paga, ou do free lancer, o jornalista que é militante certamente também tem uma fonte de sobrevivência – ou é pago por governos (federal, estadual etc), ou por verba de ONGS – as quais, muitas vezes, provêm de governos e/ou empresas privadas. Em última instância, é o cidadão, com os seus impostos, que remunera todo funcionário público ou de ONG, inclusive o jornalista nessa condição. Então, partindo dessa breve reflexão, por que “atirarem-se pedras” nos jornalistas que atuam em empresas privadas?
Esta reflexão é importante porque, de certa forma, transpareceu no Congresso de Jornalismo Ambiental realizado no último final de semana, em Porto Alegre. Uma das primeiras questões levantadas foi a respeito da finalidade das ações, dentro do escopo da filosofia aristotélica – “Ética a Nicômaco”, o qual foi pai (e não filho) de Aristóteles. Segundo a apresentação do filósofo Vicente Medaglia, também dentro do jornalismo ambiental (como em outros, sustento eu) as nossas ações visam à felicidade. O problema é que “felicidade” é algo com significado muito diferente para cada pessoa, e então caímos numa discussão que pode não ter sido muito esclarecedora, embora muito significativa. O jornalista Roberto Villar afirmou seu conceito de ética como liberdade de escolha.
Na ocasião, fiz uma intervenção, discordando da posição de Villar, com todo o respeito, e aludi à noção de “meio-termo entre o excesso e a falta” como significado de ética aristotélica e sobre o conceito de “ética como justiça”, os quais constam na mesma obra de Aristóteles, mas certamente fui mal entendida. O que quis dizer é que a noção de meio termo aristotélica pode ser comparada à da busca da justiça pelo jornalista (inclusive o “jornalista ambiental”) no seu trabalho. O meio termo pode significar a capacidade de ouvir todas as partes envolvidas numa querela, e pode também se comparar à busca da sustentabilidade, que não admite excessos nem faltas. Segundo Aristóteles, no mesmo livro dedicado a seu pai, a ética, no seu sentido mais pleno, é comparável à justiça. Mas, no âmbito do jornalismo, não se faz justiça por si. Como vivemos num Estado de Direito, com leis “positivadas”, o que o cidadão ou o jornalista podem fazer é exigir que quem tem poder de ação – como o Ministério Público – entre em ação. A ação do jornalista é o jornalismo, não o ativismo, e isto pode também ser profundamente mal entendido. O fato é que o jornalismo não é uma “justiça com as próprias mãos”, mas uma forma de apoio a quem tem o dever de agir em nome dos cidadãos – autoridades a quem é atribuído este poder de ação e a quem o cidadão paga para isto, ao ser contribuinte.
Outro debate muito importante refere-se às fontes de financiamento dos veículos. Segundo o jornalista Roberto Villar, o critério mais sustentável para o financiamento da imprensa que atua com jornalismo ambiental, no caso de financiamento privado, é o da empresa “que mate menos”. Por este critério, segundo ele, seria preferível aceitar o patrocínio de uma Petrobras ao de uma empresa de agrotóxicos. Aqui há uma questão crucial a ser repensada: como saber quem “mata mais”, quem “polui mais”? Que indicadores utilizar para medir isto? Com que delimitação geográfica? Acredito que este critério não seja muito prático. Acredito que a maior ou menor felicidade do jornalista que necessita de sustento para o seu veículo esteja atrelada à maior ou menor liberdade editorial dada pelo anunciante. Ou seja: o anunciante que menos interferir no trabalho do jornalista, que mais livre o deixar, seria o preferido, ou preferível a outros.
Sobre as fontes de informação buscadas pelo jornalista e o porquê de não terem sido levantados, no evento, “outros debates”, como o caso do plano do governo do Estado de fomentar o plantio de eucaliptos (via monocultura) na Metade Sul do Estado, algumas ponderações devem ser feitas. Primeiro: a busca da diversificação de fontes é obrigação do jornalista, é um ato individual e, sem dúvida, faz parte das implicações éticas do seu trabalho. A diversificação deve existir não apenas para “não ouvir sempre os mesmos”, mas para ouvir diferentes “lados”, ou seja, diferentes “interesses” implicados num mesmo fato, seja quais forem. A idéia de que apenas a interpretação é válida, de que dados não podem ser úteis para a compreensão de uma realidade parece desprovida de fundamento. Dados como os apresentados pela jornalista Cecy Oliveira, da revista Aguaonline, mostram realidades intrigantes, como o fato de boa parte da população não saber que a agricultura tem muito mais peso em eventos como escassez e poluição da água do que a indústria. E, ademais, interpretações muitas vezes podem apenas expressar a avaliação de uma das partes envolvidas em uma questão.
Sobre o que deixou de ser abordado no evento, pelos jornalistas que participaram do painel sobre a mídia ambiental, trata-se de uma restrição de tempo, não de uma restrição ideológica. Não há por que temer o debate, qualquer que seja, se ele for honesto, com regras claras, sem subterfúgios. Que existem manobras no Consema para aumentar o poder da Famurs no conselho, isto está claro. Foi denunciado pelas ONGs com assento no Consema. O
Ambiente Já veiculou matéria a respeito. Também não se mencionou, por parte dos debatedores das ONGs, o andamento do plebiscito sobre a usina térmica a carvão em Cachoeira do Sul, o qual ocorreu no último domingo (21/05). Mas não creio que tenha sido por qualquer motivo ideológico, e sim por razão de objetividade do debate que estava sendo proposto no momento.
Para encerrar, acredito ser oportuna uma desmistificação. Jornalismo ambiental tem tanto compromisso com ética quanto qualquer outro tipo de jornalismo. Não há por que se criarem chavões e éticas à parte. Começando pelo simples, se a ética é “o bem do outro”, como diz Aristóteles em “Ética a Nicômaco”, por que tratarmos o outro com tanto desrespeito, tachando-o de mentiroso, por exemplo, ou impedindo sua presença em um debate? A ética do jornalismo ambiental, como qualquer outra, deve começar pelas ações simples, com relação aos nossos hábitos e com relação ao tratamento com nossos pares (jornalistas). Complicar mais do que isto é cair em discurso e esquecer que a ação é bem mais importante, e que ela começa pelo indivíduo.
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Cláudia V Viegas é jornalista há 22 anos.