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2006-05-16
Sempre houve dificuldade em definir o campo de organizações que não se encontra nem no poder público e nem no mercado. Denominações como “sociedade civil organizada”, organizações não-governamentais (ONGs) e terceiro setor são algumas das utilizadas para tentar dar conta da gama de atores que sofreu explosão nos últimos 15 anos. A variedade de formas de associações refletiu na pluralidade de figuras jurídicas e na respectiva legislação fragmentada do setor. No esforço de tentar harmonizar a legislação e nivelar determinados mecanismos, sobretudo no que tange à imunidade tributária e aos incentivos fiscais, entidades ligadas ao Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) lançou esta semana o projeto “Marco Legal do 3º Setor”.

Para debater os propósitos da iniciativa, o diagnóstico sobre a legislação do terceiro setor e as alternativas de melhoria nas normas, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados realizou na última semana uma audiência sobre o tema. “O Brasil carece de legislação abrangente e coerente para o terceiro setor, uma legislação que facilite a participação daqueles que juntam esforços por um mundo melhor, um marco legal estável, que respeite a liberdade e atuação e organização e dê segurança jurídica para a atuação destas entidades”, defendeu Hugo Barreto, presidente do GIFE e integrante da Fundação Roberto Marinho.

A tentativa tem como grande desafio a diversidade associativa, política e jurídica destas organizações. Hoje existem grupos diversos neste grande universo, que segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Avançadas (Ipea) e do IBGE compreende cerca de 270 mil organizações. Todas elas estão enquadradas em três categorias jurídicas: entidades confessionais (religiosas), associações civis e fundações privadas sem fins lucrativos. Neste bolo é possível diferenciar as entidades religiosas (igrejas e afins), as envolvidas com ações diretas de assistência social (como abrigos e centros de atendimento), institutos e fundações empresariais e associações de interesse mútuo (como clubes cuja finalidade é o bem estar apenas dos associados). Fazem parte também grandes fundações sem fins lucrativos da área da saúde e da educação (hospitais e universidades) e um conjunto de organizações de perfil político transformador, que atuam com a defesa e promoção de direitos.

Os representantes do GIFE presentes à audiência avaliaram que as normas específicas existentes para cada setor impedem a socialização, para os diversos tipos de organizações, dos mecanismos positivos de estímulo ao desenvolvimento de suas atividades e mantêm diversas brechas que prejudicam o trabalho das entidades. Um caminho para resolver o problema seria simplificar a legislação. “As leis atuais causam dúvidas e confusão no judiciário. Quanto mais sofisticada é a norma, mais ela dá margem a interpretações e, por conseqüência, à corrupção”, bateu Eduardo Szazi, advogado do GIFE e autor do livro “Terceiro Setor: regulamentação no Brasil”.

A “harmonização” passaria por um controle eficiente e mais constante da gestão de recursos públicos e pela ampliação dos incentivos fiscais e financeiros a outros grupos dentro do terceiro setor, sobretudo as fundações e institutos de empresas, para além das entidades filantrópicas e com o Certificado de Entidade de Assistência Social (únicas duas figuras que possuem isenção de tributos e incentivos fiscais). “Se o dinheiro é para o interesse público, por que pagar impostos?”, defendeu Szazi. Os representantes e fundações buscaram justificar seu pleito demonstrando seu ‘peso’ no ‘PIB das ações sociais’. Hoje as 85 organizações associadas ao GIFE injetam no conceito criado pelo grupo de ‘investimento social privado’ cerca de R$ 1 bilhão de reais, tendo como principais áreas a educação, cultura e esporte e assistência social.

A concepção de que o investimento social privado substituiria a ação do Estado e, portanto, poderia ser compensado pelas organizações e pelas empresas que doam a estas organizações foi contestado pelo deputado Nelson Pelegrino (PT-BA). “Muitas entidades acham que o dinheiro de seus tributos não será bem aplicado, mas elas precisam ter a certeza de que o dinheiro do Estado está sendo aplicado para a garantia de direitos”.

Marketing Social
Entre as matérias existentes no Congresso sobre a discussão feita na audiência está a PEC 281/2004, que concede imunidade tributária às Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e o PL 1220/03 que permite deduzir do imposto de renda doações a entidades filantrópicas que atuam na área da infância e adolescência. A idéia é facilitar, para além da tributação das organizações do chamado terceiro setor, a doação de empresas através de isenções e deduções do imposto de renda.

Para as fundações originárias de grupos econômicos e que recebem grande parte dos recursos de suas empresas-mãe (como a fundação O Boticário, Roberto Marinho, Itaú e Bradesco), a aprovação de deduções para as fontes financiadoras é um ótimo negócio para as empresas. Elas podem praticar o chamado marketing social abatendo do imposto de renda estes investimentos. Assim, suas próprias fundações teriam mais recursos em curto período de tempo.

No entanto, para Eduardo Elias Romão, do Ministério da Justiça, antes de fazer qualquer alteração nas normas referentes ao terceiro setor é preciso conhecer que campo é este, quantas e de quais perfis são as organizações e sua relação com os recursos públicos. Ele criticou a criação do título de OSCIP como uma credencial de entidades de ‘interesse público’ e que, portanto, teriam mais legitimidade para uso dos recursos públicos. As OSCIPS, segundo Romão, não são necessariamente entidades com história. O título é concedido a quem quer desenvolver atividades de interesse público. “Hoje, 960 das 3 mil OSCIPs registradas no Ministério da Justiça sequer atualizam endereços desde 1999 [quando a Lei que cria este tipo de organização foi promulgada]. Não se sabe o que estas entidades fazem, o título é apenas uma roupagem”, disse.

Para Romão, é preciso construir um sistema eficiente de informações, que faça os diversos cadastros do governo dialogar, no sentido de obter um panorama minimamente fiel do setor. A partir dos contatos de todas estas organizações, deveria ser feito um diálogo para identificar as necessidades de cada um dos diversos grupos que compõem este campo. A seguir, ele defende a revogação de leis como a que cria o título de ‘finalidade pública’ (promulgada em 1935 como instrumento de reconhecimento a entidades que desenvolviam ações de Estado, sobretudo as Santas Casas, que desempenhavam funções na área da saúde e assistência social). Só aí seria possível discutir os mecanismos de financiamento e gestão de recursos públicos aplicados por meio destas organizações.

Para Alexandre Ciconello, da Associação Brasileira de ONGs (Abong), é preciso, sim, harmonizar a legislação das organizações da sociedade civil, mas a prioridade não passa por conceder isenções fiscais à fundações, mas por garantir a liberdade associativa das entidades deste campo, promover a abertura do Estado para o controle social por parte da sociedade civil e aprimorar os mecanismos de controle da gestão de recursos públicos. Desenvolver este conjunto de ações, diz, passa por entender que há uma diversidade tão grande de formas associativas fora do Estado e do mercado que é quase impossível falar em um terceiro setor. “Esta fala homogeneíza atores e finalidades diferentes, suprime conflitos colocando uma aura de ‘todos unidos pela solidariedade’”.

Um exemplo são os próprios braços sociais de algumas empresas, que muitas vezes existem não para uma finalidade transformadora, mas sim para agregar valor à imagem da companhias. Ele cita como exemplo a Nike, que após a divulgação de informações sobre o uso por parte do grupo de trabalho escravo em países da Ásia teve queda no valor de suas ações de cerca de 20%. “A imagem vale dinheiro para as empresas, e isso não pode ser igualado à atuação de diversas organizações que há mais de 20 anos lutam por um país diferente com garantia real de direitos para as pessoas”.

Para Ciconello, o discurso do marco legal do terceiro setor traz outro risco, se combinado ao frenesi de denúncias de fraudes relacionadas a ONGs – cujos últimos exemplos são os casos do repasse irregular de recursos para a pré-campanha de Anthony Garotinho: o de normas que, sob o argumento do aplicação de recursos públicos neste campo, podem avançar para o controle político das organizações. Como exemplo, ele cita Projeto de Lei do senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR), que dá ao Executivo o poder de cassar o registro de uma associação civil se ela não obedecer ‘os bons costumes’ e o ‘bom cumprimento da ordem’.

Ao final da audiência, o deputado Nelson Pelegrino concordou com a necessidade de um novo marco regulatório, mas cobrou dos integrantes do GIFE propostas mais concretas para resolver os problemas apresentados e “harmonizar a legislação”. Nas poucas cadeiras ocupadas por espectadores (uma vez que o quórum de deputados foi quase zero), ficou a certeza da importância do tema, mas predominou o estranhamento de uma audiência pública sobre tema tão espinhoso ter sido composta apenas por um segmento.
Por Jonas Valente, Agência Carta Maior

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