O presidente boliviano em Viena, na Áustria: palco para bravatas
2006-05-15
Como primeiro ato de hostilidade, Evo Morales roubou o patrimônio dos
brasileiros investido na Bolívia e colocou em risco o abastecimento
nacional de gás natural. Depois, encorajado pela docilidade com que o
governo Lula engoliu o desaforo, ele se pôs a dar lição de moral ao
Brasil. Na semana passada, aproveitando as atenções internacionais na
Cúpula União Européia-América Latina, na Áustria, o presidente boliviano
dedicou-se a bater no país de seu "mui amigo" Luiz Inácio Lula da Silva.
A concepção de Morales das relações bilaterais, expressa de viva voz, é
um fascinante exemplo da irresponsabilidade populista, do poder da
fantasia ideológica e da cara-de-pau. O que diz Evo Morales é o
seguinte: o Brasil saqueou os recursos de seu país. A Petrobras, que
investiu 1,5 bilhão de dólares e viabilizou a extração do gás natural
boliviano, opera ilegalmente, sonega impostos e faz contrabando. Vários
países ajudaram a Bolívia (Cuba e Venezuela, por exemplo), mas o Brasil
não está entre eles. O presidente boliviano, que já expulsou uma
siderúrgica brasileira, agora anuncia que vai tomar as terras dos
agricultores brasileiros instalados na Bolívia, alguns deles há trinta
anos. Sua reforma agrária vai começar precisamente pelas terras dos
fazendeiros brasileiros, responsáveis pela produção de um terço da
produção de soja boliviana.
Morales também resgatou do fundo de seu baú de ressentimentos a venda
pelos bolivianos do território do atual estado do Acre. O negócio
ocorreu há mais de um século, e o Brasil pagou 2 milhões de libras
esterlinas e ainda deu à Bolívia terras tiradas ao Mato Grosso. Na
versão propagandista de Morales, tudo o que os bolivianos levaram no
negócio foi "um cavalo". "Nunca, desde que definiu suas fronteiras com
os países vizinhos, o Brasil foi tão desmoralizado no exterior", diz o
diplomata José Botafogo Gonçalves, presidente do Centro Brasileiro de
Relações Internacionais, no Rio de Janeiro. Morales vai invadir o Acre
como fez com as refinarias da Petrobras? É improvável, visto que as
forças armadas bolivianas não dariam conta da empreitada. O Acre
provavelmente se converterá em outra bandeira populista de seu governo,
ao lado da rivalidade com o Chile devida à derrota boliviana numa guerra
do século XIX. O roubo de propriedade brasileira e o discurso populista
são passos decisivos que Morales dá para empobrecer o povo boliviano.
Como a experiência ensina, a riqueza confiscada pelo Estado não será
distribuída entre os bolivianos, mas alimentará o empreguismo e premiará
apenas os amigos do regime. Interessa ao Brasil que a Bolívia reduza a
pavorosa cifra de 67% de miseráveis. Há para isso razões humanitárias e
a preocupação para com a estabilidade sul-americana. Mas existe também a
vontade honesta de ampliar o mercado para as exportações brasileiras. Ao
desapropriar empresas que colaboravam no desenvolvimento e isolar seu
país da economia global, Morales só aprofunda a miséria de seu povo. Se
a China é hoje um parceiro comercial de nível internacional, isso se
deve às reformas econômicas, à abertura de mercado e à atração de
investimentos estrangeiros que conseguiram resgatar da miséria mais de
300 milhões de chineses. Morales planeja fazer o oposto do que fez a China.
Na Bolívia, beleza não é fundamental
É difícil para um país soberano aceitar pacificamente tal intensidade de
desaforos – nem o chanceler Celso Amorim agüentou. Primeiro declarou-se
"desconfortável" com as indelicadezas dos vizinhos e reclamou da
ingerência venezuelana na Bolívia (Chávez respondeu, por escrito, que o
comentário se devia "à ignorância dos nossos amigos brasileiros"). O
chanceler então subiu o tom e passou a "indignado". Por fim, Amorim
ameaça retirar o apoio do Brasil ao projeto de um gasoduto ligando a
Venezuela à Argentina, uma idéia de Chávez. Uma reação tardia, pois o
ministro de Hidrocarbonetos da Bolívia, Andrés Soliz Rada, o "Boca de
Poço", já tinha avisado que a Petrobras não poderia participar do
gasoduto. Na visão dele, porque não serão aceitas empresas de
propriedade de multinacionais. Veja com quem se está lidando: o governo
de Morales é tão despreparado que o ministro de Hidrocarbonetos não sabe
que a Petrobras, empresa que acabou de roubar, é uma estatal, com
participação minoritária de capital privado.
Se faltava um fecho para configurar o efeito desastroso da política
externa do governo Lula, aí está a Bolívia: Morales e seus ministros
demonstram estar convencidos de que não há riscos em tripudiar sobre o
Brasil. "A Petrobras tem mais medo de sair da Bolívia do que nós de
perdê-la", disse o ministro Boca de Poço. Morales está elevando a
temperatura da crise como parte de uma estratégia de se tornar um novo
Chávez. "A maneira como o presidente da Bolívia está seguindo o modelo
de seu colega venezuelano é uma prova contundente da influência de
Chávez sobre Morales", disse a VEJA o venezuelano Alfredo Ramos Jiménez,
da Universidade de Los Andes, em Caracas. Fiel à cartilha de Chávez, o
primeiro passo de Morales foi se apresentar como vingador das injustiças
históricas da Bolívia. Em seguida, ele escolheu um inimigo externo – o
Brasil – e, em um gesto espalhafatoso, com mobilização de tropas, tomou
as propriedades da Petrobras. O terceiro passo do governante boliviano
será usar a popularidade conquistada com a nacionalização para, na
eleição de 2 de julho, formar uma Assembléia Constituinte monocromática
e sem oposição. O objetivo é "refundar" a Bolívia com uma nova
Constituição que lhe permita concentrar poder, da forma como Chávez fez
na Venezuela.
Celso Amorim: reação tardia, fraca e inútil
O governo boliviano parece confiar na promessa feita por Chávez de que a
Venezuela poderá compensar os investimentos brasileiros que deixarem o
país. O problema dessa estratégia é que, ao se aliar com Chávez, Morales
chutou os principais parceiros comerciais de seu país. Metade das
exportações bolivianas vai para o Mercosul, principalmente para o Brasil
e para a Argentina. Outros 30% vão para os Estados Unidos e países do
Pacto Andino, como a Colômbia e o Peru – exatamente os dois países com
os quais Chávez está rompido. As exportações bolivianas para os Estados
Unidos, que alcançam 380 milhões de dólares anuais, devem cair a partir
de 2006, depois que terminar um acordo comercial que nenhum dos dois
países está interessado em renovar. "Como seu projeto de liderança
continental fracassou, Chávez está usando a influência sobre países como
a Bolívia para espezinhar e fazer pressão sobre os grandes da região,
como o Brasil, o Chile e a Argentina", disse a VEJA Jorge Quiroga,
presidente da Bolívia entre 2001 e 2002. Morales está demonstrando
empenho em seguir seu mestre.
Um vexame histórico
O jurista paulista Luiz Olavo Baptista tem uma função estratégica nas
disputas econômicas internacionais. Há quatro anos, ele ocupa uma das
sete cadeiras do órgão de apelação da Organização Mundial do Comércio,
uma espécie de suprema corte global dos negócios. Baptista ficou
indignado com a reação do governo Lula à invasão das refinarias da
Petrobras promovida pelo governo boliviano. Nesta entrevista ao repórter
Fábio Portela, ele diz que Lula submeteu o Brasil a um vexame histórico.
A Bolívia desrespeitou as regras do Direito Internacional ao tomar as refinarias da Petrobras?
A principal regra do direito internacional é que os Estados devem se
tratar com respeito. A Bolívia, ao contrário, humilhou o Brasil. O que o
presidente Evo Morales fez é inaceitável sob qualquer ponto de vista.
Estou inconformado com o episódio e tenho a impressão de que o Brasil
inteiro também está. O pior é receber o desaforo, a humilhação, e ver
que quem deveria falar por você não só deixa de reagir como diz que o
outro está certo. É um vexame histórico.
Como o governo deveria Ter defendido os interesses brasileiros?
Em primeiro lugar, era preciso deixar claro que o Brasil não aceita a
forma como foi feita a tomada das refinarias, com tropas, invasões e
aquela encenação toda. Morales poderia ter alcançado o mesmo resultado
sem humilhar o Brasil. Por que agiu assim? Por uma razão política. Ele
usou o Brasil para dizer ao povo boliviano: olha, eu sou o Davi e
derrubo o Golias com uma pedrada só. Fez uma humilhação calculada.
Portanto, a primeira coisa que deveria ter sido feita era exigir um
pedido formal de desculpas, o que, aliás, também faz parte das
negociações internacionais.
O que o Brasil ganharia com um pedido desses?
A posição brasileira nas negociações sairia fortalecida. Do jeito que a
coisa vai, os bolivianos continuam falando grosso e fazendo ameaças
mesmo depois de terem tomado os ativos da Petrobras. O Brasil ficou do
jeito que está – de joelhos – porque não reclamou. Quem vai respeitar o
Brasil depois disso?
E o que poderia ser feito para compensar o prejuízo das empresas?
Esse seria o segundo passo. Depois do pedido de desculpas, o governo
deveria exigir que a Bolívia ressarcisse imediatamente os brasileiros.
Também seria preciso montar equipes de advogados e levar o caso para a
Corte Internacional de Haia. Isso não ocorreu. Outra opção seria
oferecer proteção diplomática às empresas, dando uma garantia oficial
aos investimentos brasileiros.
Como funciona a proteção diplomática
O mecanismo é assim: o governo entra com ações junto às cortes
internacionais para obrigar a Bolívia a indenizar o Brasil pelos bens
expropriados. No caso específico, os ativos da Petrobras. A Bolívia,
então, teria de explicar por que se acha no direito de tomar os bens
alheios. Só se poderia discutir o assunto da forma camarada como o
Itamaraty está fazendo depois que essas providências fossem tomadas.
Então não foi uma boa estratégia abrir negociações imediatamente?
Foi péssimo. E pior: as conversas nunca deveriam ter sido abertas pelos
presidentes. Nenhuma negociação internacional deve começar pelos chefes
de Estado, porque, em última instância, são eles que vão decidir. Quando
os presidentes entram em campo, acaba a margem de manobra que os
diplomatas têm para negociar. Por isso, qualquer amador sabe que
assuntos dessa natureza e complexidade devem primeiro ser tratados em
nível ministerial. Lula aceitou aquela reunião na Argentina, e o que
aconteceu? Morales apareceu lá com Hugo Chávez a tiracolo, posando de
organizador da reunião. Nessa hora, Chávez enterrou Lula definitivamente
e acabou com qualquer pretensão do Brasil de ser uma liderança
latino-americana.
O chanceler Celso Amorim garante que a liderança de Lula na América Latina segue firme
O ministro Amorim sabe o tamanho do estrago e tenta remediá-lo. Ele
declarou que Lula deu um pito em Chávez e em Morales nos bastidores. Se
isso tivesse de fato ocorrido, não deveria se tornar público. Um
diplomata experiente como Amorim não divulgaria essa informação. O que
ele quer é preservar a imagem do presidente. Com essa intenção, acaba
atuando como uma espécie de marqueteiro internacional de Lula. Dessa
forma, ele está destruindo sua reputação e sua carreira.
Além da humilhação, que outros reflexos a crise pode trazer?
Para os empresários nacionais, é uma tragédia. O governo sinalizou o
seguinte: não invistam no exterior, porque eu não vou protegê-los. Para
o resto do mundo, o recado é ainda pior: se o investimento é de
brasileiro, pode passar a mão grande, porque o país não reage. Se o
governo não faz nada pela Petrobras, da qual ele é dono, imagine por
outras empresas brasileiras.
A França e a Espanha também foram atingidas pelas medidas de Morales
REAGIRAM COMO O BRASIL?
Não. Tomaram as providências cabíveis. Notificaram à Bolívia que querem
ser indenizadas imediatamente, e seus advogados já trabalham para
contestar judicialmente as expropriações.
O Brasil poderia, então, Ter-se recusado a negociar o reajuste do preço do gás boliviano?
Claro. O Brasil deveria exigir o cumprimento dos contratos já firmados.
Eles prevêem o reajuste de preço a cada três meses, seguindo oscilações
do petróleo. Também prevêem a possibilidade de alteração de suas
cláusulas a cada cinco anos. Por causa disso, não se pode dizer que os
contratos não sejam equilibrados. Não há por que rasgá-los de uma hora
para a outra. Querem discutir o preço do gás? Tudo bem, mas é preciso
levar em conta outros elementos. Inclusive o fato de que o Brasil pagou,
durante anos, por um gás que não consumiu. A Petrobras poderia ser
compensada por isso. Seria legal, legítimo e civilizado. Mais: se
Morales quer mudar as regras, por que não vai a Brasília negociar? O
governo Lula, ao contrário, despacha autoridades para discutir as regras
em campo adversário.
O Brasil e a Bolívia integram a comunidade sul –americana de nações. Os atos de Morales não poderiam ser questionados no âmbito dessa associação?
Nunca vi, na história recente, uma época em que o Brasil estivesse tão
isolado na América Latina como agora. Veja: o país tentou emplacar o
presidente da OMC e ficou sozinho. Tentou o presidente do Banco Mundial
e também ficou sozinho. No Conselho de Segurança da ONU, além de estar
sozinho, ainda enfrenta a oposição de países como a Argentina. Nessa
crise com a Bolívia, nenhum outro país fez um gesto sequer de
solidariedade.
A política externa de Lula naufragou?
Desde o barão do Rio Branco, a política externa brasileira sempre teve a
mesma linha mestra. Neste governo, houve uma guinada política muito
grande. Trocamos o pragmatismo pela ideologia, e a coisa saiu dos
trilhos. Desde que o presidente Lula assumiu, o país perdeu respeito na
América Latina. (Veja, 15/5)