Premiado biólogo americano diz que ciência e religião deveriam se unir na defesa da biodiversidade - Entrevista
2006-05-16
Autor de um celebrado estudo sobre a fartura de seres vivos no planeta,
chamado Diversidade da Vida, o biólogo americano Edward Wilson foi um
dos pioneiros a alertar sobre a extinção em massa de espécies causada
pela atividade humana no século XX. Em sua mais recente empreitada –
cujo resultado está no livro A Criação, a ser publicado em setembro nos
Estados Unidos –, ele analisou as relações entre religião e ciência e
propôs uma solução para o confronto ideológico nesse campo. "Religiosos
e cientistas deveriam ter um objetivo comum: defender a natureza, porque
dela depende a criação humana", diz Wilson. Fundador da sociobiologia,
ciência que estuda as bases genéticas do comportamento social dos
animais, inclusive o ser humano, ele ganhou duas vezes o Prêmio Pulitzer
– por Formigas, inseto do qual é o maior especialista mundial, e Sobre a
Natureza Humana, em que estuda o modo como a evolução se reflete na
agressividade, na sexualidade e na ética humana. Aos 76 anos, aposentado
mas em plena atividade como professor e escritor, Wilson concedeu a
seguinte entrevista de seu escritório na Universidade Harvard, nos
Estados Unidos.
Veja – Mais de 80% da população dos Estados Unidos não acredita na
teoria da evolução. Trata-se de um fenômeno tipicamente americano?
Wilson – Para 51% dos americanos, a espécie humana foi criada por uma
força superior alguns milhares de anos atrás. Outros 34% acreditam que
houve uma evolução guiada por Deus. Os 15% restantes dizem que os
cientistas estão corretos. Esses números são extraordinários porque
representam exatamente o oposto do que pensam os europeus. Na Europa,
40% da população dá razão à tese de que as espécies evoluíram pela
seleção natural. Apenas uma minoria concorda com os criacionistas, que
descartam a teoria da evolução.
Veja – O que explica o vigor do criacionismo, a ponto de estar em
cogitação ensiná-lo nas escolas americanas, em oposição à teoria da
evolução das espécies?
Wilson – Algumas organizações religiosas estão conseguindo introduzir no
governo americano a tese do design inteligente. Isto é, que foi Deus
quem guiou a evolução. Ajuda o fato de termos um presidente, George W.
Bush, que acredita que Deus fala com ele quando toma certas decisões ou
vai à guerra. Isso fortalece as crenças fundamentalistas mais radicais
da população. Para completar, após os atentados de 11 de setembro, a
população americana, sentindo-se vulnerável, agarrou-se à idéia de que o
país precisa se voltar mais para a religião. Em meu próximo livro, A
Criação, faço um apelo às pessoas religiosas. Peço que deixem de lado
suas diferenças com as pessoas seculares e os cientistas materialistas,
como eu, e se juntem a nós para salvar o planeta. A ciência e a religião
são as duas forças mais poderosas do mundo. Para ambas, a natureza é
sagrada.
Veja – O senhor sustenta existir uma relação direta entre a seleção
natural e o sentimento religioso. Qual é?
Wilson – A religião está sempre dizendo às pessoas que sobrevivam, e
esse é um princípio básico da seleção natural. A religião estimula a
mente humana a transpor as dificuldades, a juntar-se a outros indivíduos
e a se comportar de maneira altruísta em favor do grupo. O objetivo é a
sobrevivência do grupo. Isso explica por que as religiões são tão
tribalistas.
Veja – Qual é o erro da teoria do design inteligente, a idéia de que a
complexidade dos organismos vivos é a melhor prova da existência de um
projetista divino?
Wilson – O único argumento dos defensores do design inteligente é que a
ciência não consegue explicar todos os detalhes da evolução e dos
fenômenos naturais. Para eles, isso é o suficiente para justificar a
crença numa força sobrenatural por trás do inexplicável. Obviamente, não
se trata de um argumento científico. A motivação dos cientistas é
justamente a de descobrir a verdade sobre o que ainda não se consegue
explicar. Ao adotar a crença de que a evolução é uma invenção de Deus, a
religião coloca em risco sua credibilidade e prestígio. Se os defensores
do design inteligente tivessem evidências da existência de forças
sobrenaturais nos processos físicos e biológicos, os cientistas seriam
os primeiros a estudar esses fenômenos.
Veja – É possível aceitar a teoria da evolução e, ao mesmo tempo, ser
religioso?
Wilson – Sim, claro. Eu próprio me considero um espiritualista. Acredito
na grande força do espírito humano. Mas não creio em vida após a morte
ou em uma alma separada do corpo e da mente. A criatividade, a estética,
o sentimento de totalidade e o amor são essencialmente parte do
funcionamento da mente. Sabemos que o cérebro se comporta de maneira
diferente quando ocorrem mudanças químicas no organismo ou quando nos
machucamos. Isso sugere que a essência humana depende de um sistema
celular complexo. Não há incoerência alguma em acreditar que os
sentimentos têm uma base física e, ao mesmo tempo, ter uma visão
espiritual da mente humana.
Veja – O senhor não se sentiria reconfortado se soubesse que existe vida
após a morte?
Wilson – Pense no que significaria passar o resto da eternidade no céu.
Não fomos feitos para isso. A mente humana foi construída para durar por
um tempo limitado. Ultrapassar esse limite seria obrigar o indivíduo a
uma existência infernal. Uma pesquisa com a elite científica dos Estados
Unidos mostrou que 85% dos pesquisadores não se importam se existe ou
não vida após a morte. Eu não me importo.
Veja – O senhor afirmou certa vez que se considera um deísta provisório.
O que quer dizer com isso?
Wilson – Primeiro é preciso definir teísmo e deísmo. O teísmo é a crença
de que Deus intervém nos assuntos humanos. Deus seria capaz de fazer
milagres e está diretamente ligado ao discurso humano. Já o deísta é
aquele que aceita a possibilidade de existir uma força superior que
estabeleceu as leis responsáveis pela criação do universo. O deísta, no
entanto, não acredita que Deus esteja envolvido nos assuntos diários dos
seres humanos. Enquanto não soubermos dar uma melhor explicação para o
início do universo, considero-me um deísta provisório. A ciência está
avançando rapidamente. Quem sabe em breve os físicos já possam explicar
de onde viemos.
Veja – Muitos críticos dizem que a ciência é uma espécie de religião e
que a teoria da evolução exige devoção. O senhor concorda?
Wilson – Não. Existe uma grande diferença. A religião exige fé, uma fé
sem questionamentos. A ciência não tem nada parecido com isso. Baseia-se
em um conjunto de conhecimentos acumulados e tem uma trajetória de
agregar mais e mais informações que explicam o mundo. É um processo de
busca, de exploração e descoberta. Totalmente diferente de religião.
Veja – O senhor vê progresso na evolução?
Wilson – Sim, porque em bilhões de anos a evolução tem produzido
espécies cada vez mais complexas, um maior número de organismos e
ecossistemas mais sofisticados. Se tomarmos exemplos isolados, no
entanto, veremos que nem sempre a evolução significa progresso. Afinal,
ela é fruto de mutações e mudanças genéticas aleatórias. Há casos de
parasitas que perderam os olhos e de animais que perderam os pés. Se
complexidade é progresso, então essas espécies regrediram.
Veja – O fato de o ser humano ter evoluído a ponto de controlar a
natureza como nenhum outro animal nos dá o direito de fazer o que
quisermos com as outras espécies?
Wilson – A espécie humana sem dúvida é a mais sagrada do planeta.
Afinal, é a mais inteligente e a única civilizada. Nos estágios iniciais
da nossa evolução, quando os seres humanos viviam da caça e em bandos, o
objetivo era derrotar a natureza, porque isso era uma questão de
sobrevivência. Hoje, derrotar a natureza significa destruir parte do que
resta de vida na Terra. Temos de saber quando parar. Estamos arruinando
a natureza só para abrir um pouco de espaço para mais seres humanos.
Isso não é progresso, nem sob o aspecto moral, nem como opção para
garantir o futuro da humanidade. Nós precisamos da natureza para
garantir a produtividade na biosfera. A espécie humana foi bem-sucedida
demais.
Veja – Um estudo da ONU estimou que em 2050 a população da Terra
atingirá o pico de 9 bilhões de pessoas, para então estabilizar. Como
podemos melhorar a situação econômica de tanta gente e, ao mesmo tempo,
impedir a destruição da natureza?
Wilson – A maioria dos especialistas acredita que os recursos existentes
na Terra suportariam essa superpopulação sem destruir a natureza. É
preciso aumentar a produtividade da terra, e, para isso, temos de
utilizar sementes geneticamente modificadas. A espécie humana depende de
apenas vinte tipos de planta para se alimentar. Arroz, milho e trigo são
as principais. Existem, no entanto, mais de 50.000 plantas cultiváveis.
Muitas delas podem se tornar viáveis economicamente com a modificação
genética. Se soubermos preservar o que restou da natureza e torná-la
mais produtiva, conseguiremos alimentar os 9 bilhões de pessoas
previstos para 2050.
Veja – Por que existe resistência tão grande aos alimentos geneticamente
modificados?
Wilson – O primeiro medo é o de que existam riscos ambientais no uso de
transgênicos. Há quem tema, por exemplo, que possam dar origem a
superbactérias, resistentes a qualquer tipo de remédio. Essa é uma visão
hollywoodiana. Não existem evidências de que isso possa ocorrer. Já há
as superbactérias, mas elas são naturais. Em geral são espécies de
outros países ou continentes trazidas sem querer em navios ou aviões. Em
ambientes sem a competição de outras espécies, essas bactérias se
espalham e acabam se tornando pestes sérias. O segundo temor é o de que
os alimentos transgênicos possam ser prejudiciais à saúde humana. Até
agora também não há evidências disso, apesar dos inúmeros estudos. Nos
Estados Unidos, 40% dos alimentos consumidos pela população são
geneticamente modificados. Há quem diga que isso não é natural. Bobagem.
Na prática, temos feito isso há 10.000 anos. Desde que a agricultura foi
inventada, criamos plantas e animais modificando sua genética e
escolhendo as melhores espécies. Isso não é diferente de introduzir
novos genes diretamente em uma espécie. Não é o gene que interessa, e
sim se o produto criado com ele é bom.
Veja – Por que é tão urgente preservar a biodiversidade do planeta?
Wilson – Um cálculo feito em 1997 por biólogos e economistas mostrou que
as espécies de todos os ecossistemas contribuíram com 30 trilhões de
dólares em "serviços", como limpeza e retenção de água, regeneração de
solo e limpeza da atmosfera. Esse valor era, naquele momento, próximo ao
de toda a produção humana. Dependemos da biodiversidade mais do que
imaginamos. Outro aspecto é que estamos começando a compreender como as
espécies que surgiram 1 milhão de anos atrás foram extintas e
substituídas por outras. Isso é importante para entendermos a origem da
vida. Precisamos desse conhecimento. Os cientistas identificaram apenas
10% das espécies e organismos existentes no planeta. Conhecer os 90%
restantes tem um valor inestimável.
Veja – Alguns cientistas dizem que a espécie humana está vivendo uma
evolução acelerada. A tese é a de que a humanidade está começando a
decidir sobre sua própria evolução. O senhor concorda?
Wilson – Sim, em meu livro dei a esse fenômeno o nome de evolução
voluntária. Estamos próximos de atingir um estágio de desenvolvimento em
que poderemos escolher o caminho da nossa evolução. Em breve poderemos
eliminar totalmente doenças genéticas, como fibroses, simplesmente
substituindo os genes defeituosos. Essa é uma forma de conduzir a
evolução. A questão é se deveria ser permitido usar a engenharia
genética para melhorar indivíduos humanos. Em alguns anos, os pais
poderão escolher se o filho será um bom atleta ou um bom músico. Devemos
permitir isso? Trata-se de uma questão ética que ainda não foi analisada
em profundidade. Simplesmente porque ainda não estamos enfrentando os
problemas relacionados a essas possibilidades tecnológicas. Em algum
momento, a humanidade deverá decidir sobre isso, e aí teremos a evolução
voluntária. Precisaremos ser muito cuidadosos ao mudar a natureza, pois
é ela que nos faz humanos.
Veja – Qual o limite?
Wilson – Não sei, está fora do meu alcance. Precisamos de mais
conhecimentos sobre genética, saber melhor o que somos, qual é a
natureza humana e quais as conseqüências dessas mudanças na organização
da nossa sociedade atual. É uma grande pergunta. Nós mal conseguimos
entender a nós mesmos nas condições atuais. Tentar entender como
seríamos se nos alterássemos geneticamente é um passo gigantesco.
Veja – Em sua opinião, é eticamente aceitável tentar encontrar uma
explicação genética para o comportamento homossexual?
Wilson – Sim. Quanto mais soubermos, quanto mais verdades tivermos, mais
teremos capacidade de resolver questões que mobilizam a sociedade. Já
existem algumas evidências de que a homossexualidade acontece por um
componente genético hereditário. Parte da variação da preferência sexual
deve-se aos genes. Se soubermos o que está envolvido nisso, poderemos
tomar decisões racionais e morais sobre o assunto. Se a ciência provar
que a homossexualidade tem uma base genética e que o gene está bem
distribuído pela população, os gays vão poder dizer: "A evolução natural
nos fez assim, e, por isso, não há nada de errado no que fazemos e no
tipo de vida que levamos". Esse é um ótimo argumento. Por outro lado, se
descobrirmos que a homossexualidade não tem nenhuma origem genética,
ganhará força a tese de que esse comportamento sexual tem como causa um
trauma ocorrido na infância. Os defensores dessa tese terão argumentos
para querer curar ou corrigir os homossexuais. Até descobrirmos a
verdade sobre isso, essa discussão vai continuar indefinidamente. Por
isso, quanto mais soubermos, mais livres seremos.
(Veja, 17/05/06)