Paraense ganha "Prêmio Nobel" ambiental
2006-04-26
A floresta tropical não precisa só de unidades de conservação; precisa também de dinheiro. E esse dinheiro viria fácil se o governo resolvesse cobrar de madeireiros e pecuaristas o enorme passivo ambiental da Amazônia e aplicá-lo num fundo que pudesse financiar atividades econômicas ambientalmente corretas. Quem diz é Tarcísio Feitosa da Silva, 34, "nascido e criado" às margens do rio Xingu, em Altamira, Pará. Ele recebeu nos EUA o Prêmio Goldman, de US$ 125 mil, considerado o Nobel do ambientalismo. A honraria até hoje só coube a dois outros brasileiros: o antropólogo Carlos Alberto Ricardo, do Instituto Socioambiental, e a ministra do Meio Ambiente Marina Silva.
Feitosa, que atua junto à Comissão Pastoral da Terra, ajudou a denunciar, em 2000, a exploração ilegal de mogno na Terra do Meio, região paraense rica em florestas e em conflito. Também liderou os esforços para a criação de um mosaico de unidades de conservação na região do Xingu, numa área maior que a da Inglaterra. Hoje é conselheiro do Fundo Dema, iniciativa que gerencia R$ 5 milhões obtidos com a venda do mogno apreendido na região para desenvolver a agricultura familiar. "Imagine se o governo brasileiro pegasse todas as multas aplicadas na Amazônia, cobrasse e fizesse um fundo para isso? O passivo criminoso ambiental da Amazônia precisa ser cobrado e pago", afirmou ele à Folha.
Filho de seringueira e ex-catador de caranguejo, Feitosa é militante desde os 15 anos. A atuação já lhe rendeu ameaças de morte em Altamira, onde mora com a mulher e dois filhos. Brinca que sua cabeça já vale uns trocados. "Agora vai ficar mais cara", ri.
Folha - Por que você ganhou o Prêmio Goldman?
Tarcísio Feitosa da Silva - O estado do Pará tem duas grandes frentes de destruição: os eixos Marabá-Anapu e Cuiabá-Santarém. Estamos bem no meio disso e desde a década de 1980 temos feito campanha para guardar a floresta nessa área. Há um Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica. Eu sou um dos coordenadores. Fizemos campanha pela demarcação de terras indígenas, depois campanha pelas unidades de conservação na Terra do Meio. Isso, juntando com cabeceiras do Xingu, que já são protegidas, forma o maior corredor ecológico do mundo, com quase 260 mil quilômetros quadrados. Além da denúncia de exploração do mogno nas terras indígenas. Isso é um grande problema da Amazônia. O passivo de criminalidade ambiental nunca foi apurado. A Justiça, principalmente do Estado do Pará, não tem compromisso em investigar, apurar e julgar esse passivo criminoso.
Folha - Mas não é impossível recuperar esse passivo sem quebrar completamente o setor produtivo?
Feitosa - Eles ganharam muito dinheiro. Se fizessem pelo menos um fundo ou algo nesse sentido de dizer, olha, vamos recuperar a área Parakanã, por exemplo, que foi uma das mais destruídas [pela exploração ilegal de mogno].
Folha - Como começou a denúncia da exploração de mogno?
Feitosa - Eu trabalhava na época com o Conselho Indigenista Missionário. A gente fez uma série de denúncias em 2000. Toda a máfia do mogno ficava naquela área [da Terra do Meio]. Aí o movimento social apresentou uma proposta para o governo federal da construção de dois pulmões, tanto do lado direito quanto do lado esquerdo da Transamazônica. O lado sul era a Terra do Meio. O lado norte era onde estão as Reservas Extrativistas Verde para Sempre e Renascer. Encaminhamos o mapa da exploração para o Greenpeace, que era a instituição com o maior poder de denúncia na época. A proposta de criação foi mandada para o Ministério do Meio Ambiente. O governo sentou em cima. Tudo [os estudos para subsidiar a criação das reservas] foi entregue oficialmente ao governo em 2003 e a gente começou a fazer pressão para que o governo avançasse na criação. Eles só foram avançar uma semana depois da morte da irmã Dorothy [Stang, assassinada em 2005].
Folha - O governo diz que, mesmo sem o assassinato, as reservas iriam sair de qualquer maneira.
Feitosa - Naquela época não. Porque havia muita pressão do governo do Estado do Pará. O divisor de águas foi a morte da Dorothy, quando o governo federal se deu conta da falta da presença do Estado naquela região. Depois da decretação, um desmatador de Ourilândia foi lá e ainda derrubou 600 campos de futebol dentro da estação ecológica [da Terra do Meio]. Não pode só criar no papel. Tem de ir ao campo e demarcar e mostrar presença no campo.
Folha - Muita gente fala que antes uma reserva no papel do que nada, porque inibe a grilagem...
Feitosa - Cai o preço da terra. É o único fator que atrapalha a grilagem. Os bandidos continuam soltos, os documentos em cartório continuam sendo falsificados...
Folha - Mesmo depois da Portaria nº 10 do Incra, que suspendeu a emissão de pretensões de posse na Amazônia?
Feitosa - Mesmo depois da Portaria 10. Esta semana a gente cancelou uma área grilada de 133 mil hectares a 70 km de Altamira, pertencente a um cara que mora aqui no Itaim Bibi [em São Paulo]. O Incra tinha pago essa terra em 1982 e uma maracutaia do cartório dizia o contrário, que o sujeito tinha comprado a terra do Incra. Mas a gente tem de dar crédito: a presença do governo reduziu isso.
Folha - Como você avalia a ação do governo?
Feitosa - Eu acho que o governo ainda não entendeu a Amazônia. Só veja uma questão muito simples, o orçamento: enquanto para vocês [no Sudeste] tem sol, para nós tem chuva. O dinheiro que é liberado para os agricultores na época de plantar chega para nós na época de colher.
Folha - Comparando a situação da Amazônia no governo Lula com a do governo FHC...
Feitosa - Houve um avanço. Principalmente na questão do ordenamento territorial. Hoje você vai no site do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e vai saber onde são terras da Federação. A experiência do georreferenciamento feito na região foi cara, mas pelo menos disse isso. Os próprios fazendeiros sabem disso agora. Mas muita coisa ainda precisa acontecer. É mais fácil eu ir no banco pegar dinheiro pra plantar soja e criar gado do que pra colher castanha.
(Folha de S.Paulo, 25/04/06)