Órgãos públicos ainda não fizeram perícias para investigar crime ambiental
2006-04-17
Sete dias após a pulverização irregular de agrotóxicos que atingiu o segundo maior produtor de grãos do país, o município de Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, a promotora do Ministério Público Patrícia Euleutério Campos recebeu as denúncias do caso e abriu investigação. A Delegacia de Polícia Civil, o Instituto de Defesa Agropecuária (Indea) e o Ministério da Agricultura no estado também acompanham o caso. Até agora, nenhum dos órgãos colheu provas materiais que indiquem os responsáveis pelo crime.
Ouvidas as vítimas, pequenos produtores de hortifrutigranjeiros e os coordenadores do Horto Medicinal do Instituto Padre João Peter, foi instalado um procedimento administrativo para apurar os fatos. Para esclarecer a responsabilidade, a promotora precisa saber primeiro qual veneno foi utilizado, como foi aplicado e por quem. A Delegacia de Policia Civil de Lucas do Rio Verde, a pedido do Ministério Público, abriu inquérito civil e criminal para investigar o caso.
O Ministério Público solicitou uma perícia ao Centro de Apoio Operacional do MP em Cuiabá, mas, até agora, mais de um mês após a pulverização, a investigação ainda não foi feita. O órgão estadual responsável pela fiscalização, o Indea, também não colheu amostras. O Ministério da Agricultura no estado alega que só foi comunicado oito dias após o acidente, quando o prazo para colher o material contaminado já tinha acabado.
A fiscal federal agropecuária Márcia Albuquerque, que esteve em Lucas do Rio Verde no dia 9 de março, relatou que as não amostras das plantas danificadas não foram coletadas porque o prazo havia inviabilizado o teste de resíduos químicos. "Não havia resultados para apresentar", explicou.
A Secretaria Municipal de Agricultura e Meio Ambiente reconhece que notificou o fato apenas uma semana depois. Para identificar o tipo de veneno utilizado, a promotora de Justiça precisava dos exames que deveriam ter sido feitos pelo Ministério da Agricultura. "O Ministério Público só vai desistir da realização da perícia quando tiver uma informação oficial dessa impossibilidade", disse, ao ser informada que o órgão federal não realizou as perícias.
Secretaria municipal reconhece que aviões sem registro fazem pulverização de agrotóxico
A promotora do Ministério Público Patrícia Euleutério Campos descobriu que apenas duas aeronaves de duas empresas estão autorizadas a realizar a pulverização de agrotóxicos sobre as plantações no município de Lucas do Rio Verde, onde, no início de março, a área urbana da cidade foi coberta por uma nuvem de veneno. Os registros estão no Ministério da Agricultura no Mato Grosso.
Depois do acidente com o agrotóxico, a secretária municipal de Agricultura e Meio Ambiente, Luciane Bertinato Copeti, em parceria com o Ministério Público, fez um levantamento inicial e descobriu que existem pelo menos mais nove aeronaves de propriedade de fazendeiros que não estão registradas no Ministério da Agricultura.
"Alguém estava fazendo essa pulverização, próxima do perímetro urbano, e houve um inversão térmica, o que provocou essa deriva, que veio a ocasionar o problema no município de Lucas do Rio Verde. E não há fiscalização aérea para o município de Lucas do Rio Verde", reconhece.
A Agência Nacional de Aviação Civil informou, por meio do superintendente regional, coronel Gusmão, que o órgão não tem nenhum tipo de controle sobre essas aeronaves. "Elas geralmente decolam de campos de pouso das próprias fazendas, sem relatórios ou planos de vôo, passam a baixa altitude e não são identificados pelos radares", explica o coronel.
Médicos têm dificuldades em diagnosticar intoxicações por agrotóxicos
Os sintomas da intoxicação por agrotóxicos nos seres humanos podem ser confundidos com sintomas de outras doenças como a dengue ou a rotavirose, segundo o coordenador de Vigilância em Saúde Ambiental da Secretaria de Estado da Saúde do Mato Grosso, Oberdã Ferreira Coutinho. Somente uma investigação aprofundada poderia diagnosticar se a população de Lucas do Rio Verde, cidade pulverizada por agrotóxicos, foi afetada ou contaminada.
Para o secretário municipal de Saúde, Paulo César as estatísticas sobre o atendimento médico nos hospitais, postos e centros de saúde do município, disponíveis até o momento, ainda não permitem identificar se houve intoxicação da população. Segundo ele, nessa época do ano aumenta a incidência de dengue e rotavirose. Em virtude disso, os médicos têm dificuldade em diferenciar os sintomas que podem ser muito parecidos com os da intoxicação aguda por agrotóxicos.
Segundo o pólo regional de Saúde de Sinop, foram diagnosticados 41 casos de dengue em Lucas do Rio Verde entre janeiro e março. Desses, apenas seis casos foram confirmados. A diferença é questionada pelo mestre em saúde pública Wanderley Antonio Pignati, do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). "Os outros 35 casos diagnosticados como dengue e não confirmados não seriam intoxicações agudas por agrotóxicos?", pergunta.
O doutor Pignati fez uma analise comparativa dos dados sobre casos de intoxicação notificados pela saúde pública de Lucas de Rio Verde e dos municípios vizinhos. Segundo ele, municípios que têm uma produção de grãos muito menor do que Lucas, que é o segundo maior produtor de grãos do estado de Mato Grosso, chegam a apresentar estatísticas 48 vezes superiores.
"Quanto maior a produção de grãos do município, maior é o consumo de agrotóxicos e, pela lógica, maior deve ser a incidência dos casos de intoxicação por esse tipo de veneno. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), para cada caso notificado de intoxicação por agrotóxicos, 50 casos deixam de ser notificados", diz o mestre em saúde pública da UFMT.
Serviço de abastecimento garante que água de cidade do MT não está contaminada
Para o diretor do Serviço Autônomo de Abastecimento de Água e Esgoto (SAAE) do município de Lucas do Rio Verde, Daltro Sergio Filho, a água fornecida para a população não está contaminada, mesmo após a pulverização de agrotóxico sobre a área urbana da cidade no início de março. "Ela é de ótima qualidade. Fazemos testes diariamente conforme determina a portaria n. 518 do Ministério da Saúde. A nossa água é captada em oito poços profundos, poços artesianos", informou.
Os testes realizados diariamente pelo serviço de abastecimento de água da cidade são exames bacteriológicos que verificam a presença de germes e bactérias na água. Mas, segundo o doutor Wanderley Antonio Pignati, mestre em saúde pública da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), esse tipo de exame não consegue detectar a presença de resíduos químicos na água. Segundo ele, existem pesquisas que comprovam a presença de resíduos de herbicidas, fungicidas e inseticidas em poços artesianos com 100, 150 ou até 200 metros de profundidade.
"Tudo depende do tipo de solo, há solos mais e outros menos permeáveis à infiltração da água das chuvas, depende também da época do ano. No período chuvoso os resíduos são levados com mais rapidez para o lençol de água", informou o especialista da UFMT
Segundo Daltro Sergio Filho, periodicamente o município manda realizar o teste de resíduos químicos em laboratório particular: o Lacem. "Até o presente momento não tivemos notificação de nenhum resíduo químico na água que fornecemos", garante.
Especialista contesta exame da qualidade da água em Lucas do Rio Verde
Para o doutor Wanderley Antonio Pignati, mestre em saúde pública da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), a análise de resíduos químicos realizada pelo Serviço Autônomo de Abastecimento de Água e Esgoto (SAAE) de município de Lucas do Rio Verde, não obedece aos padrões e normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Isso, segundo ele, não pode garantir que a água que abastece a cidade não esteja contaminada por agrotóxicos.
Segundo o especialista, a Anvisa determina que esse tipo de exame, quando realizado em laboratórios particulares, tem que obedecer a determinadas normas, como por exemplo, as amostras de água têm que ser coletadas na presença de testemunhas e ser enviadas a pelo menos três laboratórios diferentes. No caso de Lucas de Rio Verde, as amostras foram coletadas pelo próprio Serviço Autônomo de Abastecimento de Água e Esgoto (SAAE) do município, conforme consta do laudo de um único laboratório particular que realizou a análise das amostras, coletadas em 21/03/2006: a Analítica Analises Químicas e Controle de Qualidade de Cuiabá.
Outra falha apontada pelo doutor Pignati refere-se ao fato de que o laboratório realizou testes para verificar a presença ou não de apenas dez princípios ativos. No Brasil, porém, existem mais de 650 princípios ativos que podem ser encontrados nos produtos que estão no mercado. O médico afirma que o laboratório não pode atestar que não existem resíduos químicos de herbicidas, pesticidas, desfoliantes e fungicidas, de maneira geral, conforme consta do laudo da análise feita pelo laboratório particular de Cuiabá. "No máximo, eles poderiam afirmar que não encontraram resíduos desses dez princípios ativos que eles analisaram."
Outro problema apontado pelo médico da UFMT é que os agrotóxicos têm seus princípios ativos modificados quando entram em contato com a água, o sol e o solo e se decompõem em metabólitos que podem ser tão ou mais perigosos para a saúde humana do que os próprios princípios ativos.
Como exemplo ele cita o caso do Paraquat, que é utilizado nas pulverizações para secar a vegetação. "O Paraquat entra em reação quando é exposto ao sol – ocorre uma fotólise e em uma semana o veneno original desaparece. Se você procurar pelo principio ativo do Paraquat, após uma semana você não vai encontrar, mas seu metabólito, que é altamente cancerígeno, vai estar lá, presente na amostra com a forma de Alfa-Paraquat. Se você não fizer os testes específicos para detectar o metabólito Alfa-Paraquat, você não vai encontrá-lo", explicou.
Moradores de Lucas do Rio Verde suspeitam da qualidade da água
"A gente está banhando com água envenenada", afirmou Hilária Vandcheer, moradora de Lucas do Rio Verde (MT), cidade localizada a 280 quilômetros ao norte de Cuiabá, pulverizada por uma nuvem de agrotóxicos no dia 1º de março. "Aqui tem bastante gente com alergia. Geralmente quando sai do banho é que dá uma vontade de ficar coçando. Provavelmente tem alguma coisa na água", suspeita Hilária.
"A gente vai trocando de sabonete. Eu falo com o vizinho e outras pessoas. Eu troquei de sabonete, mas a coceira continua. A gente vai falando com um, com outro e todo mundo tem essa alergia. Na família todo mundo tem a mesma coceira, os vizinhos também, então não pode ser o sabonete. Deve ser a água", afirmou.
Outro morador da cidade, Celito Trevisan, afirmou que "antigamente a gente nunca ouvia falar em alergia, sarna, bronquite, coceira. Hoje é impressionante, todo mundo na cidade tem algum tipo dessas doenças. Como é difícil saber se as causas são os agrotóxicos que estão no ar, na água, as pessoas ficam achando que é a roupa, que é o perfume, que é o sabonete, que são coisas palpáveis que podem ver. A contaminação com agrotóxico é invisível e então é mais fácil acreditar naquilo que você pode ver".
A professora Cleuza Marchesan de Marco afirma que na escola onde leciona, "todos os dias tem um índice alto de alunos se ausentando por problemas digestivos, diarréias, dores de cabeça". Para ela fica sempre a duvida se as causas são as contaminações com agrotóxicos que estão nos alimentos, no ar, na água ou se as causas podem ser outras.
Até agora, a investigação da pulverização irregular de agrotóxicos sobre a cidade não produziu as provas para identificar a responsabilidade sobre o crime. Os testes do Serviço Autônomo de Abastecimento de Água e Esgoto (SAAE) do município de Lucas do Rio Verde não apontam contaminação. Mas o mestre em saúde pública responsável pela denúncia do caso questiona os métodos de análise. "No máximo, o serviço pode afirmar que não encontrou resíduos em dez princípios ativos que eles analisaram", explica em referência aos mais de 650 existentes hoje no Brasil.
(Radiobras, 14/04/06)