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2006-05-04
Pessoas que mantêm animais silvestres de estimação em casa e forem flagradas pelo Ibama poderão ser nomeadas "guardiães da fauna" em vez de ter os bichos apreendidos, segundo uma proposta de resolução do Ibama que está tramitando no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). O projeto, aparentemente bem intencionado, está causando revolta entre ambientalistas do setor. A Renctas, principal organização de combate ao tráfico de animais no País, rachou com o Ibama, classificando a proposta como "um dos maiores atentados já realizados contra a biodiversidade brasileira".

O benefício, segundo o Ibama, se aplicaria apenas aos casos em que a apreensão se mostrasse prejudicial à saúde do animal, por causa de uma dependência física ou emocional muito forte com o dono. "Há muitas situações em que a separação é ruim tanto para o animal quanto para a pessoa", diz o diretor de Fauna e Recursos Pesqueiros do Ibama, Rômulo Mello. "Não podemos continuar tratando pessoas que têm um hábito cultural de ter animais como se fossem traficantes."

Pela legislação atual, qualquer pessoa que compra ou guarda um animal silvestre em cativeiro (mesmo que dentro de casa, como bicho de estimação) está praticando crime ambiental - a não ser que seja de um criadouro licenciado pelo Ibama. Animais silvestres são aqueles retirados da natureza, diferentemente dos domésticos, como cães e gatos. A lista dos que são tradicionalmente "adotados" como bichos de estimação inclui jabutis, cobras, iguanas, papagaios, araras, tucanos, micos e vários outros tipos de macacos e aves.

O hábito, apesar de criminoso, é comum, principalmente nas comunidades rurais e do interior. Mello estima que pelo menos 5 milhões de pessoas tenham animais silvestres dentro de casa. A proposta do Ibama, segundo ele, não dá imunidade legal aos proprietários - que ainda poderão ser processados por crime ambiental -, mas permite que, "em última hipótese", a pessoa fique com a guarda do bicho. "Quando for possível devolvê-lo à natureza, essa será a prioridade", diz Mello.

Já o coordenador-geral da Renctas, Dener Giovanini, diz que a proposta incentiva a ilegalidade. O texto do projeto, segundo ele, não faz distinção entre proprietários e traficantes. E nem deveria. "Você não pode relativizar a lei", revolta-se. "Ela diz que é crime ter animais silvestres. Não é para julgar quem é do bem e quem é do mal. Eu já vi uma senhora de 70 anos que era traficante."

A proposta do Ibama, segundo ele, seria o mesmo que permitir que "pessoas de bem tivessem um ou dois papelotes de cocaína em casa". Além disso, ao não fazer distinções claras, a proposta abriria uma brecha para que criminosos se beneficiassem da resolução.

INTERPRETAÇÕES
O texto está sob avaliação da Câmara Técnica de Assuntos Jurídicos do Conama. A Renctas, que havia sido convidada para participar da discussão, retirou-se do debate. "A proposta de resolução apresentada pelo Ibama é inaceitável, inteiramente imprestável em nosso ponto de vista, não merece reparos porque não pode ser reparada, na medida em que sua essência é contrária ao que defendemos", declarou a organização.

Para Mello, a Renctas está fazendo uma leitura equivocada da proposta. "Em nenhum momento a resolução beneficia o traficante", diz. Segundo ele, cada animal apreendido passará por uma análise técnica para determinar o melhor destino para ele: se o retorno à natureza, um zoológico ou a guarda domiciliar. "Se for bom para o animal e bom para o cidadão, que fique com a pessoa então", diz.

Segundo ele, não faz sentido separar animais e donos que estão juntos há décadas. "O que isso vai contribuir para o meio ambiente? Nada."

Um exemplo clássico, segundo Mello, é o do aposentado Antônio Virgínio Filho, dono de um papagaio há mais de 40 anos, que foi denunciado por um vizinho e teve o pássaro apreendido pelo Ibama. Deprimido, ele apresentou um atestado médico mostrando que dependia emocionalmente do papagaio. Com base em um parecer jurídico, então, o Ibama devolveu o pássaro ao dono, nomeando-o guardião temporário do animal. "É esse parecer que queremos transformar em norma", explica Mello.

"Parece que o Ibama está tentando se livrar do problema em vez de resolvê-lo", rebate Giovanini. Ele reconhece que muitos animais criam uma relação de dependência com seus donos. Mas diz que isso não justifica a não aplicação da lei. "Independentemente de questões sentimentais, a melhor solução é seguir a legislação", diz.

Segundo ele, uma pesquisa feita pelo Ibope no ano passado indica que 84% das pessoas sabem que é ilegal ter animais silvestres. "Posso dizer com a mais absoluta certeza que a grande maioria sabe que está cometendo um crime", diz. Segundo a Renctas, 38 milhões de animais são retirados da natureza por ano no Brasil. Desse total, apenas 1 em cada 10 chega até o mercado - o restante morre na captura ou durante o transporte.

"Não há dúvida de que há um problema", diz o diretor de Conservação da Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, Paulo Kageyama. "Há milhões de pessoas que estão fora da lei, mas que são pessoas de boa índole. Precisamos encontrar uma solução para elas , sem que isso incentive novas capturas."

A recomendação básica para quem quer comprar um animal é checar antes com o Ibama se o revendedor é autorizado.

No AM, bichos são maltratados
Os urros de dor da jaguatirica Muna, de 4 anos, chamaram a atenção de um vizinho que entrou em contato com o Ibama. O animal era criado desde filhote como um gatinho e só bebia leite. Já adulto, magro e faminto, começou a comer as galinhas do quintal. Por isso, apanhava de vassouradas. Há cerca de um mês, Muna foi resgatada com uma grande queimadura nas costas, provocada por água fervente.

No Amazonas, os maus-tratos a animais silvestres são comuns, atendidos diariamente pelo Ibama. "As pessoas levam para casa macacos, araras, onças, mas o animal cresce muito, faz sujeira e o dono começa a maltratar ou abandona", conta a veterinária Branca Tressoldi, do Ibama.

Em 2005, dos 833 resgatados, 494 foram apreendidos por maus tratos, 182, entregues espontaneamente e 157, levados ao Ibama ou resgatados por terem aparecido em casas próximas à floresta. "Desses casos de entrega espontânea, pelo menos 80% são de animais maltratados, que o dono não tem a menor idéia que está maltratando, por ignorância", diz a veterinária.

No ano passado, um macaco-prego foi resgatado pelo Ibama depois que o dono ligou "porque ele estava sempre doente", tinha uma ferida que não cicatrizava na barriga. "A corda amarrada pela cintura estava tão apertada que tinha cortado sua barriga", conta Branca. "Há papagaios e araras com as penas caindo, anêmicos porque os donos dão pão, manteiga e café com leite."

"Aqui é cultural o caboclo pegar o animal da mata e, por fim, terminar maltratando ou matando quando o bicho mostra os instintos", diz a diretora da única ONG de proteção animal do Amazonas, o Grupo de Proteção Animal (GPA), associado à organização World Society for the Protection of Animals (WSPA).
(O Estado de S. Paulo, 03/05/06)

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