— O que faço com os remédios que não vou mais usar ou que já estão vencidos?, perguntou a dona de casa Marta Gomes ao seu oftalmologista.
—Joga no lixo, respondeu o médico, com a maior naturalidade.
— Mas não há riscos para o meio ambiente ou para as pessoas que tiverem contato com esses medicamentos?
— Então despeje o líquido ou os comprimidos no ralo e depois jogue o recipiente fora, disse o doutor.
Se a falta de informação ou o descaso grassam entre profissionais da própria área da saúde, imagine entre a população.
Pesquisa realizada em Divinópolis – cidade do interior de Minas Gerais – por estudantes do segundo período do curso de farmácia da Unifenas comprova a ignorância do público. De acordo com o levantamento realizado em 2005, 82,8% dos entrevistados usa o lixo doméstico para efetuar tais descartes. O restante disse devolver para as farmácias ou continuar usando os medicamentos.
Entre universitários e comerciantes a situação é a mesma. O estudante de publicidade da PUC/RS, André Almeida Cardoso admite que joga no lixo orgânico todos os comprimidos e cápsulas restantes de algum tratamento ou que estejam fora do prazo de validade. "Quando é líquido despejo no vaso sanitário”. Proprietária de uma tabacaria e banca de revistas, Vera Rolim garante doar para uma farmácia popular de Porto Alegre os remédios que não precisa mais. "Quanto aos vencidos, jogo no lixo seco". Mais elaborada é a solução da estudante de direito, Susi Daiane Tavares Ramos. Ela desmancha os remédios velhos em um copo com água para depois despejar nos fundos de sua casa.
Medicamentos como analgésicos, antialérgicos, anti-sépticos, entre outros, fazem parte do nosso dia-a-dia. O que a maioria das pessoas ignora é o passivo ambiental causado pelo manuseio ou descarte inadequado dessas substâncias. A questão é saber como se livrar desta farmácia caseira em casos de medicação vencida ou sobras.
Empurra-empurra
Além da desinformação, a ausência de estrutura dos órgãos responsáveis para lidar com os resíduos de medicamentos agrava o problema. De acordo com Anderson Araújo de Lima, Coordenador da Equipe de Vigilância de Serviço e Produto de Interesse da Saúde, da Secretaria de Saúde de Porto Alegre, medicamentos com prazo de validade excedido devem ser devolvidos ao fabricante. Anderson explica, entretanto, que "não há formalizado essa rede de devolução, principalmente por haver muitos laboratórios de empresas multinacionais, o que inviabilizaria o retorno".
O Diretor da Divisão de Destino Final do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), Eduardo Medeiros contesta a declaração de Lima e afirma que o fato de haver empresas multinacionais fornecendo medicamentos não é empecilho para a devolução. "Todas elas têm sede no Brasil, e têm distribuidores, que são responsáveis diretos pelo recolhimento". Conforme Medeiros, o cidadão que tiver em sua casa algum tipo de químico vencido ou que não tenha mais utilização deve procurar uma farmácia ou o laboratório fornecedor e fazer a devolução, jamais sendo depositados em lixos domésticos. "Ele também deve avisar o DMLU quando possuir em sua casa Resíduos de Serviço e Saúde (RSS) – como materiais usados para hemodiálise, fraldas geriátricas ou outro tipo de utensílio ou medicamento hospitalar – para que possamos ir até o local e fazer a coleta de forma separada".
A intenção é boa, mas não é o que ocorre na prática. A dona de casa Silvia Stülp conta que ligou para o DMLU de Porto Alegre. Queria saber como proceder com as fraldas geriátricas usadas por sua tia. O responsável no Departamento sugeriu que fosse descartado junto ao lixo doméstico de banheiro. De acordo com ele a quantidade diária seria muito pequena – entre três a quatro fraldas – e o órgão apenas realizaria o recolhimento se tratando de uma Geriatria.
Embora o diretor do DMLU tenha recomendado a devolução para os estabelecimentos de compra, Marlise Canam, farmacêutica responsável por uma das unidades da Farmácia do Sesi na Avenida Azenha (Porto Alegre) informa que a loja não aceita a devolução por ser inviável administrativamente. "Tudo que entra e sai daqui precisa de nota fiscal. Quando devolvemos remédios vencidos, enviamos junto notas fiscais de todos eles. Isso não seria possível com medicação devolvida", disse Canam. Para ela, a melhor solução seria contatar o próprio Departamento de Limpeza Urbana ou a Secretaria de Vigilância Sanitária da cidade.
Responsabilidades e tratamentos
O jogo de empurra-empurra entre fabricantes, comerciantes e órgãos públicos contradiz a legislação nacional sobre o tema. Segundo Eduardo Medeiros, a resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) 358/29 de abril de 2005 indica que "todo gerador é responsável pelo seu resíduo". Ele explica que o DMLU, ao encontrar "resíduos de serviço e saúde" disposto em lugares irregulares – como, por exemplo, caixas de xarope ou de comprimidos jogados em um terreno baldio – tenta primeiro descobrir o responsável pelo descarte. Caso isso não ocorra, frisa, "o laboratório será notificado e irá responder por crime ambiental".
Além disso, os serviços de limpeza urbana não realizam trabalhos de coleta em residências. Esse serviço é restrito aos consultórios e hospitais, informa Anderson Araújo de Lima. Contatada, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ampliou a contradição. A assessoria de imprensa do órgão informou que a Agência não responde pelo controle do lixo doméstico, apenas por resíduos utilizados em hospitais. Anderson questiona a informação. Segundo ele, muitas pessoas continuam o tratamento em seus lares, utilizando os mesmos utensílios (como seringas) e químicos dos hospitais, o que caracteriza a responsabilidade do órgão.
Em Porto Alegre, além do DMLU, empresas terceirizadas, com licenciamento da
Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) estão aptas a recolher esses materiais químicos. A farmácia do Sesi, conforme Marlise Canan contrata os serviços da Ambientus. A empresa recolhe mensalmente os medicamentos vencidos e trata os resíduos por incineração – processo de destruição térmica realizado sob alta temperatura e utilizado para tratamento de resíduos de alta periculosidade. O mesmo tratamento é utilizado pela rede Panvel, que trabalha com a Pró Ambiente, informa Carla Sturm Trindade, farmacêutica responsável por uma das unidades da farmácia localizada na Avenida Azenha. Além dessas duas empresas, há ainda, na Grande Porto Alegre, a Aborgama do Brasil, que trata os resíduos por autoclavagem – tratamento térmico bastante utilizado no ambiente hospitalar e que consiste em manter o material contaminado a uma temperatura elevada, através do contato com vapor de água, durante um período de tempo suficiente para destruir todos os agentes patogênicos.
Por Tatiana Feldens
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