Cresce o consumo de frutas e verduras sem aditivos químicos
2006-05-15
Filé de pintado na brasa com molho de cupuaçu é o prato preferido do
farmacêutico-bioquímico Mauro Santili, de 36 anos. A melhor sobremesa do mundo,
segundo ele, é sopa de morango com sorvete de erva-cidreira. Mas não se trata
de um peixe ou de um doce qualquer. São quitutes orgânicos oferecidos pela
cozinha especializada do Empório Siriuba, no bairro dos Jardins, região nobre
de São Paulo. Santili afirma almoçar lá sempre que pode. Mesmo trabalhando em
Cajamar, a 50 minutos de carro. Ele afirma ser um antigo adepto da nutrição
saudável e equilibrada. "Meu interesse aumentou quando morei na Austrália. Lá,
minhas refeições eram quase 100% orgânicas", diz. "No Brasil, isso ainda não é
possível por causa do preço e da oferta limitada de produtos." Mas isso está
mudando rapidamente, porque Santili não está sozinho. Ele faz parte de uma
parcela cada vez mais expressiva de consumidores preocupados em zelar pela
qualidade dos alimentos e em escolher produtos agrícolas que respeitem o meio
ambiente.
O interesse crescente pelo consumo de orgânicos fez proliferar a oferta de
serviços no setor. No mês passado, em São Paulo, foi inaugurada a Baby Burger,
uma hamburgueria que serve produtos livres de agrotóxicos. Grandes redes de
supermercados no país já reservam prateleiras para esses alimentos. Feiras
especializadas brotam em todas as regiões. Empresas organizam estandes que
vendem orgânicos para seus funcionários. Surgiram sites para comercializar
orgânicos. Há sete anos, a agrônoma paulista Marina Pasconn, dona da Caminhos
da Roça, começou a vendê-los por telefone e a entregá-los em domicílio. Naquele
tempo, oferecia meia dúzia de legumes e dois tipos de fruta. O mercado cresceu
tanto que agora, pela internet, a lista de mercadorias negociadas por ela tem
480 itens.
O consumo de produtos livres de agrotóxicos - de alimentos a cosméticos - se
transformou num negócio que cresce 20% ao ano e atrai empresas grandes. A
Citrovita, do grupo Votorantim, já tem a maior linha mundial de suco de laranja
orgânico. Além de carne, o Carrefour exporta uva orgânica. O Brasil já é o
segundo país com maior área desse tipo de manejo, atrás apenas da Austrália. É
um mercado promissor. Nos Estados Unidos, o setor já movimenta US$ 15 bilhões.
Apesar do sucesso evidente, os consumidores enfrentam uma oferta confusa de
orgânicos no Brasil. As questões são múltiplas. Em quem confiar? O que é
orgânico de fato e o que não passa de uma jogada de marketing? E, afinal de
contas, os orgânicos fazem tão bem assim?
Para começar, existem cerca de 25 selos diferentes atestando a procedência de
produtos orgânicos. Se quiser conferir a idoneidade das instituições
certificadoras, o consumidor tem de pesquisar por conta própria. Há empresas,
ligadas a órgãos internacionais, que seguem padrões rígidos de conduta. Outras
atuam sem controle externo. "Pode haver pessoas comprando gato por lebre"L, diz
o agrônomo Jean Pierre Medaets, especialista do Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA). Um dos campeões de confusão é o mel. Para ser considerado
orgânico, a área em volta do apiário, onde as abelhas vão colher néctar, deve
ser livre de agrotóxicos e de outras fontes de contaminação, como lixões. Por
isso, é preciso investigar a propriedade do produtor e também a dos vizinhos.
E, evidentemente, nem sempre é possível fazer isso. Há ainda outra fonte de
confusão. Os supermercados freqüentemente misturam aos orgânicos alimentos
convencionais, integrais e hidropônicos (cultivados na água, mas que recebem
soluções químicas para nutrição e tratamento de eventuais doenças). Nesse caso,
o consumidor pode acabar logrado.
Até o final do ano, o governo federal pretende regulamentar uma lei para
ordenar o setor. Segundo Rogério Dias, coordenador-geral de Desenvolvimento
Sustentável do Ministério da Agricultura, haverá um selo único ä e as
certificadoras terão de ser credenciadas pelo Inmetro. Supermercados venderão
apenas orgânicos embalados. Alimentos a granel serão comprados em lojas e feiras
especializadas. "A regulamentação deve estimular ainda mais o crescimento do
setor. Foi assim nos Estados Unidos e na Europa. Os investidores precisam ter
segurança de que serão respeitados", diz José Pedro Santiago, presidente da
Câmara Setorial de Agricultura Orgânica do Ministério da Agricultura.
Ainda que seja resolvida a questão comercial, restará a questão médica. A
principal razão alegada por quem escolhe um produto orgânico é a preocupação
com a saúde. Supõe-se que esses alimentos não sejam tóxicos e tenham mais
nutrientes. Mas será que eles fazem diferença mesmo? Em princípio, sim.
Pesquisadores da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, nos Estados Unidos,
revisaram 41 estudos e concluíram que os orgânicos examinados apresentavam, em
média, mais micronutrientes, como vitaminas e sais minerais. Mas isso não é uma
lei universal. "A regra é que os orgânicos são mais saudáveis porque não
carregam resíduos químicos", diz Paulo César Stringheta, que pesquisa o assunto
no Departamento de Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal de Viçosa,
em Minas Gerais. "Mas não dá para garantir que qualquer tomate orgânico seja
mais nutritivo que um convencional. Vai depender da área onde ele foi plantado
e também da variedade que o agricultor escolheu."
Muitos consumidores acabam preferindo os orgânicos para compensar a falta de
fiscalização no uso de pesticidas e fertilizantes químicos na agricultura
convencional. Um levantamento divulgado pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária no ano passado revelou que 40% das amostras de cenoura analisadas
tinham doses elevadas de uma substância chamada ditiocarbamato, que pode
provocar náusea, indigestão e até convulsões. Apesar dos abusos comprovados, os
especialistas afirmam que o consumidor não precisa entrar em pânico. Quem
primeiro sofre com as doses excessivas de pesticidas são os próprios
agricultores, que manipulam os produtos diariamente. O consumidor dilui tudo em
meio a uma cesta de outros produtos que come. "Isso não significa que uma pessoa
que ingerir esses alimentos vai ser intoxicada ou morrer amanhã", diz o médico
Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia. Até
porque menos de 3% da dieta do brasileiro é composta de verduras, legumes e
frutas, os alimentos mais suscetíveis a elevadas cargas de agrotóxicos.
Quando o foco é a segurança alimentar, há diferenças mesmo entre os orgânicos.
Alguns podem valer mais a pena que outros. Alimentos convencionais produzidos
em larga escala, como arroz, feijão ou café, geralmente não apresentam resíduos
químicos acima do permitido, por isso pode não haver grande vantagem para a
saúde no consumo desses orgânicos. "Culturas como essas foram mais estudadas ao
longo dos anos e a aplicação de agrotóxicos é muito mais criteriosa", afirma
Amir Gebara, do Laboratório de Resíduos de Pesticidas da Secretaria de
Agricultura do Estado de São Paulo. A pesquisadora Maria Cristina Prata Neves,
da Embrapa Agrobiologia, empresa especializada em pesquisas agrícolas, também
faz uma distinção entre os produtos. "Morango e mamão, só compro orgânicos. Já
mandioca e batata-doce, que são plantas mais rústicas (não exigem tantos
pesticidas), compro convencionais", afirma.
A segunda preocupação comum entre os consumidores de orgânicos é incentivar uma
prática agrícola que preserve o meio ambiente. Agrotóxicos e fertilizantes
químicos são a segunda causa de contaminação da água no Brasil. O rápido
crescimento da exportação brasileira de carne bovina está ligado à destruição
da Floresta Amazônica para a criação de pastos. Só na década de 90, uma área
duas vezes maior que Portugal foi devastada para dar lugar a pastagens ou
plantações de soja para alimentar animais. Na região do Pantanal, ao contrário,
o Carrefour está investindo em carne orgânica para exportação. Além de o gado
não receber antibióticos nem hormônios de crescimento, um dos princípios dessa
produção é que a vegetação local não pode ser destruída para acomodar o rebanho.
Um dos problemas que os defensores dos orgânicos vêem na
convencional é o desequilíbrio ambiental gerado pelas monoculturas, com o
conseqüente aumento do ataque de pragas e o uso de agrotóxicos para combatê-las.
"Dependendo da área e das condições do solo, o manejo convencional pode
inviabilizar a terra em dez ou 15 anos. Depois disso, novas fronteiras têm de
ser abertas", diz o agrônomo Medaets, do MDA. A rotação e a diversidade de
culturas próprias da orgânica, dizem esses defensores, ä ajudam a evitar a
erosão do solo e a cuidar do equilíbrio do ecossistema. Permitem o aparecimento
de pragas, mas elas podem ser combatidas por predadores naturais.
Além do apelo ambiental, os orgânicos dão lucro. "Comecei a tocar minha
propriedade em 1990. Produzia bastante no sistema convencional. Mas, no final,
não sobrava dinheiro porque os gastos eram muito altos. Optei pelos orgânicos e
agora tenho lucro", diz o agrônomo Ricardo Schiavinato, de 38 anos, de Serra
Negra, interior de São Paulo. Ele vende pimentão, tomate, pepino, abobrinha,
leite e iogurte. O fazendeiro afirma que o período problemático é aconversão,
porque o produtor ainda não pode vender com preço de orgânico. "Demorei três
anos. Perdi vacas e bezerros até acertar", afirma.
Ao contrário do que prega o senso comum, lavouras orgânicas podem ser mais
produtivas que as convencionais. A conclusão é dos pesquisadores Jules Pretty
and Rachel Hine, da Universidade de Essex, no Reino Unido. Eles avaliaram cerca
de 30 milhões de hectares de lavouras convencionais transformadas em orgânicas
ou plantações com enfoque ecológico nos países em desenvolvimento. Descobriram
que o cultivo sem agrotóxicos aumentou a produtividade dessas terras em 93%, em
média. O rendimento da lavoura convencional só foi maior em algumas culturas
específicas, como o trigo, em solos e clima ideais para o cultivo. "Se o mundo
inteiro fosse convertido em orgânico, teríamos mais comida que hoje", diz Brian
Halweil, do Instituto Worldwatch, dos EUA.
Para os pequenos produtores agrícolas, os orgânicos podem ser a única saída
para se diferenciar dos grandes grupos. "Decidi mudar porque o mercado de
orgânicos é bom", diz Francisco Valmir Raitz, de 38 anos. Ele se livrou da
química há quase dois anos. Cultiva alface, salsa e cebolinha em Ibiúna, no
interior de São Paulo. Raitz diz que a troca melhorou a qualidade do solo. "Eu
também precisava tratar a terra e devolver tudo o que já tirei dela." O mercado
aquecido também tem incentivado esses produtores a buscar certificação. O
ex-piloto de aviões Marcelo de Brito, de 43 anos, tem duas fazendas no Estado
do Rio de Janeiro. Afirma que há quase dez anos produz e vende frutas, verduras
e legumes sem pesticidas. "Estava vendendo orgânicos com preços de convencionais
por causa da falta do selo", afirma.
Pesquisadores da Universidade de Essex, da Grã-Bretanha, também concluíram que,
se todos os impactos da lavoura convencional no Reino Unido fossem computados
em libras, ela custaria quase três vezes mais que a agricultura orgânica. Os
estudiosos consideraram o impacto de itens como emissão de dióxido de carbono na
atmosfera, erosão do solo, perdas com a biodiversidade e o efeito de pesticidas
na saúde humana.
Mas as eventuais vantagens que os orgânicos carregam têm um preço que nem todos
podem pagar. A advogada paulistana Maria de Lourdes Pereira Campos, de 45 anos,
diz que só compra verduras, frutas e legumes sem agrotóxicos. "Mas ainda não
consegui substituir o leite convencional. Tenho dois filhos pequenos e o consumo
em casa é grande", afirma. No Brasil, um orgânico pode custar mais que o dobro
do produto convencional. Na Europa, os preços dos itens de mais fácil cultivo
e maior oferta, como ervilha e pão integral, são semelhantes. Na Suécia, flocos
de milho orgânicos já são até mais baratos que os tradicionais.
(Época,
15/05/06)