Brasil intervém na "guerra das papeleiras"
2006-04-17
O recrudescimento da crise diplomática entre Uruguai e Argentina nos últimos dias fez o Brasil procurar os sócios do Mercosul para tratar do tema e tentar destravar a chamada "guerra das papeleiras" -o conflito entre os vizinhos pela instalação, em território uruguaio, de duas multinacionais produtoras de celulose.
Embora a diplomacia brasileira repita que se trata de um problema bilateral, e não do Mercosul, antes de viajar ao Japão o chanceler Celso Amorim conversou com todos os envolvidos na questão. Telefonou duas vezes para o colega uruguaio, Reinaldo Gargano. Falou do assunto com o chanceler argentino, Jorge Taiana. Também ouviu Leila Rachid, chanceler do Paraguai, o outro sócio do bloco que assiste à disputa.
Amorim conversou também com a chancelaria da Finlândia. É que no centro do conflito está a finlandesa Botnia, uma das indústrias em obras no Uruguai. Com 30% de suas instalações construídas na cidade uruguaia de Fray Bentos, a Botnia anunciou investimento de US$ 1 bilhão na fábrica -o maior investimento da história do Uruguai e o maior dos finlandeses fora do país.
A preocupação finlandesa com os rumos do crise também chegou ao Planalto. A presidente da Finlândia, Tarja Halonen, falou diretamente com Lula no encontro que tiveram no dia 6.
Enquanto Halonen se reunia com o presidente brasileiro, o conflito entre Uruguai e Argentina dava sinais de que está longe do fim. E foi justamente a Botnia que colocou a última pedra na tentativa de trégua entre os países.
Em março, os presidentes uruguaio, Tabaré Vázquez, e argentino, Néstor Kirchner, acertaram uma trégua de 90 dias. O trato é que as "papeleiras" paralisariam suas obras enquanto se fazia um estudo independente do impacto ambiental (as fábricas estão sendo construídas às margens do rio Uruguai, fronteira entre Argentina e Uruguai, águas de uso compartilhado pelos vizinhos).
Em troca, os ambientalistas e os moradores das cidades argentinas na fronteira -Gualeguaychú e Colón- que protestam contra as obras liberaram as passagens terrestres com o Uruguai, bloqueadas havia mais de 40 dias.
Dias depois, ruiu a tentativa de encontro entre Vázquez e Kirchner -e a Botnia anunciou que só pararia as obras por dez dias. A decisão causou reação em Gualeguaychú, que voltou a fazer os bloqueios por tempo indeterminado. Em pleno feriado da Semana Santa, apenas uma passagem terrestre entre os vizinhos ficou liberada.
Com as negociações de volta à estaca zero, e com os apelos do Uruguai para levar a questão ao Mercosul e a tribunais internacionais, ficou difícil para Brasília apenas acompanhar o conflito. O Uruguai diz que os piquetes já causaram perdas de US$ 400 milhões. E, se continuarem, até exportações brasileiras que usam as estradas como rota alternativa ao Chile poderiam ser afetadas.
A intervenção de Amorim, nos bastidores, na crise de proporções inéditas no Mercosul acontece às vésperas da cúpula América Latina e UE. Programada para maio, a reunião é considerada simbólica para as negociações com a Europa. Além de já azedar as reuniões entre os sócios, a "guerra" entre os vizinhos também causa problemas à imagem do Mercosul.
Simpatia pró-Uruguai Apesar de enxergar erro nas atitudes de uruguaios e de argentinos, há uma certa simpatia pró-Uruguai na diplomacia brasileira.
A percepção é que eventual desistência dos finlandeses e dos espanhóis -donos da segunda fábrica- em pôr dinheiro no país pode afugentar negócios e aproximar mais os uruguaios dos Estados Unidos.
Além das reiteradas defesas de seus ministros de um acordo de livre comércio com os americanos, Vázquez tem encontro agendado para maio com George W. Bush.
Moradores bloqueiam estrada há 67 dias
"Qualquer estudo ambiental sério vai demonstrar que as indústrias contaminam. Queremos as papeleiras longe daqui", disse Estela de Lanterna, aposentada da cidade argentina de Gualeguaychú, enquanto passava a caneca de mate aos companheiros.
Na última quinta-feira, o grupo da assembléia de moradores fazia plantão no bloqueio na principal passagem terrestre entre Uruguai e Argentina, que já dura 67 dias. A última interrupção total começou no dia 3, sem data para terminar -embora com cada vez mais pressão contrária.
Do outro lado da ponte sobre o rio Uruguai, a cerca de 50 km, está a uruguaia Fray Bentos, onde se erguem duas fábricas de pasta de celulose. Só os poucos moradores que vivem lá e trabalham na Argentina e pequenos fazendeiros da região podem passar. Os demais têm que desviar cerca de 300 km para encontrar a única passagem hoje liberada entre os vizinhos. As empresas de transporte uruguaias ameaçam parar de levar cargas e pessoas à Argentina se os piquetes continuarem depois da Semana Santa.
Apesar das críticas recentes da Casa Rosada aos bloqueios, os assembleístas seguem com o protesto, sem ameaças de desalojamento e com infra-estrutura da prefeitura de Gualeguaychú.
A prefeitura cedeu um carro de apoio e provê policiamento na área, onde há barracas e banheiros. Os manifestantes explicam o apoio oficial que irrita os uruguaios: a cidade acredita que, com as fábricas, vai perder seu apelo turístico. Além do Carnaval mais tradicional do país, com direito a sambódromo, há parques e praias ao longo do rio.
Nenhum estudo completo do impacto ambiental das fábricas, aceito por argentinos e uruguaios, foi feito até agora. Um relatório do Banco Mundial, um dos potenciais financiadores das obras, recomenda que as indústrias forneçam maiores informações de seus métodos de produção.
O que é sabido é que, se instaladas, as fábricas de pasta de celulose terão ao menos um inconveniente para o turismo: o cheiro característico -semelhante ao de ovo podre- que liberam. Mas para os moradores de Fray Bentos, também cidade turística da região, a relação custo/benefício vale a pena. "Toda fábrica contamina alguma coisa, mas não é como eles dizem. Agora temos emprego", diz Rodolfo Soñora, 52, vigilante de uma das indústrias, a Botnia.
Ele fazia parte da "Comissão de Apoio a Fonte de Trabalho", entidade criada há cinco anos, quando piorou a situação econômica de Fray Bentos, que tem 22 mil habitantes e hoje é um pólo decadente de exportação de carne. Soñora ganhava 6.000 pesos uruguaios, quando arranjava emprego na construção civil, e agora ganha 16 mil (R$ 1.400).
As duas fábricas juntas -Ence e Botnia- vão gerar cerca de 8.000 empregos diretos e indiretos, num dos maiores complexos da indústria de papel do mundo.
No Brasil, setor exporta US$ 3,4 bi e é 1,4% do PIB
O Brasil tem 220 empresas ligadas à indústria do papel. O país é o sétimo produtor mundial de celulose e o 11º no ranking global de fabricação de papel.
Segundo a Bracelpa (Associação Brasileira de Celulose e Papel), o setor exportou US$ 3,4 bilhões no ano passado e responde por 1,4% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro. Se no conflito da Argentina e no Uruguai está em questão os níveis de contaminação das fábricas, no Brasil a principal crítica de ambientalistas e movimentos de reforma agrária ao setor é a monocultura do eucalipto. São 1,7 milhão de hectares cultivados para fornecer árvores à indústria (eucaliptos são 75% do total).
Para especialistas e diplomatas do Mercosul, um dos motivos do conflito entre uruguaios e argentinos e que pode gerar outros problemas no futuro é a falta de uma política ambiental comum (não só para regular fábricas, mas também para o uso de recursos comuns, como rios e lençóis freáticos).
Mesmo o "Tratado do Rio Uruguai" assinado entre Argentina e Uruguai em 1975 -e hoje usado pelos argentinos para exigir informações das fábricas em território uruguaio-, é considerado vago.
(Folha de S.Paulo, 16/04/06)