Lição sobre o valor da água potável no semi-árido do NE
2006-05-02
Uma vez por semana, o menino Marcos Antônio de Paixão Silva pega a carroça e vai até o "chafariz" da Associação dos Pequenos Produtores de Atalho, comunidade pernambucana a 97 quilômetros de Petrolina, buscar um tonel de água potável para sua família, usada apenas para beber e cozinhar. Para quem estava acostumado a consumir água de "barreiro", aquela que se acumula no solo depois de períodos de CHUVA, é um motivo de comemoração.
Para a família de José Bonfim do Nascimento (de camisa branca), o projeto Água Doce melhorou as condições para a criação de cabritos e ampliou a renda
Longe do semi-árido nordestino, onde se localiza Atalho, beber água de CHUVA ou de cisternas abastecidas por caminhões-pipa parece inimaginável. Mas essas eram as únicas alternativas até pouco tempo atrás, já que na região os poços têm água salobra - com alto teor de sais -, o que inviabiliza o consumo.
Um programa do Ministério do Meio Ambiente desenvolvido em parceria com a Embrapa Semi-Árido e implementado com investimentos da Fundação Banco do Brasil, começa a mudar esse cenário. O projeto - batizado de "Sistema Integrado de Reuso de Rejeitos da Dessalinização" - prevê a dessalinização da água de poço, para torná-la potável, e a utilização dos rejeitos decorrentes do processo.
A água que resta do processo de dessalinização, com alto teor de sal, está sendo usada para a criação de tilápias vermelhas em dois viveiros gerenciados pela associação dos produtores. E a mesma água, explica o consultor da Embrapa Semi-Árido, Odilon Juvino de Araujo, é usada para irrigar lavouras de erva-sal, vegetal altamente protéico adaptado a elevados teores de salinidade e que é destinado ao confinamento de caprinos e ovinos, rebanhos comuns na região. O esterco dos rebanhos, por sua vez, é usado como adubo para o maracujá da caatinga, fruta nativa da região que começa a ser produzida em escala comercial.
"Antes, a gente não tinha idéia de armazenar alimentos em forma de silagem e feno para os animais", diz José do Nascimento, o Zequinha, presidente da associação, que cria cabras e ovelhas e planta maracujá da caatinga.
A silagem de erva-sal, misturada a um volumoso de palha de milho ou sorgo, é armazenada pelos produtores para alimentar os animais em confinamento no período de seca. Isso garante que o rebanho engorde apesar da seca e também significa uma renda melhor para os criadores. Nascimento, por exemplo, afirma que conseguiu elevar sua renda anual de R$ 4 mil, em 2004, para R$ 6 mil em 2005 depois que começou a confinar os animais. Isso porque ele está conseguindo um preço maior pelos animais para abate, já que há melhor aproveitamento da carcaça. "Sem o confinamento, recebia R$ 4,50 pelo quilo vivo do animal. Agora, fica entre R$ 5,50 e R$ 6,00".
As cabras e carneiros produzidos em Atalho são abatidos e vendidos em restaurantes do "Bodódromo" de Petrolina, uma área assim conhecida pela grande concentração de casas onde a carne do animal é oferecida.
A situação também melhorou para o criador Antônio da Silva, pai de Marcos Antônio. De acordo com ele, antes de começar a confinar vendia os animais com prejuízo, já que eles eram criados soltos durante todo o ano e havia perda de peso na seca.
Outra que está ganhando mais pelos animais vendidos após o confinamento é Maria Valdenora de Souza, que mora em Alagadiço da Bezerra, perto de Atalho. Ela diz que chegou a vender por R$ 3,50 o quilo vivo, mas que depois da mudança no manejo consegue entre R$ 5,00 e R$ 6,00. Mas para a pernambucana de 48 anos, que tem 7 filhos e 15 netos, tão importante quanto produzir melhor é poder ter acesso à água potável. "Este ano, posso dizer que ninguém em casa teve desinteria ou dor de barriga", comemora, atribuindo o fato ao consumo de água dessalinizada. "Antes isso era normal".
Pela água potável, os moradores de Atalho pagam R$ 0,05 a cada 20 litros. O valor foi definido pelos 66 filiados da Associação dos Pequenos Produtores da cidade. Também foi determinada uma cota de 600 litros por semana para cada família de cinco a seis pessoas. José Nascimento, presidente da associação, explica que o dinheiro é destinado à manutenção do equipamento de dessalinização da água e de todo o projeto. A renda com as tilápias criadas nos viveiros - a cada três meses são produzidos 650 quilos do peixe - também é destinada ao projeto, assim como o valor obtido com a venda da erva-sal aos criadores de animais.
"A idéia é que o projeto seja auto-sustentável, para que não haja dependência do poder público", diz Odilon Juvino de Araújo, consultor da Embrapa. Segundo ele, foi essa dependência que nos anos 1990 fez projetos de dessalinização no semi-árido naufragarem.
Mas moradores de Atalho como Isabel Francisca da Silva, de 66 anos, que vive com duas filhas, dois genros desempregados e uma neta, gostariam de beber água potável sem pagar. "Sou aposentada e tem dias que tenho vontade [de buscar água], mas não tenho dinheiro". Ela diz que não é a única, já que há muitos sem trabalho na comunidade de 400 habitantes. "Muita gente vai ter de beber água de barreiro de novo", diz, levando para casa um balde de água.
(Valor Online, 28/04/06)