País repatria sua biodiversidade
2006-04-24
A biodiversidade do Brasil sofre de um problema semelhante ao das relíquias arqueológicas do Antigo Egito: a maior parte de seu patrimônio histórico está guardada nos armários de museus estrangeiros. Isso cria uma barreira geográfica séria para os pesquisadores da história natural brasileira, que precisam viajar longas distâncias para ter acesso aos espécimes originais da flora e fauna nacionais. Não há como colocar um número exato, mas estima-se que mais de 75% dos principais acervos biológicos da biodiversidade brasileira estejam depositados fora do País, nos grandes museus da Europa e dos Estados Unidos.
"De tudo que a humanidade acumulou sobre a fauna e a flora do Brasil, certamente menos de um quarto está no País - provavelmente, muito menos do que isso", diz o pesquisador do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente da Associação Memoria Naturalis (Amnat), Leandro Salles.
Segundo ele, só o Museu Nacional de História Natural do Instituto Smithsonian, em Washington, tem o mesmo número de espécimes da biodiversidade brasileira que todas as coleções biológicas do Brasil juntas (cerca de 30 milhões). "Se o acesso a essas amostras é essencial e o grosso delas está fora do Brasil, temos de dar um jeito nisso."
Governo e comunidade científica, portanto, estão redobrando esforços para repatriar coleções biológicas estrangeiras, ao mesmo tempo em que tentam ampliar e organizar as mantidas no Brasil - como a do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, com 8 milhões de exemplares. No fim do mês, uma comitiva da Amnat e de outras associações científicas irá à França negociar um intercâmbio com o Museu de História Natural de Paris, que detém grandes acervos de nossa fauna e flora.
A solução está sendo construída na informática. A idéia é digitalizar as coleções para que pesquisadores tenham acesso via internet (e não via avião). Há um movimento forte no mundo para que coleções biológicas sejam digitalizadas e seu conteúdo, colocado à disposição para estudo.
"Os museus estão dispostos a colaborar. Os problemas são custo e tempo: quem paga por digitalização e tempo?", diz o gerente de Conservação da Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, Bráulio Dias.
Por enquanto, a conta fica com os cientistas brasileiros, que precisam viajar longas distâncias para acessar o patrimônio mais básico da biodiversidade nacional. "Isso causa um atraso para a pesquisa, o que tem um impacto negativo sobre a conservação e o uso sustentável da biodiversidade", avalia Dias.
As coleções biológicas são a matéria prima da taxonomia, a ciência que trata da identificação, descrição e classificação dos seres vivos. Elas são, literalmente, coleções de animais e plantas coletados na natureza e preservados para pesquisa. Funcionam, dessa forma, como bibliotecas do mundo natural, às quais os taxonomistas, biólogos e outros pesquisadores recorrem para o estudo das espécies.
PEÇAS RARAS
Os exemplares mais importantes são os chamados holótipos, ou espécime tipo - o indivíduo (animal ou planta) ao qual a descrição da espécie está diretamente associada. Ou seja, o exemplar original que, aos olhos da ciência, dá nome e representa todos os outros membros de uma espécie. "Tudo em taxonomia passa pelo holótipo", afirma Salles. "Se eu acho que tenho uma espécie nova nas mãos, não tenho como proceder na pesquisa sem uma comparação com o tipo."
É nesse ponto que as coisas se complicam, já que a maioria dos holótipos da biodiversidade brasileira foram coletados por naturalistas estrangeiros e, portanto, estão depositados em coleções fora do País. "O problema não é tanto o tamanho das coleções, mas o fato de que os indivíduos de referência estão no exterior, especialmente os mais antigos", diz o ecólogo Thomas Lewinsohn, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador da Avaliação do Estado do Conhecimento da Biodiversidade Brasileira.
Não se trata de biopirataria. A maior parte das coletas foi feita nos séculos 18 e 19, quando ainda não havia ciência no Brasil nem leis para regulamentar esse tipo de atividade. Muitas das expedições foram feitas com o apoio direto da Coroa. "Do que foi deixado como duplicata no Brasil, muito se perdeu", afirma Dias. "Poderíamos até argumentar ainda bem que esse material foi depositado no exterior, pois isso garantiu sua preservação."
Não há, portanto, nenhuma expectativa de repatriar as coleções fisicamente. Até porque, as instituições brasileiras não teriam estrutura para receber tanto material. "O importante é repatriar as informações; é isso que mais precisamos para a pesquisa", diz o zoólogo Célio Magalhães, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Muitos museus e instituições científicas estão começando a digitalizar suas coleções, informatizando catálogos e fotografando espécimes. Uma das maiores iniciativas nesse sentido é o Global Biodiversity Information Facility (GBIF), um fundo internacional criado em 2001 para incentivar a digitalização e o compartilhamento de informações sobre biodiversidade. O Brasil, apesar de ser o país com a maior variedade de espécies do planeta, participa apenas como observador.
BARREIRAS FÍSICAS E LEGAIS
Mesmo com a boa vontade dos museus estrangeiros, o trabalho é longo, e nem sempre atende às necessidades brasileiras. A digitalização funciona bem para amostras de plantas, que são organismos achatados, mas nem tanto para animais.
A taxonomia é uma ciência de detalhes. Muitas espécies só podem ser diferenciadas por pequenas variações morfológicas. Centenas de milhares de espécies de insetos, por exemplo, só são identificados por diferenças no aparelho genital, segundo Lewinsohn. "Uma fotografia não ajuda muito nesse caso", diz.
Uma alternativa ao acesso virtual seria o empréstimo ou intercâmbio de amostras. Prática comum entre os pesquisadores, mas extremamente dificultada no Brasil nos últimos cinco anos pela legislação antibiopirataria (Medida Provisória 2.186), que, sem fazer distinção à pesquisa, praticamente criminalizou a entrada e saída de material biológico do País. Houve casos de amostras incineradas em aeroportos pelas autoridades aduaneiras.
"Há um medo enorme de mandar coisas para o Brasil", afirma Salles. "Nós mesmos temos medo de pedir ou receber alguma coisa, porque não sabemos se vamos conseguir mandá-las de volta ou se o material não vai ser destruído no caminho."
Brasil ainda desconhece sua riqueza
A dificuldade de acesso a coleções biológicas de referência remete a um problema ainda mais básico do Brasil, que é a falta de conhecimento sobre a biodiversidade nacional. Estima-se que o País tenha entre 1,4 milhão e 2,4 milhões de espécies de plantas, animais e microrganismos - a maior diversidade biológica do planeta. Porém, apenas cerca de 200 mil delas são conhecidas pela ciência, segundo a última Avaliação do Estado do Conhecimento da Biodiversidade Brasileira.
A solução, nesse caso, também passa pelas ferramentas digitais de apoio à pesquisa. Uma das propostas apresentadas recentemente pela comunidade científica é a criação do SciELO Biodiversidade, uma divisão do banco de publicações científicas SciELO voltada exclusivamente para pesquisas nessa área. "Uma barreira muito séria ao avanço do conhecimento é a falta de organização e acesso rápido a informações bibliográficas", diz o pesquisador Hussam Zaher, curador das coleções de herpetologia e paleontologia do Museu de Zoologia da USP.
O SciELO é uma biblioteca eletrônica de acesso livre a publicações científicas, com mais de 300 periódicos do Brasil e outros países da América Latina, além de Portugal e Espanha. Mantida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), em parceria com a Bireme/Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o sistema recebe 25 milhões de downloads por ano.
O SciELO Biodiversidade entraria como uma área temática de destaque, aumentando o número de publicações disponíveis e criando mecanismos de busca específicos sobre o tema. "Esperamos com isso fortalecer a produção de conhecimento sobre biodiversidade, assim como sua divulgação", diz o diretor da Bireme, Abel Laerte Packer.
OBRAS RARAS
Outra meta do projeto é a digitalização de obras raras sobre biodiversidade, a exemplo do que foi feito recentemente com a Flora Brasiliensis, a obra produzida pelo naturalista alemão Carl von Martius durante o século 19 e que, até hoje, é a principal referência de botânica sobre a flora brasileira.
A idéia, segundo Zaher, é criar um laboratório de digitalização na Bireme, além de unidades móveis que percorreriam as oito principais bibliotecas científicas do País. A meta seria digitalizar até 800 obras nos próximos três anos (100 em cada biblioteca). "O acesso a informações históricas é essencial para o estudo da biodiversidade", explica Zaher. "Trabalhamos com regras de nomenclatura que freqüentemente nos jogam para textos dos séculos 18 e 19."H.E.
Consulta a acervos também é difícil no próprio Brasil
Em um país de dimensões continentais, a facilitação do acesso a acervos biológicos também é uma preocupação doméstica. Uma das ênfases do Programa de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio), criado em 2004 pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, é justamente a digitalização das coleções nacionais, começando pela Amazônia e o semi-árido.
Vários acervos já estão informatizados, principalmente os de botânica. "É um trabalho braçal, de transferir informações das fichas e dos livros de tombamento para um sistema computacional", explica Célio Magalhães, coordenador técnico de Coleções Biológicas do PPBio no Inpa. O próximo passo, já em andamento, é digitalizar as amostras vegetais, com prioridade para os holótipos (representativos para a descrição de uma espécie).
O objetivo maior é criar uma grande rede virtual, interligando todas as coleções do País. Um projeto assim, de US$ 50 milhões, foi submetido ao Fundo Mundial para o Meio Ambiente (GEF). A resposta deve sair este semestre.
(O Estado de S. Paulo, 23/04/06)