Técnicos da Bolívia vêm ao Brasil para negociar termos de decreto para gás natural
2006-04-19
Numa reunião fechada com deputados federais do PT há duas semanas, o assessor especial do presidente Lula para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, contou que o governo considera “delicada” a situação da Petrobras na Bolívia e preocupa-se com o desfecho do caso. O discurso da estatização do setor de petróleo e gás pesou na vitória eleitoral de Evo Morales, empossado presidente boliviano em janeiro, e os primeiros dias do novo governo mostraram certas divergências com a Petrobras. A inexistência de um acordo de proteção de investimentos do Brasil com a Bolívia poderia ser mais um complicador, mas um pequeno detalhe quase despercebido pode acabar influenciando as negociações. As operações da Petrobras naquele país são controladas por uma subsidiária constituída na Holanda, a PIB-BV. E a Holanda possui acordo de proteção de investimentos com a Bolívia.
Um acordo de proteção de investimentos resguarda capitais aplicados mutuamente entre os signatários, segundo o Itamaraty. Fixa, por exemplo, garantias de que o investimento não será estatizado, salvo casos previstos. E, mesmo na hipótese de nacionalização, assegura o direito do investidor de apelar a uma corte internacional para se defender e reivindicar ressarcimentos. Em tese, a Petrobras pode se valer desta última prerrogativa, graças a um acordo de “fomento e proteção recíproca de investimentos” firmado por Bolívia e Holanda em 13 de dezembro de 1990.
A estatal evita comentar se recorreria ao acordo Holanda-Bolívia ou se tal entendimento influenciou, no passado, a definição do controle das atividades no país vizinho – a PIB-BV comanda ainda operações da Petrobras em outros 13 países. A explicação oficial da empresa diz que “a opção pelo controle por meio de uma subsidiária internacional está relacionada a questões tributárias e operacionais que facilitam o desempenho das atividades da companhia. Entre os países que mantém acordo tributário com o Brasil, a Holanda é que oferece melhor flexibilidade financeira e operacional”.
Os comentários e a natureza da contenda, porém, não têm sido empecilho para a evolução no sentido do entendimento entre as partes. O silêncio da Petrobras sobre a situação na Bolívia faz parte de um jogo combinado pelo presidente da empresa, José Sérgio Gabrielli, com Evo Morales, quando o líder boliviano esteve em Belo Horizonte (MG), há duas semanas, para reunião do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Os dois acertaram a retomada das conversas, depois do esfriamento que se seguiu à posse de Morales, mas sem mandar recados um ao outro via imprensa. “Temos um acordo de confidencialidade com a Bolívia para não fazer debates públicos”, contou Gabrielli.
As negociações têm como alvo a formulação do decreto que regulamentará a lei 3.058, que determina a posse pelo estado boliviano de todos os campos de petróleo e gás do país. A chamada lei dos hidrocarbonetos, de 17 de maio do ano passado, foi editada no governo anterior, de Eduardo Rodríguez. Ao preparar o decreto, Morales cumpre a legislação herdada. Na prática, o decreto estabelecerá se vai haver estatização, e em que grau, das atividades da Petrobras. O regulamento pode impor uma pesada cobrança de impostos e, no limite, declarar que tudo passará às mãos do Estado.
Um grupo de técnicos da Bolívia encarregados de elaborar o decreto deve vir ao Brasil esta semana (17 a 21), segundo o ministério de Minas e Energia, para uma rodada de conversas. Ao participar de audiência pública no Senado semana passada (11), Gabrielli explicou o espírito que orientará a empresa neste tipo de negociação. “Há objetivos comuns e interesses comuns entre quem produz [gás] e não tem onde pôr [Bolívia] e quem demanda e quer trazer [Brasil].”
De acordo com Gabrielli, “no horizonte que temos hoje, não podemos dispensar o gás da Bolívia”. O Gasbol, que transporta gás de lá para cá, tem capacidade para 30 milhões de metros cúbicos. O maior investimento da Petrobras em produção de gás no Brasil - em Santos (SP) - precisará de US$ 18 bilhões e nove anos para atingir o mesmo patamar de fornecimento. “Infelizmente, dependemos da Bolívia”, disse Gabrielli.
A dependência obriga a Petrobras a fazer concessões, mas a empresa acredita que também tem condições de arrancá-las de Morales. O setor de petróleo e gás naquele país responde por cerca de um terço da arrecadação de impostos. Além disso, há investimentos previstos na Bolívia para os quais a direção da empresa tenta criar um “ambiente regulatório favorável”, na expressão de Gabrielli. Em síntese, a estatal busca uma relação de sociedade com o governo boliviano, hipótese que foi inclusive defendida por Morales durante o encontro do BID.
Para todos os efeitos, a Petrobras já cogita uma saída para suprir a demanda de gás no País, “se a situação ficar muito grave”. Importar uma variedade do Catar, diferente da boliviana, num processo que exigiria uma engenharia química dispendiosa e complexa, para aproveitamento no Brasil. “É um projeto caro, de custo elevado, mas com uma crise incontornável, é uma alternativa”, afirmou Gabrielli.
(Carta Maior, 17/04/06)
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