Assentamento na Amazônia completa cinco anos
2006-04-26
O primeiro assentamento de reforma agrária criado na Amazônia com preocupação
de conservação da natureza completa cinco anos em junho. A trajetória de 150
famílias assentadas pelo Incra no chamado Projeto de Desenvolvimento
Sustentável São Salvador, no Acre, não foi fácil. Acostumados a derrubar a
mata, botar fogo para abrir roças e usar cachorros para caçar, os assentados
tiveram que aprender a lidar com a natureza.
A necessidade de mudança ficou evidente por causa do risco de extinção da
fauna. Os bichos eram poucos, e os cães ainda os espantavam para mais longe -
provocando brigas entre os moradores. Armados, eles chegavam a fazer ameaças
de morte uns aos outros por causa da escassez de carne, cada vez maior. Só
conseguiram resolver os conflitos depois que criaram uma espécie de
"Constituição" para o assentamento - uma cartilha com as principais regras de
comportamento ecológico. Hoje, para encerrar as desavenças, vale o que está
escrito. As punições também estão descritas, e podem chegar à expulsão da
comunidade.
"A cartilha foi feita para proteger a floresta. Tem 90 páginas ilustradas, com
19 artigos referentes à caça, 15 para pesca, quatro para controle de
desmatamentos, 11 para regular a exploração de madeira. Tem também regras para
a criação de animais domésticos, como vacas e porcos, para a criação de
quelônios e até para a compra e venda de benfeitorias", conta o
engenheiro-agrônomo Cazuza Amaral Borges.
Ele é técnico do grupo de Pesquisa e Extensão em Sistemas Agroflorestais do
Acre (Pesacre), organização que trabalha há 15 anos no Acre em parceria com
instituições públicas e não governamentais. A cartilha foi escrita e ilustrada
pelos ribeirinhos com a orientação do Pesacre e contribuição da Universidade
Federal do Acre (Ufac) e da Universidade da Flórida. O trabalho teve apoio
financeiro do governo do Acre e de instituições internacionais.
Vizinhos do parque
O PDS São Salvador fica em uma floresta no Alto Juruá, região mais ocidental
do mapa do Brasil, na fronteira com o Peru. Para se chegar lá, é necessário
viajar cinco horas de canoa a motor, partindo do município de Mâncio Lima pelo
rio Japiim. São cerca de 800 habitantes espalhados nas margens dos rios Moa e
Azul, em núcleos de cinco a 15 casinhas de madeira. O assentamento tem 27.830
hectares e fica no entorno do Parque Nacional da Serra do Divisor. A população
vive isolada, sem energia elétrica e sem telefone.
As terras do PDS pertencem à União e os moradores têm concessão de uso. Assim,
eles não podem repassar o terreno para terceiros. Foram demarcados 150 lotes
em 3 mil hectares e em locais próximos aos rios, que são como estradas para os
moradores da Amazônia, onde os principais meios de transporte são barcos e
canoas. Para definir os melhores locais de moradia, criação de gado e
exploração de recursos naturais, foi feito um plano de Zoneamento Econômico
Ecológico (ZEE) baseado em estudos da Embrapa e do Pesacre. O plano prevê até
áreas para abrigar futuras gerações.
Os moradores de São Salvador são famílias de seringueiros que começaram a
chegar no final do século 19 no Alto Juruá, onde a borracha foi explorada até
o início da década de 80. Com o fim da importância econômica do látex, a caça
comercial e a venda de peles de animais silvestres se fortaleceram como
alternativa econômica. Por isso a ameaça de extinção da fauna, que é alvo
também da caça de subsistência. Inclusive dentro do Parque Nacional da Serra
do Divisor, criado em 1989 e ainda ocupado por antigos moradores. As famílias
consomem veados, pacas e porquinhos do mato. Também gostam muito da carne de
quelônios.
Caça de subsistência
A caça é proibida no Brasil desde 1967, quando foi sancionada a Lei de
Proteção à Fauna. Em 1988, a Lei 7.653 alterou o artigo 27 da Lei 5197,
elevando a caça de contravenção penal a crime. Entretanto, há exceções em que
é permitida. Entre elas quando faz parte da dieta para a sobrevivência, como é
o caso de moradores de florestas. Mesmo assim, se as comunidades abusarem desse
direito, a natureza dá o troco.
"Dava mais caça e mais madeira. Não precisava andar tanto para arranjar comida",
reclama o seringueiro Paulo Xavier, 64 anos, morador de Boa Vista, um dos
núcleos do assentamento São Salvador. Em um levantamento na época da criação
do PDS, cinco animais já estavam considerados extintos: o macaco barrigudo e
aranha, peixe boi, ariranha e o mutum. Todos faziam parte de listas nacionais
e internacionais de espécies em risco de desaparecimento. Com exceção da
ariranha, as outras quatro são muito apreciadas para alimentação pelos
moradores da região.
Mas seu Paulo não aceita qualquer caça. "Não como carne de macaco. Porque, se
não morre no primeiro golpe, ele se protege com as mãos, parece gente",
descreve. O seringueiro acorda todos os dias antes do amanhecer e gosta de
contar boas histórias do tempo antigo. "Recebo o sol", costuma dizer. "A
seringueira (árvore) dava o melhor leite de madrugada, acostumei a levantar
muito cedo". Ele vendeu pele de animais e madeira no tempo em que o comércio
de borracha acabou no Alto Juruá. "Agora tá tudo mais conservado, o Ibama não
deixa mais pegar onça, bicho brabo", relata.
Paulo Xavier é um patriarca de Boa Vista. As pessoas se reúnem na casa dele à
noitinha para conversar ou pedir a benção. Os ribeirinhos costumam
compartilhar coisas, principalmente comida. "Muitas vezes vi chegar à casa de
seu Paulo a carne que Gil ou Loro haviam caçado", conta Ana Mendes, de 21 anos,
referindo-se aos genros dele.
A jovem é estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul e se hospedou durante 12 dias na casa do seringueiro, no final de
fevereiro, para um levantamento do Pesacre sobre as perspectivas que a
população tem para o futuro. "As filhas do seu Paulo tem uma vontade muito
grande de investir na criação de gado. Hoje o pasto é coletivo, dividido entre
Dona Nenê, que é mulher de seu Paulo, e três genros. Eles tem umas 30 reses.
Bel é a única filha deles que não tem gado, mas tem vontade de ter", conta
Mendes.
Poupança de quatro pernas
Segundo Borges, a pecuária aumenta o desmatamento, mas é importante para a
sobrevivência. "O gado é uma verdadeira caderneta de poupança para eles, porque
vai aumentando por si só, com as crias que vão gerando. Os produtores se
desfazem das reses para um tratamento de saúde ou para pequenos investimentos,
como comprar um motor ou até uma casa na cidade", conta. Para restringir a
derrubada de floresta, a regra é que a pecuária fique restrita à área dos 150
lotes demarcados, que somam no total 20% do território do assentamento.
Atualmente, 10% estão desmatados.
Porém, para garantir a manutenção da floresta em pé, são necessárias
alternativas econômicas. Uma delas é a produção de essências de buriti, copaíba
e patoá para serem comercializadas como remédio e cosmético. O projeto é
desenvolvido pelo Pesacre. A ong é especializada em pesquisa e extensão rural,
com funções semelhantes à Embrapa, porém com foco ecológico. Com base no ZEE,
foram eleitas as áreas de produção na mata.
"Estamos fechando nosso plano de manejo para cada uma das espécies, que inclui
estudos sobre a capacidade de colheita e reprodução de cada uma. Este ano vamos
fazer uma venda experimental. Há vários compradores interessados. No Vale do
Juruá há dois interessados, um deles é fabricante industrial de sabonete à
base de gordura vegetal e outro é um fabricante artesanal. Em Rio Branco, uma
cooperativa está interessada nesses óleos, e em Manaus também estamos
negociando com um fabricante de sabonetes", revela Cazuza.
As experiências econômicas com as essências nativas ainda estão na primeira
fase porque, embora o assentamento tenha sido criado em 2001, apenas em 2004
os lotes foram demarcados. "Sem a segurança da terra definida, as pessoas não
fazem investimentos no processo produtivo. Ficam inseguras, não havia como
começar nada antes de acertar a definição fundiária", afirma o
engenheiro-agrônomo.
Os moradores de São Salvador vivem da caça, pesca, frutos e compram insumos
especialmente em Mâncio Lima, onde também vendem a farinha de mandioca
produzida em casa - uma farinha branca, grossa, crocante, comum na região e
considerada a melhor de toda a Amazônia.
Mas o comércio não é a única perspectiva dos moradores do assentamento. Eles
querem estudar. O tema educação sempre aparece quando se fala em futuro. Os
sete filhos de seu Paulo tiveram que sair de Boa Vista para estudar. Alguns
nunca voltaram a morar na comunidade. As crianças ficam na casa de parentes ou
de conhecidos nas cidades.
No ano passado, entretanto, foi aberta uma escola de ensino médio em São
Salvador. E desde 2005, os acreanos ganharam a Universidade da Floresta, em
Cruzeiro do Sul. Uma extensão da Ufac voltada para pesquisa sobre a diversidade
da fauna e flora da região. A cidade onde está instalado o campus fica a uma
hora de ônibus de Mâncio Lima, tem 60 mil habitantes e é a maior do Vale do
Juruá. A universidade tem vínculos com os parques, reservas extrativistas,
terras indígenas e apóia atividades do ensino médio.
O projeto São Salvador é um contraponto a uma pesquisa do Imazon, ainda em fase
de conclusão, que mostrou que assentamentos do Incra criados até 2002 foram
responsáveis pelo desmatamento de uma área de floresta amazônica maior do que
a do estado de Pernambuco. O equivalente a 15,2% de tudo que já foi derrubado
até hoje na Amazônia. O Eco publicou uma reportagem sobre o estudo e ouviu
especialistas no Acre, que afirmaram que os assentamentos do Incra no estado
não respeitavam as áreas de reserva legal de 20% e representavam o maior número
de queimadas detectadas pelos satélites.
(Cristina Ávila, O Eco, 24/04/06)
http://arruda.rits.org.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationCode=6&pageCode=67&textCode=16539&date=currentDate&contentType=html