No início de maio, foi inaugurada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) a primeira unidade de enriquecimento de urânio em escala industrial do Brasil. Instalada na Fábrica de Combustível Nuclear das Indústrias Nucleares do Brasil (INB) em Rezende (RJ), a nova unidade faz parte da iniciativa de expandir o Plano Nacional de Energia Nuclear do país. A justificativa mais utilizada no governo para se levar adiante o programa nuclear é que o Brasil pode ter uma crise energética devido à demanda crescente. Defensores desse projeto acreditam que o país precisa de alternativas para se tornar auto-suficiente em energia e a opção nuclear seria uma delas.
Terror do movimento socioambientalista brasileiro, a usina nuclear de Angra 3 deve ter seu projeto de construção retomado, como defendeu em março o ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, que afirmou ser esse o ponto de partida para o desenvolvimento do programa. Com o enriquecimento de urânio em escala industrial, o governo pretende suprir 60% da demanda nuclear das usinas Angra 1 e 2 até 2010. O MCT planeja ainda a construção de sete novas usinas num período de 15 anos, duas delas às margens do rio São Francisco. O orçamento da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), responsável por desenvolver o programa nuclear, foi de R$ 100 milhões em 2005.
Além de ser considerada uma fonte de energia cara, arriscada e ultrapassada em muitos países, a opção nuclear tem problemas específicos no Brasil. Ao mesmo tempo em que há esforços para implementar ações de estratégia nuclear, não há sinalizações no sentido de desenvolver mecanismos de fiscalização e de segurança do setor por parte do governo ou mesmo por parte dos órgãos envolvidos no programa nuclear: “O Brasil mostra um descompasso inaceitável quando resolve investir e apostar no seu programa nuclear e não investe nas estruturas de fiscalização e segurança”, afirma o deputado Edson Duarte (PV-BA). O deputado explica que o país argumenta que é auto-suficiente e tem estrutura para sustentar a expansão nuclear. Mas, em contrapartida, há o discurso simultâneo de que não há verbas para arcar com os gastos para melhoria da segurança e fiscalização.
A Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados divulgou este ano
relatório
sobre a atividade nuclear, onde aponta falhas na segurança e fiscalização da atividade brasileira, além de negligência em relação aos dejetos radioativos. Segundo Duarte, ainda hoje não há legislação específica que trate da atividade nuclear (usinas e fontes radioativas). Por isso não há definição sobre quais são os crimes e as infrações e nem as respectivas sanções dessa área. A situação impede a fiscalização eficiente. Hoje, existem cerca de 50 mil fontes radioativas espalhadas em mais de 2 mil instituições em todo o país.
“Qualquer falha pode significar uma grande tragédia”, afirma Duarte. Ele explica que todo o treinamento de segurança brasileiro é feito baseando na hipótese de acidentes de efeitos intermediários. Se houver um de grandes proporções, o país não tem recursos e preparo para lidar com a situação. “No caso de Angra dos Reis, a própria comunidade local tem dúvidas sobre o plano de evacuação. Ele é falho e foi feito sem discussão com a sociedade”, diz. A norma de evacuação imediata que determinava distância mínima de 15 quilômetros da usina, em caso de desastre, foi diminuída para cinco. O deputado diz que a população se questiona o porquê da alteração, mas nunca obteve uma resposta.
Custo Alto
Os críticos do programa alegam que a energia nuclear, além de cara, é perigosa. Os altos investimentos necessários não compensam o retorno energético: “É desperdício de dinheiro público”, diz Guilheme Leonardi, coordenador da campanha antinuclear da ONG Greenpeace Brasil. O ambientalista cita que um cálculo otimista prevê gastos de R$ 8 bilhões apenas para a construção de Angra 3, sem contar os custos de operação, manutenção e descontaminação. Ela traria um aumento de 1,3% para o setor energético. Hoje, a participação nuclear na matriz energética do país está em 2%, de acordo com o deputado Edson Duarte.
Para o movimento socioambientalista, o risco de acidentes nucleares é também um dos principais problemas. Os efeitos do acidente radioativo em Chernobyl, na Ucrânia _ que acabou de completar 20 anos _ são até hoje sentidos pela população local e pelo meio ambiente. O prejuízo causado é estimado em US$ 400 bilhões, sem contar os danos ambientais, como contaminação de recursos naturais e da terra, e a perda de vidas humanas. A Agência Internacional de Energia Atômica (AEIA) aponta oficialmente 4 mil vítimas do acidente, mas estimativas do Greenpeace acusam a morte de 200 mil pessoas. No Brasil, o desastre de 1987 com o lixo radioativo do Césio 137, em Goiânia, trouxe efeitos irreparáveis. Até hoje, R$ 3 milhões por ano são gastos pelo governo federal em reparos ambientais e assistência médica à população atingida.
“É uma atitude temerária [do governo brasileiro], porque o mundo trabalha no sentido contrário, desenvolvendo outras fontes [energéticas] sustentáveis. E o Brasil pretende ampliar”, afirma Duarte. Guilherme Leonardi, por sua vez, acredita que o país deve investir em opções mais baratas e seguras, como as energias de biomassa, eólica e solar.
Ditadura Militar
O projeto nuclear brasileiro tem origem na década de 70, na época da ditadura militar. “Tem um viés armamentista”, diz Leonardi. Na época, acreditava-se que a tecnologia garantiria questões de soberania nacional e poderio militar. “Mesmo no governo Lula, o programa nuclear não mudou as suas características principais como a negligência à segurança, falta de transparência e o seleto grupo que detém as decisões”, afirma o deputado Duarte. Segundo ele, o governo Lula não conseguiu conter as pressões dos setores interessados – militares e parte da comunidade cientifica - na energia nuclear e não promoveu a transparência e o debate com a sociedade.
De acordo com Leonardi, o enriquecimento de urânio representa um problema grave. Enriquecido a 3%, o urânio é usado para a produção de energia. A 90% é possível se obter uma bomba atômica. A tecnologia é a mesma para as duas finalidades. Para o ambientalista, a posição brasileira causa estranheza diante do cenário internacional em que os países se preocupam com as atividades nucleares no Irã.
Brasil, Paquistão e Irã
O Brasil está em desacordo com duas convenções internacionais das quais é signatário e que regulamentam as atividades nucleares de um país. As convenções determinam que os países devem ter órgãos fiscalizadores independentes daqueles que promovem a atividade nuclear. No caso brasileiro, isso não ocorre, pois a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) desempenha as duas funções simultaneamente. O deputado Edson Duarte afirma que essas condições apenas se repetem no Paquistão e no Irã.
“A CNEN toca o programa em nome do governo”, explica o deputado. O seu conselho administrativo é formado por cinco pessoas, quatro são da própria CNEN (presidente e diretores). Apenas um membro é representante da sociedade civil. Essa pessoa é indicada pelo governo, que acabou nomeando um militar. “É uma estrutura autoritária que precisa ser mudada”, considera Duarte. Ainda que o programa nuclear brasileiro seja promovido para fins pacíficos, o deputado afirma que há “um sigilo inaceitável” em torno dos assuntos nucleares, característica herdada da época da ditadura militar. Ele critica a falta de informação passada à população. “Nem outros órgãos do governo têm acesso”.
A questão dos fiscais do CNEN é problemática também. Além de não possuírem plano de carreira na área, o que implica a falta de treinamento e preparo, os fiscais não têm autoridade para punir ou apreender fontes que não estejam dentro dos padrões de segurança. Para o deputado, a CNEN, ao assumir todas as responsabilidades de implementação e fiscalização da atividade nuclear, acaba criando impedimentos para ação de outros órgãos, como o Ministério do Trabalho, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no setor nuclear. “É uma atitude esquizofrênica e antiética. A CNEN é fiscal de si mesma”.
Por Natália Suzuki, Agência Carta Maior