Como foi nacionalizado o negócio do petróleo na Bolívia, entrevista com o mentor do decreto
2006-05-17
“Se estão de acordo, assinem o decreto!”, disse aos seus ministros o presidente da Bolívia, Evo Morales, na madrugada do dia 1º de maio. Estava nacionalizando um negócio que moverá US$ 200 bilhões nas
próximas duas décadas no país mais pobre da América do Sul. Um dos estrategistas da medida relatou o processo à IPS. Morales entregou o documento aos seus colaboradores, sentados em volta de uma enorme mesa de madeira entalhada no salão de reuniões do Palácio de Governo, quando os primeiros raios de sol surgiam na manhã fria de La Paz. Assinaturas, aplausos e o hino nacional. Depois do último verso (”Morrer, a viver como escravos”), Morales sorriu e acrescentou: “O avião nos espera”.
Uns poucos colaboradores sabiam da operação militar para ocupar campos de petróleo e a viagem do presidente com seus boquiabertos ministros em um avião Hércules até a região de Caraparí, 1.200 quilômetros ao sul. Quando Morales chegou às portas da central de gás de San Alberto, até esse dia controlada pela Petrobras, os funcionários o receberam com sorrisos e perguntando qual área operacional desejava visitar. Mas o presidente chegava para tomar posse das instalações e da jazida, algo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reprovaria pouco depois.
Um dia antes, outro exército, formado por engenheiros petrolíferos, se deslocou silenciosamente até as usinas e jazidas, com o pretexto de realizar uma fiscalização, embora a quantidade de pessoal fosse maior do que o habitual. “Novos profissionais acompanham os antigos para ganhar experiência em campo”, disseram os funcionários aos vigilantes das companhias de petróleo estrangeiras. A missão secreta dos técnicos estatais era atuar em caso de emergência, se as empresas decidissem suspender a extração e fornecimento de energéticos à população.
Estes fatos quase desconhecidos foram relatados à IPS por um dos seis responsáveis pela sigilosa nacionalização, Manuel Morales Olivera, assessor geral da estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) e filho do advogado Manuel Morales Dávila, que esteve preso por 42 dias em 1996 após acusar o então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada de traição à pátria por privatizar o petróleo.
O decreto 28.701 devolve ao Estado a propriedade e o controle dos hidrocarbonetos, em cumprimento ao referendo de 2004 e de dois artigos da Constituição, ordena a entrega de toda a produção à YPFB e estabelece prazo para 180 dias para que as empresas estrangeiras negociem contratos de acordo com as novas normas de jogo. O texto reafirma a nulidade de contratos anteriores, pois não foram referendados pelo Poder Legislativo, e estabelece as condições das operações para o período de transição, durante o qual o Ministério de Hidrocarbonetos determinará “caso por caso e através de auditorias” os investimentos, amortizações, custos de operação e rentabilidade de cada empresa. O resultado dessas auditorias servirá de base para fixar as condições contratuais.
Entretanto, o valor da produção dos campos com mais de cem milhões de pés cúbicos de gás diários será distribuído em 82% para o Estado (18% de lucros e participações, 32% de Imposto direto de Hidrocarbonetos e 32% com participação adicional para a YPFB) e 18% para as companhias. Para as jazidas com menor exploração, “durante o período de transição será mantida a atual distribuição do valor da produção de hidrocarbonetos” de 50% para o Estado e para os privados, diz o decreto.
Para assegurar a continuidade da distribuição, o decreto dispõe a nacionalização das “ações necessárias para que a YPFB controle, no mínimo, 50% mais 1 das empresas” que tenham passado para mãos de corporações estrangeiras. A elaboração do documento tem sua origem na segunda metade de 2002, depois que o agora governante Movimento ao
Socialismo (MAS) e Evo Morales conquistaram o segundo lugar nas eleições a escassos 20 mil votos de Lozada (1993-1997 e 2002-2003), executor de um amplo programa de privatizações.
O pai do atual assessor da YPFB, Morales Dávila, recebeu a incumbência de preparar o primeiro projeto de nacionalização de hidrocarbonetos do MAS, apresentado em outubro de 2002 ao Congresso, com o apoio de 30
parlamentares e 10 organizações sindicais, mas essa força ainda era insuficiente, recordou Olivera. “Por natureza sou filósofo; por história, um político, e, por necessidade do processo boliviano me vinculei à questão dos hidrocarbonetos”, disse o assessor.
Sentado em uma cadeira em sua casa de um bairro de classe média, com o cigarro entre os dedos e diante de uma imagem estilizada do guerrilheiro argentino-cubano Ernesto Che Guevara, o ideólogo da terceira nacionalização do petróleo respondeu às perguntas da IPS.
P - Qual é a corrente de pensamento que predomina no MAS para nacionalizar os hidrocarbonetos?
R - A primeira vertente nasce da recuperação do território e poder dos povos originários. Na reconquista do espaço, terra, ar, a lógica de vida e sua cosmovisão. Esta nacionalização submete o capital aos interesses da nação em lugar de expropriá-lo. Como dizia Evo Morales, queremos sócios, não patrões. Isto explica a grande presença das Forças Armadas. Se alguma empresa não aceitasse a decisão, nesse mesmo instante os militares e os profissionais assumiriam o controle das operações. Foi uma ação de força.
P - Um marxista questionaria os motivos pelos quais não foram confiscados os bens das companhias.
R - Nos casos do gás e do petróleo, o que lhe confere valor não é o trabalho incorporado, mas o valor de uso representado pela fonte de riqueza.
P - Há 10 anos da privatização dos hidrocarbonetos, a idéia do que foi uma empresa estatal do petróleo parece esquecida. Quais eram as tarefas da YPFB?
R - Operava em toda a cadeia produtiva. Era proprietária do petróleo extraído dos campos, abastecia o mercado interno e exportava gás para a Argentina. Operavam empresas estrangeiras, mas estavam sob controle da YPFB. O Estado recebia royalties, participações complementares e outros mecanismos pelos quais se obtinha 50% do valor da produção. Depois da privatização, a empresa estatal foi desarticulada e teve suas funções limitadas à administração de contratos. Era proibida por lei em “tocar petróleo e cheirar gás”. As empresas privadas assumiram a organização, o
sentido e a direção do setor. Estavam dispostas a captar US$ 5 bilhões para exportar gás natural como matéria-prima (para Estados Unidos e México), mas eram incapazes de investir US$ 40 milhões em um gasoduto para abastecer o ocidente do país. Por exemplo, temos um difícil equilíbrio entre a (pouca) produção e a (grande) demanda de gás
liquefeito de petróleo, mas exportamos gás natural rico em gás liquefeito.
P - Qual era a contribuição da YPFB ao Estado antes de ser privatizada?
R - A YPFB aportava US$ 400 milhões por ano, mas desde 1993, durante o governo de Sánchez de Lozada, a sua participação começou a declinar e começaram a matar a YPFB, afirmando que era uma empresa ineficiente.
P - Durante a privatização, qual foi a contribuição das empresas privadas?
R - Não passava dos US$ 100 milhões e, em alguns anos, foi de US$ 10 milhões. Após o fortalecimento do movimento popular, em outubro de 2003, as empresas estrangeiras aumentaram seus aportes, aceitaram as decisões do governo sobre suas atividades e fixaram um preço para o barril de petróleo para o mercado interno. Para evitar um aumento de preços na gasolina de consumo local, o governo pagava a diferença entre o preço internacional e o preço subvencionado, através de um mecanismo de compensação. As companhias nos emprestavam dinheiro para que comprássemos deles nossa própria gasolina a preço internacional, com uma taxa comercial de 8% ao ano.
P - O que aconteceria se as empresas decidissem deixar o país?
R - No setor petrolífero, as empresas não poderiam retirar seu investimento de imediato, e se o fizessem deveriam transferir suas instalações, dutos e outros bens a novas empresas, e neste momento existem interessadas em comprá-las. As novas empresas virão para um contexto com novas condições e sabendo que aqui o Estado e os bolivianos decidem. No passado, nos disseram que o pagamento de 50% de impostos ocasionaria um bloqueio econômico e a morte da indústria petrolífera, mas agora que se aplica 82% de impostos nos campos San Alberto e San
Antonio (da Petrobras), ninguém diz que morrerão porque sabemos que ainda assim terão lucro. Os dois megacampos produziam cerca de US$ 940 milhões anuais e (desde a Lei de Hidrocarbonetos, em setembro de 2005) deviam tributar a metade, US$ 470 milhões. Agora, pagarão US$ 780 milhões por ano, aproximadamente.
P - Como procederão no caso de uma demanda em um tribunal arbitral?
R - Não têm contratos válidos para nos processarem. E se o fizerem o Estado boliviano pode se negar a responder a um tribunal arbitral. Embora continue o processo à revelia, e se dentro de sete anos nos vencerem, perguntaremos ingenuamente: Como farão cumprir os laudos? Não há laudo arbitral contrário a um Estado soberano que tenha sido executado à força, e não existe legislação internacional que determine um mecanismo para cobrar um laudo arbitral contra um Estado. A maioria dois países tem arbitragens. Brasil, Argentina e Cuba, e não caem e não são bloqueados.
P - O Estado boliviano não posou de oportunista ao nacionalizar um negócio onde foram injetados US$ 3,5 bilhões desde 1996? Aparentemente, se desfizeram da equipe adversária e ficaram com sua bola.
R - Tínhamos nossa equipe e veio um treinador que substituiu os jogadores estrangeiros. Ficou com nossa bola, com o campo e se fez dono do jogo. A bola e o campo voltam a ser nossos, e o jogador estrangeiro se submete ao novo técnico. Uma auditoria determinará se houve essa inversão e se a recuperaram total ou parcialmente.
P - Como se garantirá no futuro que os movimentos sociais não influam novamente em uma mudança de regras para
investimentos estrangeiros?
R - Estamos seguros de que mais de 80% da população estão de acordo com a nacionalização, que nasceu do referendo de julho de 2004, no qual nos ordenavam recuperar a propriedade dos hidrocarbonetos. Vamos ser duríssimos com as empresas, mas garantiremos contratos seguros. Aceitam ou partem.
P - A YPFB voltará a atuar na cadeia produtiva?
R - Trinta e dois por cento de San Alberto e San Antonio serão destinados à YPFB, que se converte em sujeito de
crédito e sócio forte para um investimento. Mais cedo do que mais tarde, o povo receberá notícias de que a empresa
estatal voltará à exploração. Nacionalizar toda a cadeia produtiva teria sido um pulo no vazio. No dia seguinte estaria
paralisado o fornecimento de combustível. A nacionalização de 51% das empresas que pertenceram à YPFB antes da
privatização garantiu a continuidade de todas as operações.
P - Em que medida influiu o modelo venezuelano?
R - Este regime é diferente do aplicado pelos irmãos da Venezuela. À margem de acusações fáceis sobre uma decisão
influenciada, os especialistas do setor sabem que o conceito de associações mistas é diferente do modelo boliviano.
P - Cuba contribuiu ideologicamente com o processo de nacionalização?
R - Cuba significa um guia para os movimentos sociais latino-americanos, mas quanto ao setor do petróleo, nosso
estilo é diferente. No caso cubano, o Estado comercializa uma parte da produção, enquanto na Bolívia o Estado se
encarrega de comercializar 100%.
P - A imprensa informou sobre a interpelação a Morales pelos presidentes Lula e Nestor Kirchner, da Argentina, por
causa da nacionalização sem aviso. Qual sua opinião?
R - Na cúpula de presidentes em Iguazu, as três grandes economias da América Latina (incluída a Venezuela) tiveram
de reconhecer o direito soberano da Bolívia em decidir sobre seus recursos naturais. A partir de agora conta com um
novo ator importante para negociar: o Estado e o Governo.
P - Quanto influiu a demanda urgente por gás natural no Brasil e na Argentina para a decisão final?
R - Foram analisadas as condições do mercado e a conjuntura regional e internacional do setor, o que permitiu
decisões firmes e atrevidas. O verdadeiro atrevimento é ter existido a coragem de tomar medidas soberanas sem
consultar o Brasil, a Argentina, os Estados Unidos e a Comunidade Européia.
(Envolverde, 15/05/06)
http://www.envolverde.com.br/materia.php?cod=17341