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2006-05-15
A Reserva Sustentável do Piranha, no município amazonense de Manacapuru, tem uma área de 103 mil hectares, cobertos por rios, lagos e várzeas. As casas de seus poucos moradores são adequadamente chamadas de flutuantes: construídas sobre troncos de pau-de-bóia ou pau-balsa, flutuam de um lado para outro do Rio Piranha conforme as estações do ano. Lembram a arca bíblica de Noé, por causa do costume das famílias de agregarem ao seu redor pequenas balsas para as criações. Na maior parte das vezes são galinheiros flutuantes. Mas também se vê cabritos, porcos, vacas. Algumas donas de casa ainda fazem flutuar canteiros com salsinha, cebolinha, pimenta. Uma delas tem até uma goiabeira, cujas folhas são usadas em chás para curar diarréia.

Há pouco mais de um mês, um novo objeto começou a ser incorporado a essas casas. São caixas destinadas a recolher a água da chuva. Feitas de fibra de vidro, com capacidade para mil litros, pintadas de azul vivo e instaladas quase sempre ao lado da janela da cozinha, podem ser vistas de longe.

Elas fazem parte de um programa público simples e barato destinado a atacar um preocupante problema de saúde da região: as doenças de veiculação hídrica, como hepatite A, febre tifóide e diarréias agudas provocadas por parasitas, entre elas amebíase e rotavírus.

O problema existe porque os moradores dos flutuantes bebem a água dos mesmos rios que usam como canal de esgoto. No período das maiores chuvas, de dezembro até maio, com o aumento da vazão das águas, o índice de doenças é menor. Mas ele se agrava na vazante, ou verão, quando lagos monumentais desaparecem e rios caudalosos ficam reduzidos a filetes d´água, como acontece com o Piranha. Nessa época, segundo João Barbosa da Silva, um dos líderes comunitários da reserva, a situação muda: "Muito peixe morre e a água apodrece, fica com mau cheiro, gosto ruim, mas, como não tem outra, a gente bebe assim mesmo."

Com chuvas sempre abundantes na região, os técnicos do programa conhecido como Prochuva, resultado uma ação coordenada entre a prefeitura e o governo estadual, com apoio da Petrobrás, propuseram aos moradores armazená-la para beber. Para isso eles teriam que trocar o sapê usado na cobertura das casas por placas de alumínio e instalar calhas.

Houve certa relutância inicial, porque a palha do sapê, embora abrigue baratas e outros insetos, deixa o interior das casas mais fresco do que o teto de metal. Mas quem aceitou fazer a experiência hoje está convencido de que fez bom negócio.

É o caso de Raimunda Silva, esposa do líder comunitário. Ela conta que antes levava suas vasilhas até o meio do rio, onde a água parece mais limpa, para se abastecer. "Dava muito trabalho e ainda era preciso coar a água, de tão suja que vinha", conta Raimunda. "Agora não. Tem até uma torneira de água limpinha dentro de casa."

O kit do Prochuva inclui um sifão que permite desprezar a primeira carga de chuva que cai sobre o teto, lavando-o. O conjunto custa em média R$ 450. Se for incluído o teto de alumínio, sobe para R$ 700.

Em famílias com cinco pessoas, a água do reservatório dura até 20 dias - mas ali raramente acontece de não chover nesse prazo. Para o caso de isso acontecer, o Prochuva está construindo poços artesianos para socorrer as famílias.

Os agentes de saúde recomendam dissolver hipoclorito de sódio na água das caixas, mas a maioria dos moradores prefere não fazê-lo. Alguns adaptaram uma espécie de coador de pano na entrada da caixa, para reter impurezas. Marilene Damasceno da Silva, de 36 anos, mãe de seis crianças, foi uma das primeiras a usar esse filtro improvisado e está feliz com o resultado: "A chega limpinha. É boa pra beber, coar um café, cozinhar. O sabor é muito melhor que o da água do rio. Tem gosto de água mineral."

No ano passado, segundo informações do setor de vigilância epidemiológica do Amazonas, foram registrados 56.971 casos de doenças diarréicas agudas no Estado. Como o Prochuva começou a ser implantado há pouco tempo, ainda não existem estudos demonstrando o quanto pode contribuir para a redução das doenças.

Mas na escola da comunidade, que também flutua e à qual os alunos chegam em canoas, o professor José Maria Dias da Silva, de 38 anos, já tem o que comemorar: "As crianças estão faltando menos às aulas. Diminuiu o número de casos de de diarréia, de crises de vômito."

Pesca predatória sai, entra negócio rentável
Nesta época do ano, a Reserva Sustentável do Piranha, em Manacapuru, no Amazonas, está coberta pelas águas. So é possível chegar nela de barco e por toda parte avistam-se bandos de garças, mergulhões, marrecos, patos selvagens. A pesca é abundante. Os rios e lagos estão cheios de pirarucu, tambaqui, tucunaré, cará-açu, curimatã, matrinxã, piranha. Também tem jacaré e sucuriju, cobra que vive na água e é muito temida, porque, além de peixes e aves selvagens, costuma atacar galinhas, porcos e até crianças pequenas.

Do ponto de vista administrativo, a reserva tende a se tornar exemplo para outras regiões amazônicas. Situada a quase uma centena de quilômetros de Manaus, ela foi uma das primeiras no País a serem criadas por iniciativa de uma prefeitura.

Isso aconteceu em 1997, quando se descobriu que a pesca predatória estava ameaçando o ecossistema do Rio Piranha e a sobrevivência das famílias, cujo principal alimento é o peixe - que se come frito, cozido, assado, em caldeirada, misturado com farinha, feijão, arroz, milho.

Diante da ameaça ambiental, o então prefeito de Manacapuru, Angelus Figueira (PV), transformou a área de 103 mil hectares, com 84 famílias, em reserva sustentável. A idéia enfrentou resistência entre os moradores, porque, ao mesmo tempo que lamentavam o fim dos peixes, temiam o afastamento dos pescadores profissionais, para os quais prestavam serviços.

Para convencê-los, o prefeito transformou-os em fiscais ambientais, pagando um salário mínimo por família. Deu certo. Os moradores se organizaram em torno de uma associação para afastar os predadores, os peixes voltaram e a região começa a atrair investimentos na área do ecoturismo.

O desafio dos moradores agora é outro: encontrar formas de sustentação econômica com o manejo adequado dos recursos naturais. Há vários projetos em andamento na reserva. O que se encontra em estado mais avançado é a criação de pirarucus em cativeiro, com financiamento do Banco da Amazônia.

Cada família emprestou R$ 18.800, comprou o equipamento necessário e hoje cria pirarucu em cercados de arame que ficam dentro d´água, ligados às casas flutuantes. São dez tanques por família.

Para alimentar o pirarucu, que é carnívoro, os criadores pescam peixes menores, o que não é difícil. Basta estender a rede e esperar no máximo quinze minutos para começar a recolher.

LUCRO
Na região é comum pescar pirarucus de 80 quilos. Mas no cativeiro o recomendável é vendê-los na faixa dos 10 quilos. Depois disso aumenta o risco de arrebentarem as redes dos tanques e fica mais difícil alimentá-los. "Quanto maior, mais come, mais gastos dá - o que significa redução da margem de lucro do criador", diz o presidente da associação, João Barbosa da Silva, já falando como microempresário.

O projeto começou no ano passado e as primeiras levas de peixes devem ser comercializadas no segundo semestre. Um frigorífico já se ofereceu para comprar a produção da reserva, pagando R$ 10 pelo quilo de peixe. No conjunto, em valores brutos, dá para liquidar o financiamento com a primeira venda da família.

Agora, a associação de moradores aguarda uma licença do Ibama para começar a tocar o manejo de jacaré, cujo mercado é considerado melhor que o do peixe.

Ação no Nordeste faz 6 anos, com 135 mil cisternas
A idéia de recolher água da chuva para melhorar as condições de vida da população pobre não é propriamente nova. No Nordeste está em curso, desde 2000, um programa destinado a construir 1 milhão de cisternas em regiões do semi-árido, onde as chuvas são escassas. Até agora, foram construídas 135 mil delas.

A iniciativa tem o apoio de centenas de organização não-governamentais (ONGs) e o patrocínio do governo federal, que incentiva o projeto por meio do Ministério do Desenvolvimento Social.

Em 2003, a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) se engajou no programa, destinando recursos para a construção de mais cisternas e fornecendo orientação nas áreas de gestão e controle de recursos.

Hoje, a Febraban já é o segundo maior patrocinador do programa, ficando atrás apenas do próprio governo federal. Do conjunto de cisternas entregues até agora, 20.600 delas foram possíveis graças aos recursos fornecidos pela Febraban.

De acordo com a responsável pela coordenação desse trabalho na Federação Brasileira dos Bancos, Vanda Pita, a iniciativa chamou a atenção não só por propor uma solução técnica adequada para a região. "Fomos atraídos porque há um processo de mobilização social muito interessante, com o envolvimento das famílias em todas as etapas do programa", comenta Vanda.

O sistema é semelhante ao que começou a ser usado no Amazonas. A água é recolhida por meio de um sistema de calhas e enviada para uma cisterna de alvenaria, que fica no chão.

Com capacidade para 18 mil litros, a cisterna pode abastecer uma família com até cinco pessoas durante um período de dez meses. Cada cisterna custa em média R$ 1.060.
(O Estado de S. Paulo, 14/05/06)

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