Amadurecem idéias sobre cobrança pelo uso da água
2006-05-16
Os primeiros meses da cobrança pelo uso da água na bacia federal do rio Paraíba
do Sul foram marcados pela desconfiança generalizada de que uma boa idéia tinha
sido seqüestrada pelo Tesouro. Motivos não faltavam para justificar o ceticismo.
Desde o início da cobrança, em março de 2003, boa parte dos recursos recolhidos
acabou retida pelo próprio. Para salvar a credibilidade da cobrança, a ANA
(Agência Nacional de Águas) teve que repassar dinheiro de seu orçamento ao
Ceivap (Comitê da Bacia do Rio Paraíba do Sul) para cobrir o buraco.
Três anos depois, boa parte das razões para o pessimismo foi dissipada. Com a
edição da lei 10.881, de junho de 2004, o Tesouro não pode mais contingenciar
os recursos da cobrança, que são depositados em uma conta da ANA e em cerca de
dez dias são transferidos para as contas das duas agências de bacias federais
hoje em funcionamento, a Agevap (Agência da Bacia do Paraíba do Sul) e Agência
de Água PCJ (bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí).
O plano de investimentos no Paraíba do Sul está sendo cumprido e algumas dezenas
de projetos já foram concluídos ou estão em andamento, como estações de
tratamento e coletores de esgoto, combate à erosão e monitoramento de efluentes
industriais. Um total de R$ 31,5 milhões foram investidos entre 2003 e 2005 em
projetos aprovados pelo Ceivap. Do montante, R$ 12,5 milhões vieram da cobrança
pelo uso da água e o restante foi alocado como contrapartida de prefeituras e
outras fontes oficiais e privadas. Para 2006, o Ceivap prevê arrecadar
aproximadamente R$ 12 milhões com a cobrança, embora a inadimplência, superior a
10%, deva corroer parte da estimativa.
No comitê PCJ, que iniciou a cobrança em janeiro deste ano, as primeiras
indicações são de que o modelo está funcionando com sucesso. A arrecadação
alcançou perto de R$ 2,5 milhões de janeiro a março, com uma inadimplência de
apenas 3%, dentro das previsões do comitê, diz Luiz Roberto Moretti,
secretário-executivo do PCJ, cujas bacias localizam-se em uma das regiões
econômicas mais importantes do país, abarcando áreas dos estados de São Paulo e
Minas Gerais. O PCJ conta com um respaldo de peso, o Consórcio PCJ - criado em
1989 por prefeituras e empresas das três bacias -, que assumiu temporariamente
as funções de agência da bacia, instrumento necessário para o repasse dos
recursos a prefeituras, empresas de saneamento e Ongs.
Até o ano passado, o PCJ contava somente com os recursos do Fehidro (Fundo
Estadual de Recursos Hídricos), do Estado de São Paulo, algo perto de R$ 5
milhões por ano, para investir em projetos de saneamento ambiental e melhoria
da qualidade da água. Como o PCJ estima uma arrecadação de R$ 10 milhões em
2006 com a cobrança, o montante disponível para investimentos deverá triplicar
para perto de R$ 15 milhões este ano, cifra que inclui o aporte do Fehidro.
A expectativa com a cobrança levou prefeituras, consórcios municipais e empresas
de saneamento a apresentarem 100 projetos de investimento ao PCJ. Não apenas o
número de propostas é recorde, como também representa o dobro apresentado no
ano passado. No entanto, como não há dinheiro para atender a todos os pedidos,
apenas 37 deverão ser contemplados.
“Não se vai resolver o problema da degradação dos recursos hídricos apenas com
a cobrança da água. Mas ela funciona como um fator disciplinador do uso e
alavanca investimentos”, diz Moretti.
Prioridade para o esgoto
Na bacia do rio Paraíba do Sul, que abrange áreas dos Estados de São Paulo, Rio
de Janeiro e Minas Gerais, a recuperação ambiental da bacia terá prioridade
este ano. O Ceivap decidiu aumentar de 50% para 62% a fatia da cobrança da água
reservada a obras de tratamento de esgoto.
Em Jacareí, município paulista do Vale do Paraíba, foram concluídas em abril do
ano passado as primeiras obras de saneamento em uma bacia federal financiadas
com verba proveniente da cobrança. Antes, o percentual de esgoto tratado da
cidade era de 2% do total despejado no rio Paraíba do Sul. Com o investimento
de R$ 2,55 milhões na estação de tratamento de esgoto do distrito de São
Silvestre, a parcela no final de 2005 tinha aumentado para 20% e deve chegar a
25% em dezembro deste ano, segundo Renan Caratti, presidente do SAAE (Serviço
Autônomo de Água e Esgoto de Jacareí) .
Do valor investido, R$ 1,3 milhão vieram da arrecadação da cobrança pelo Ceivap
e o restante foi bancado pela VCP (Votorantim Celulose e Papel), que procurava
na época como cumprir sua obrigação de investir em um projeto ambiental,
condicionante para a concessão de licença para a ampliação de sua unidade
industrial de Jacareí. “Juntamos a fome com a vontade de comer”, contra Caratti.
No plano de investimentos do Ceivap para 2006, Jacareí foi contemplada com
quatro projetos, valendo um total de R$ 1,608 milhão, 76% da cifra vindo da
cobrança da água.
Jacareí é apenas um dos casos de sucesso na aplicação do dinheiro arrecadado na
cobrança da água. Muriaé, município mineiro da Zona da Mata, conseguiu sair do
zero para 30% do esgoto tratado nos dois últimos anos. Indústrias como a Kaiser
e a CSN também reduziram bastante a captação no Paraíba do Sul, investindo
pesadamente na recirculação interna da água consumida por suas fábricas, e de
melhoria no tratamento dos efluentes lançados na bacia.
Controle de perdas no Piracicaba
Dos 37 empreendimentos aprovados pelo PCJ para investimentos com os recursos da
cobrança este ano, oito são de projetos de controle de perdas de água. Francisco
José de Toledo Piza, assessor da Diretoria de Sistemas Regionais da Sabesp,
conta que as perdas diárias no Brasil passam dos 350 litros por habitante,
tomando como base o encanamento entre a residência e a rede. O máximo de perdas
aceitáveis seria de 200 litros.
Um dos projetos da Sabesp aprovados pelo PCJ custará R$ 3 milhões (60% desse
valor será pago com dinheiro arrecadado pela cobrança) e visa instalar
macromedidores de perda de água em cinco cidades, incluindo Piracicaba, um dos
principais centros econômicos do interior paulista. “Esse é uma etapa inicial
que tem como objetivo reduzir as perdas de água em 40% naquela região nos
próximos dez anos”, assinala Piza.
Com atuação em 23 municípios da bacia do PCJ, a Sabesp recebeu sinal verde do
comitê para investir também na ampliação e atualização tecnológica dos sistemas
de esgoto de Nazaré Paulista e Cabreúva. As obras de Nazaré Paulista vão
beneficiar uma população de 12,8 mil habitantes e contribuir para os esforços
de despoluição das águas do Sistema Cantareira, que abastece a Grande São Paulo.
Desafios
No entanto, muitos desafios ainda restam para consolidar o modelo de gestão por
bacias hidrográficas. Um deles é evitar a judicialização da cobrança por
usuários, risco que ocorreu quando a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), de
Volta Redonda (RJ), impetrou duas ações contra a ANA em outubro de 2003,
alegando incertezas quanto à devolução do dinheiro à bacia e a falta de
pagamento por alguns setores, como o de mineração. Desde então, a empresa paga
seus boletos em juízo. De acordo com estimativas preliminares da ANA e do
Ceivap, os cofres da Ageivap deixaram de receber ao menos R$ 5 milhões da CSN
na conta feita até dezembro passado.
A 23a Vara Federal do Rio de Janeiro extinguiu em fevereiro passado as duas
ações da CSN, que impetrou um embargo declaratório à sentença e aguarda a
publicação da decisão da Justiça para decidir se vai recorrer dela ao Tribunal
Regional Federal. A CSN seria o maior contribuinte individual da cobrança na
bacia do Paraíba. Este ano, por exemplo, se a companhia pagasse todas as suas
parcelas mensais, injetaria cerca de R$ 2,8 milhões na bacia, que representariam
um quinto da previsão de arrecadação (que inclui a CSN).
Outro nó complicado de resolver é o das PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas).
A Cemig move desde maio de 2004 uma ação contra a ANA questionando o pagamento
da cobrança por suas três PCHs localizadas na bacia do Paraíba do Sul. Em
setembro de 2005, o juiz da 19a Vara Federal de Belo Horizonte julgou
improcedente a ação da companhia mineira, que recorreu ao TRF (Tribunal Regional
Federal) da 1a Região, com sede em Brasília (DF).
O pagamento também vem sendo efetuado em juízo e no final do ano passado o
depósito somava R$ 50 mil. Embora o valor não seja tão significativo, uma
decisão final favorável à Cemig abriria jurisprudência para outras centrais
elétricas contestarem a cobrança.
O problema é que a lei 9.984, de 17 de julho de 2000, que criou a ANA, modificou
leis anteriores aumentando de 6% para 6,75% o percentual da receita das
hidrelétricas destinado à compensação financeira por inundações causadas por
suas barragens. Dos 6,75%, a parcela de 0,75% retornaria para as bacias a
título de cobrança pelo uso da água por qualquer usina hidrelétrica. A Cemig
alega que as PCHs não podem ser obrigadas a pagar pela cobrança, porque são
isentas do pagamento da compensação financeira.
Para Maria Aparecida, do Ceivap, há duas soluções possíveis para o caso das
PCHs. Uma delas seria adicionar um parágrafo na lei 9.984 explicitando a
necessidade de as PCHs pagarem pelo uso da água, conforme negociado em um
projeto de lei que tramita no Congresso Nacional. Outra alternativa, seria a
modificação pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) de um parecer em
que se posiciona contra a definição da cobrança das PCHs pelos comitês de bacia.
Ampliação
É também uma meta dos comitês ampliar a base de arrecadação incluindo na
cobrança novos usuários hoje fora do sistema. O exemplo mais eloqüente do
problema é a operação de transposição das águas do Paraíba do Sul para a bacia
do rio Guandu, responsável por 80% do abastecimento de água da Região
Metropolitana do Rio de Janeiro.
De acordo com a Deliberação 52 do Ceivap, 15% do total arrecadado na cobrança
estadual dos usuários da bacia do Guandu devem ser repassados ao comitê pelo
uso das águas do Paraíba do Sul. E a deliberação precisa ser ratificada pelo
Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Dois terços da vazão do Paraíba do Sul
na região de Barra do Piraí (119 metros cúbicos por segundo, em média) são
transpostos para o Guandu.
Outra possível fonte adicional de recursos é a mineração. Atualmente, o Ceivap
aplica a cobrança apenas nas empresas que retiram areia do leito dos rios. A
idéia, porém, é incluir outros minerais na revisão dos critérios de cobrança em
andamento no comitê. A proposta de revisão deve ser apresentada até agosto de
2006, diz sua secretária executiva.
Malu Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas, da Fundação SOS Mata Atlântica,
defende um “banho de mercado” no funcionamento das agências de bacia. “Aplica-se
para uma entidade mista, formada por setor privado, governo e sociedade civil,
as mesmas regras de repasse de recursos do setor público”, critic Malu,
ressaltando que isso engessa a atuação dos comitês.
A cada dois anos, lembra ela, os repasses de dinheiro para os projetos
aprovados pelos comitês se deparam com a legislação eleitoral, que os proíbe
durante os três meses anteriores às eleições. O coordenador de gestão da
Agevap, Hendrik Mansur, diz que a agência estuda alternativas para contornar
legalmente o obstáculo eleitoral. No PCJ, parte dos convênios com prefeituras e
empresas só poderá ser assinada após as eleições de outubro.
(José Alberto
Gonçalves, O Eco, 14/02/06)
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