A aviação já representa 13,6% das emissões de CO2 do setor de transportes
emissões de co2
2006-05-19
Quando o escritor Marcel Proust pôs na boca de um dos personagens de "Em Busca do Tempo Perdido" que a única coisa que realmente importa na vida é "manter um pedaço de céu azul sobre a cabeça", evidentemente não imaginava que até os aviões logo se transformariam em um considerável obstáculo para isso. Quase um século depois, o tráfego aéreo não só representa um ruidoso incômodo para os que vivem perto dos aeroportos, como também 3% das
emissões de CO2 produzidas pelas atividades humanas (13,6% do setor de transportes, segundo dados da União
Européia) e uma notável fonte de nuvens. Este último ponto, embora pareça, não é uma metáfora.
Em um avião prestes a decolar, os olhares e os corações estão todos voltados para a frente, para o destino. Quem
quiser olhar, porém, para o que acontece atrás, encontrará sobretudo emissões de CO2 -particularmente intensas na
fase de decolagem- de óxidos de nitrogênio (NOx) e rastros de vapor aquoso. Estes últimos, "na presença de
determinados níveis de umidade e temperatura, se condensam e se estendem no céu durante horas", explica o
professor Robert Noland, do Imperial College de Londres. "Não é incomum que isso aconteça", acrescenta.
Assim, formam-se diariamente corpos nebulosos com uma superfície equivalente à da Espanha, segundo o estudo
mais respeitado na matéria, elaborado em 1999 pelo Grupo Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC na sigla
em inglês), um organismo estabelecido pela ONU e a Organização Meteorológica Mundial.
Aumento da nebulosidade
O mesmo estudo salienta que, além dos rastros, nas áreas de tráfego intenso se detecta um aumento da nebulosidade,
e os autores suspeitam que equivale diariamente a duas vezes a superfície da Espanha. Mas permanece a incerteza
sobre o assunto. As nuvens induzidas têm um efeito de retenção do calor, mas não há acordo unânime sobre a
intensidade do mesmo. Para se ter uma idéia, o estudo do IPCC estima que a aviação representa -entre rastros, CO2 e
demais emissões- 3,5% do impacto total das atividades humanas sobre o equilíbrio atmosférico.
Trata-se de um número relevante em tempos em que os pedaços de céu azul valem indubitavelmente mais que nos de
Proust. À margem das cifras de hoje, o mais relevante impacto da aviação talvez seja sua dinâmica de crescimento.
Enquanto as emissões totais da UE controladas de acordo com o Protocolo de Kyoto foram reduzidas em 5,5% entre
1991 e 2003, as correspondentes à aviação internacional -que não são submetidas ao mesmo- aumentaram 73%,
segundo dados da Comissão Européia. A de Kyoto não é a única exceção notável de que goza o setor: o combustível
que alimenta os vôos internacionais é isento de impostos, assim como o dos nacionais em uma grande maioria de
países.
"Até agora as medidas estabelecidas em nível internacional, regional e nacional para atenuar a mudança climática não
exigiram uma contribuição substancial do setor da aviação." A citação não é de uma organização ecológica, mas sim
da Comissão Européia, em um comunicado dirigido às demais instituições comunitárias em setembro do ano passado.
"Levando em conta o provável crescimento futuro do tráfego aéreo, novas medidas políticas são necessárias",
prossegue o comunicado.
Que medidas? A idéia chave da comissão é "a inclusão do setor de aviação no Regime Comunitário de Comércio de
Direitos de Emissão". Quer dizer, distribuir cotas de emissões como já está previsto para as instalações industriais. Os
que não se adaptarem terão de comprar direitos de emissão. Para lançar o sistema, a comissão apresentará no final
deste ano uma proposta legislativa. "É um procedimento muito difícil", explica Barbara Helfferich, porta-voz da comissão
sobre o assunto, "porque as empresas são extremamente relutantes diante da perspectiva e porque o setor é
regulamentado por uma miríade de acordos internacionais".
A Organização da Aviação Civil Internacional (OACI) reconheceu a possibilidade legal de estabelecer um sistema
desse tipo, e seu presidente, Assad Kotaite, fez um apelo para dialogar e avançar na matéria em 25 de abril passado.
Também defendeu que se insista na "melhora da tecnologia, da gestão do tráfego e do conhecimento científico da
matéria". Diante dos pedidos para concretizar mais, a OACI respondeu a este jornal que ainda está "avaliando opções,
e que por isso no momento não se pode dizer muito".
Diante da falta de avanços concretos, "a comissão, pressionada pelo Parlamento Europeu e os países membros,
decidiu tomar a iniciativa, também de acordo com a própria OACI, já que há uma convicção comum de que ações em
escala global hoje não são politicamente viáveis", comenta Olivia Hartridge, funcionária da comissão e membro do grupo
que trabalha no projeto, cujos detalhes ainda não estão definidos. "Mas o conceito é levar a pesquisa para soluções
menos poluentes", explica Hartridge.
Redução do consumo
Um argumento freqüente no setor é que já existe uma forte pressão econômica para uma redução do consumo de
combustível, e portanto de CO2. O argumento é sólido: o consumo baixou 70% em 40 anos. Um Airbus 350 queima 3,5
litros por 100 quilômetros por passageiro. Menos que um carro médio com um passageiro. "O problema é que o setor
cresce num ritmo superior ao da eficiência", indica Peder Jensen, especialista da Agência Européia do Meio Ambiente.
E por outro lado que "as melhoras em CO2 não significam necessariamente melhoras em Nox, que também tem um
impacto, embora indireto, sobre o clima", explica Hartridge.
Outro argumento do setor é que o sistema de cotas poderia ter uma forte repercussão no preço das passagens. Isso
conteria o desenvolvimento do mesmo. "Naturalmente essa não é a intenção da comissão", diz Helfferich. Para
minimizar o custo para as companhias seria preciso uma atribuição de cotas muito generosa. Mas isso significaria um
resultado frágil em termos de meio ambiente. Uma negociação difícil. Jensen, de fato, considera "possível um acordo,
mas não um que possa ter um impacto".
A comissão, por outro lado, indicou sua preferência por "normatizar o quanto antes o tratamento do combustível de aviação", que "deve estar sujeito aos mesmos impostos que outros
combustíveis", e sua aposta nas ferrovias. Mas em nenhum dos dois aspectos se registram grandes avanços. Na UE,
depois que uma diretriz de 2003 tornou possível, só os Países Baixos optaram por introduzir impostos. E o transporte
ferroviário, desde meados dos anos 90, permaneceu estável, representando cerca de 6% do total, apesar dos
investimentos. Enquanto isso, a cota da aviação aumenta.
(Carbono Brasil, 17/05/06)
http://www.carbonobrasil.com/noticias.asp?iNoticia=12914&iTipo=5&idioma=1