A maior parte da imprensa brasileira não pensou muito. Saiu logo atirando: “Brasil cria corvos na América do Sul” (Eliane Cantanhede) “, “Adiós Petrobrás” (manchete do Diário do Comércio), “Despreparo e improvisação” (Miriam Leitão) e “Golpe letal” (editorial do Estado de S. Paulo). Tudo leva a crer que estamos diante de uma declaração de guerra e da desapropriação unilateral de bens e propriedades do Brasil. Vigorou mais a bílis do que a racionalidade jornalística. Um exame detalhado no Decreto Supremo, assinado pelo presidente da Bolívia, nem de longe aponta para algo semelhante.
“O que Evo Morales propõe não é arresto dos bens e ativos da companhia, mas uma repartição mais vantajosa nos royalties do gás”, aponta Fernando Siqueira, diretor da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet). “Essa é uma promessa de campanha. Se a Petrobrás tiver cabeça fria e competência para negociar, não haverá problemas maiores. O Brasil é o melhor mercado para o gás boliviano”, completa ele.
A letra da Lei
Na realidade, o Decreto Supremo 28.701, aprovado em 1º de maio último, apenas reafirma e materializa as diretrizes já expressas na Constituição do país e reafirmadas na Lei de Hidrocarbonetos, aprovada , em 17 de maio de 2005. Não há neles uma só linha falando em desapropriação e arresto de ativos, como pinta a mídia brasileira. Mas, logo de saída, enfatiza-se que “O Estado recupera a propriedade e o controle total e absoluto dos recursos (naturais)”.
É melhor colocar os fatos em ordem cronológica, para desembaralhar a confusão. A leitura pode ser um pouco árida, mas é esclarecedora. Vamos lá.
A Constituição Política da República da Bolívia em seu artigo 139º. diz o seguinte: “As reservas de hidrocarbonetos, qualquer que seja o estado em que se encontrem ou a forma em que se apresentem, são de domínio direto, inalienável, imprescritível do Estado. Nenhuma concessão ou controle poderá conferir a propriedade das reservas de hidrocarbonetos. A prospecção, exploração, comercialização e transporte dos hidrocarbonetos e seus derivados são de responsabilidade do Estado”.
A Constituição é de 1967 e sofreu cinco reformas até 2005. Portanto, é anterior ao governo Evo Morales. Em 18 de julho de 2004, após intensa pressão de movimentos sociais, é realizado o plebiscito sobre a exploração e comercialização do gás, ainda sob o governo do presidente Carlos Mesa (2003-2006). A posição vencedora era a de nacionalização do produto logo após sua extração, ou “na boca do poço”. Mesa cumpriu um mandato-tampão, após a queda do presidente Gonzalo Sánchez de Losada, por conta dos protestos contra a política de exportação de gás. Na promessa de Mesa constava a edição de uma nova lei de hidrocarbonetos.
A regulamentação do petróleo
A palavra é cumprida e, em 17 de maio de 2004, uma
nova norma é aprovada. Em seu artigo 5º, ela refere-se tanto ao plebiscito, quanto ao artigo 139º. da Constituição, afirmando proceder a recuperação “da propriedade de todos os hidrocarbonetos na boca do poço para o Estado boliviano. E o Estado exercerá, através de Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), seu direito proprietário sobre a totalidade dos hidrocarbonetos”.
Mesa não tinha nada de “populista”, ou de “nacionalista retrógrado”, como a imprensa acusa Evo Morales. Ao contrário. Trata-se de um empresário sem participação política anterior ao seu mandato. A lei dedica seu artigo 6º à refundação da YPFB, cujos ativos haviam sido quase totalmente privatizados nos últimos anos. O artigo 8º. “dispõe que o Estado reterá 50% do valor da produção de gás e petróleo”, de acordo com o plebiscito.
Mais adiante, o artigo 53º cria “o Imposto Direto dos Hidrocarbonetos (IDH)”. No item seguinte, afirma-se que “A alíquota do IDH é de 32% do total da produção (...) medida no ponto de fiscalização”. Assim, pela soma da repartição dos royalties e pela cobrança de impostos, chega-se aos 82% destinados ao Estado boliviano. Repetindo: todo o relatado acima aconteceu ANTES da posse de Evo Morales.
Impostos e nacionalização
O recente
decreto de Morales, apenas tenta fazer com que as leis anteriores “peguem”. Assim, seu artigo 2º ela afirma: “A partir de 1º de maio de 2006, as empresas petroleiras que atualmente realizam atividades de produção de gás e petróleo no território nacional estão obrigadas a entregar à YPFB toda a produção de hidrocarbonetos”. O tópico seguinte demarca: “Só poderão seguir operando no país as companhias que acatem imediatamente as disposições do presente decreto (...), até que num prazo não maior a 180 dias de sua promulgação, se regularize a atividade mediante contratos que cumpram as condições e requisitos legais e constitucionais. Ao término deste prazo, as companhias que não firmarem contratos não poderão seguir operando no país”.
O ponto central da lei está em seu artigo 4º.: “Durante o período de transição, para os campos cuja produção (...) de gás natural no ano de 2005 tenha sido superior a 100 milhões de pés cúbicos diários, o valor da produção se distribuirá da seguinte forma: 82% para o Estado (18% de regalias e participações, 32% de imposto direto e 32% através de uma participação adicional para a YPBF) e 18% para as companhias”. A nacionalização – ressalte-se novamente, sem confisco – está no artigo 7º. “Se nacionalizam as ações necessárias para que a YPBF controle com o mínimo de 50% mais 1 as empresas Chaco S.A. (British Petroleum), Andina S.A. (Repsol espanhola), Transredes AS (Enron), Petrobrás Bolívia Refinación AS e Compañía Logística de Hidrocarburos de Bolivia SA. (Oiltanking GmbH alemã)”.
Em
entrevista ao jornal boliviano La Razón , o vice-presidente boliviano Alvaro Garcia Linera adverte que os 180 dias compreendem “um período de transição, em que ainda não estão vigentes velhos contratos, e tampouco estão definidos os novos”. Segundo ele, nestes meses acontecerão auditorias “empresa por empresa, para examinar-se seus investimentos, custos, gastos de operação, rentabilidade e como irão se fixar os novos ingressos para o estado e para as companhias”.
FHC provoca prejuízo
“A reação da imprensa deveria ter ocorrido quando a Petrobrás assinou contratos de gás com a Bolívia”, aponta Fernando Siqueira. Segundo ele, “Por pressão de FHC, ela assumiu o gasoduto boliviano, quando ainda não existia aqui mercado para o gás. Durante cinco anos, a empresa importou 18 milhões de metros cúbicos do produto e pagou por 25 milhões, pois a atividade era anti-econômica”.
Não era exatamente à Bolívia que os pagamentos eram feitos. Os destinatários eram as empresas Total (França), Repsol (Espanha), Amaco (EUA) e Enron (EUA). Elas exploravam, em 1998, reservas de 400 milhões de metros cúbicos e pressionaram o Brasil a mudar sua matriz energética hídrica, criando assim mercado para o gás. “A Petrobrás fez um contrato absurdo e ninguém reclamou porque ela era 90% estatal”, ressalta Siqueira. As possíveis perdas são, seguramente, menores do que as do contrato firmado no governo tucano, assegura. Na época, a empresa assumiu o risco cambial e uma série de outras incertezas. “O que acontece hoje? FHC vendeu cerca de 40% do capital em Wall Street e mais 19% foi para gente como Benjamin Steinbruch e Daniel Dantas. O Estado detém apenas 32% da empresa, embora tenha a maioria dos votos”, diz ele. Os acionistas privados agora pressionam o governo e a imprensa, resultando nessa gritaria toda.
Por Gilberto Maringoni, Agência Carta Maior