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2006-04-17
O Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, a maior unidade de conservação de Santa Catarina, está prestes a perder cerca de 10% de seu território por razões pouco esclarecidas. Alegando buscar a solução de problemas sociais e ambientais históricos, um grupo pretende transformar a zona de entorno do parque em Área de Proteção Ambiental (APA) e, junto com ela, desanexar quase 10 mil hectares de mata intocada. A unidade de conservação abriga cinco dos seis ecossistemas presentes no Estado e é considerada pela Unesco como zona núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.

A proposta de recategorização está ganhando força e já conta com o apoio de prefeitos e deputados, além de milhares de moradores da região do entorno do parque. Entretanto, se submetido a uma análise um pouco mais cuidadosa, como a que foi apresentada pela Fundação Estadual do Meio Ambiente (Fatma) na última terça-feira (11/4), o projeto apresenta uma lista de fragilidades.

A primeira delas é elementar: o projeto não tem a assinatura de um técnico responsável, está apenas creditado à empresa Polar – Engenharia e Consultoria em Meio Ambiente Ltda, especializada em realizar Estudos de Impacto Ambiental e Relatórios de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) para grandes empreendimentos. O segundo ponto, e o mais questionado, é sobre as intenções da proposta.

Recategorizar o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, como propõe o movimento, significa criar regras mais restritivas para a região do entorno da unidade de conservação (UC), onde moram cerca de 30 mil pessoas, e regras mais flexíveis para o interior da reserva. Pela proposta, o parque seria reduzido de 87.405 hectares para 78.853 hectares. O relatório da Fatma, apresentado na primeira reunião oficial do Fórum Permanente da Serra do Tabuleiro (11/04), traz em letras garrafais a pergunta: “desanexar para quê?”

A questão é pertinente. O Movimento pela Recategorização, que, além da proposta, elaborou também um Projeto de Lei para acelerar o processo, alega que a importância do projeto é resolver a vida dos milhares de habitantes da Baixada do Massiambu, que estariam sendo prejudicados pela UC. Mas o debate questiona esse argumento. Primeiro porque essas 30 mil pessoas não estão dentro do parque, como acreditam. Na UC existem apenas 2,5 mil pessoas, apesar de o número de interessados na recategorização ter composto uma lista com 8 mil nomes em um abaixo-assinado. Segundo, porque, dentro da área que pretendem transformar em APA, está uma zona de proteção integral totalmente desabitada em frente às paradisíacas praias da Guarda do Embaú, Pinheira e Ponta dos Naufragados, pronta para ser explorada caso o projeto “passe”.

O Projeto de Lei encaminhado pelo Movimento pela Recategorização comete inclusive uma gafe jurídica, propondo a criação o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro novamente, o que já foi feito pelo decreto n° 1.260 de 1975. A reserva abrange 1% de todo o território catarinense e abriga mata atlântica, floresta de araucária, restingas, manguezais e campos de altitude. De acordo com Luiz Pimenta, coordenador do Centro de Visitantes do parque, a UC já foi demarcada, mas muitos marcos foram arrancados. “O governo vai abrir licitação para que sejam feitos estudos com a Fatma e assim redefinir ou não alguns limites”, diz.

Na prática, se o projeto for aprovado, os moradores que apóiam a recategorização por reclamarem das restrições que a UC traz à sua rotina, terão que obedecer às regras de uma APA, isto é, terão que tratar seus esgotos, não poderão utilizar agroquímicos nem pastoreio extensivo, ou atividades de mineração, terraplanagem, dragagem, escavação, atividades industriais e toda a lista de restrições que a legislação prevê. Só que eles não sabem disso.

“Questionei vários moradores e eles simplesmente não sabem o que é uma APA“, diz Elizabeth Albrecht, da ONG Gigante Espírito do Tabuleiro (GET). A pergunta da ambientalista foi feita em uma audiência pública marcada por muita confusão, no dia anterior à reunião do Fórum Permanente da Serra do Tabuleiro.

Os milhares de habitantes da Baixada do Massiambu que apóiam a recategorização podem sair frustrados com o resultado da disputa, segundo a procuradora da Fatma, Rode Martins. “O que se verificou na audiência pública é que não há um problema, mas vários, e a recategorização não resolve a maioria deles”, diz.

O Parque Estadual da Serra do Tabuleiro já sofreu um revés depois de quatro anos da sua criação, quando, em 1979, foi desanexada a porção litorânea da reserva, onde fica justamente a Baixada do Massiambu, por causa da ocupação massiva. A desanexação não resolveu o problema dos moradores e nem do meio ambiente. Na época, a área era do estado e foi cedida para o município de Palhoça, que loteou e vendeu 5 mil terrenos, com títulos de propriedade que não têm valor.

Por outro lado, a bela região verde que hoje pretendem desanexar poderá ser explorada comercialmente. A prefeitura de Palhoça, município que abriga parte da reserva, já deu o primeiro sinal de que pretende aproveitar o espaço: apresentou um Projeto de Lei para permitir construções de até quatro andares na região. No meio de tanta polêmica, o projeto acabou arquivado, por enquanto.

De acordo com Renato Sehn, líder do movimento pela recategorização e dono de uma luxuosa pousada na Ilha do Papagaio, a porção intacta de mata atlântica foi incluída porque o projeto de recategorização abrange uma área entre as rodovias que cruzam a reserva, que são a BR-101, estradas municipais de Palhoça e Paulo Lopes, além de diversas vias secundárias.

O argumento não convenceu a ambientalista Elizabeth Albrecht. “As rodovias pelo meio da reserva podem ter cuidados como quaisquer outras que existem no Brasil, com cercas e placas. O que há de difícil nisso?” Ela ainda questionou quem iria pagar a implantação da APA, ou como será feita, já que as pessoas terão que se adequar a regras mais rígidas. O Deputado Vânio dos Santos (PT/SC), presidente do Fórum, disse que essas questões serão debatidas nos próximos encontros.

A reunião do fórum foi curta, apenas duas horas em que só parlamentares, representantes do Movimento pela Recategorização, dos ambientalistas e da Fatma tiveram direito a voz, mas foi suficiente para pôr em xeque as principais justificativas da proposta.

O embasamento técnico para respaldar a desanexação de parte da reserva também foi questionado. Os autores da proposta de recategorização tomaram como exemplo a transformação do Parque Estadual do Delta do Jacuí (RS) em APA, em 2004, o que até hoje é contestado na Justiça. Para Ana Cimardi, diretora de Proteção de Ecossistemas da Fatma, o modelo não serve para a Serra do Tabuleiro. “No Delta do Jacuí existiam de fato 14 mil pessoas dentro do parque. Naquele caso a reserva não cumpria mais os objetivos de uma unidade de conservação de proteção integral, mas não é o que acontece aqui”.

Até o deputado Sergio Godinho (PSB/SC), conhecido por defender regras mais flexíveis para a preservação das araucárias, foi cauteloso para tratar da recategorização. “Estou vendo muita unanimidade neste projeto, o que é preocupante. A audiência pública não deu oportunidade para que pessoas contrárias se manifestassem. Precisamos de um maior debate técnico, com pessoas que entendam realmente do assunto”, disse. “Precisamos discutir muito para depois não nos arrependermos pela recategorização de toda aquela área, defendida por entidades internacionais como a Unesco”, completou.

As reuniões do Fórum Permanente da Serra do Tabuleiro serão realizadas todas as terças-feiras, a partir das 17h30, na sala de comissões da Assembléia Legislativa. O resultado dos debates servirá para a elaboração de uma proposta a ser encaminhada ao governador. O prazo para o encaminhamento, entretanto, permanece em aberto, já que os participantes ainda estão discutindo se é mais importante votar rápido a proposta, por se tratar de ano eleitoral, ou se, justamente por isso, seria melhor estender o debate para além do clima de campanha.

Propostas alternativas têm menos força do que a recategorização
Enquanto a proposta de recategorização concentra atenções, outras alternativas apresentadas pela Fatma figuram em segundo plano. Em vez de desanexar 8.552 hectares da reserva, por exemplo, a fundação propõe fazer desanexações pontuais dentro do parque onde estão de fato as 2,5 mil pessoas que habitam a reserva. O Movimento pela Recategorização acredita que isso não vai resolver o problema.

O oceanógrafo Alex Strey, diretor da empresa Polar – Engenharia e Consultoria em Meio Ambiente Ltda, defende que a estrutura urbana da área é própria para uma APA. “Aquela região do parque está cortada por várias rodovias de acesso de turistas, e mesmo as pessoas que estão fora do parque vão interferir na unidade”, disse ele na reunião do Fórum. Strey acredita que “a APA é um lugar onde se cumprem as leis”. Ele anunciou na reunião do dia 11/04 que vai se afastar da coordenação do movimento para assumir um cargo político na Secretaria do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul.

Outro ponto favorável à recategorização citado pelo oceanógrafo é que, transformando a área em APA, o Estado ficaria desobrigado do processo de indenização para a regularização fundiária da região. A proposta da Fatma, já acatada e definida pelo Ibama, é que a regularização seja feita com verbas de compensação ambiental pela duplicação da Rodovia BR-101.

Para resolver o problema da região do entorno, a Fatma propôs a alteração da zona de proteção especial, onde estão as comunidades. A fundação entrou com uma proposta de alteração do decreto estadual 14.250/81, que estabelece uma zona de 500 metros ao redor do parque como proteção especial. “A Fatma reconhece que o decreto 14.250 está ultrapassado”, diz Luiz Pimenta. “Sabemos que uma zona de 500 metros com regras de área de entorno é inviável. Já encaminhamos uma proposta de flexibilização, só falta o governador assinar, mas alguns deputados estão trancando o projeto porque estão do lado da recategorização”, critica.

Renato Sehn afirma que a proposta de alteração do decreto estadual não tem poder para mudar a situação. “A Fatma não dá explicações para ninguém. Há lei federal que regula a área de entorno do parque. É mentira quando dizem que não há proibição”, rebate.

Movimento questiona destino de verba
Verbas internacionais para o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro têm sido motivo de discussão entre o Movimento pela Recategorização e a Fatma. Os líderes do movimento falam em R$ 180 milhões de dólares financiados pelo banco alemão KFW e o Banco Mundial. O movimento vai encaminhar uma carta aos dois bancos para saber onde estão sendo investidos os recursos.

A Fatma afirma que o banco alemão de fato concede ao estado recursos do Projeto de Preservação da Mata Atlântica que somam cerca de 14 milhões de euros, divididos em parcelas de 750 mil por mês. Além disso, há mais 1,5 milhão de dólares via Global Environmental Fund (GEF).

“A desanexação de parte da reserva pode acarretar na perda de grande parte desses recursos”, diz Ana Cimardi. Ela explica que a verba foi investida na contratação de novos funcionários para o parque, na criação do Centro de Visitantes em 2002 - que recebeu até hoje 45 mil visitantes – além do desenvolvimento de 18 projetos de pesquisa no parque.

Tudo começou por causa de multas ambientais
A mobilização pública pela recategorização do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro começou em 2000, quando o Ministério Público resolveu pedir a punição pelos crimes ambientais cometidos em Áreas de Preservação Permanente (APP) da Baixada do Massiambu. “A situação estava caótica, gente ocupando beira de rio, aterrando mangue, aí o promotor entrou com os Termos de Ajustamento de Conduta [TAC] para frear a ocupação desordenada”, diz Luiz Pimenta. Entre as restrições impostas, o MP recomendou à Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan) e à Centrais Elétricas de Santa Catarina (Celesc) que não ligassem mais água e luz na região, o que causou a revolta dos moradores.

Qualquer promotor da região poderia ter entrado com os TAC, mas foi a promotoria temática do parque que assumiu o problema. Por isso, os moradores da Baixada do Massiambu passaram a acreditar que estavam dentro da reserva e a lutar contra ela. O líder o movimento, Renato Sehn, também foi chamado pelo Ministério Público para firmar um TAC.

Se o conflito começou porque os moradores ficaram revoltados por não poderem explorar APPs, mesmo com a recategorização, continuarão insatisfeitos. “A recategorização não é uma solução, ainda mais porque boa parte da área proposta para exclusão do parque é de preservação permanente, cujo uso – ainda que sustentável - permanece inadmissível”, diz Rode Martins, procuradora da Fatma.
Por Francis França

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