João da Silva tem 48 anos e foi vaqueiro — daqueles que tocam berrante e
conduzem comitivas de bois no Pantanal alagado. A paixão do peão era ter uma
“tralha de arreio”, material em couro e alpaca para encilhar cavalos. Mas a
vida deu uma guinada, e ele acabou virando criador de borboletas.
“Conheço o comportamento delas, as doenças e o ambiente das plantas que são
seu alimento”, conta João da Silva. Ele nunca freqüentou escola, mas há três
anos domina conhecimentos sobre aspectos biológicos e ecológicos de 17 espécies
de borboleta, que identifica pelos nomes científicos. Cuida delas para o
borboletário do Serviço Social do Comércio (Sesc), em Porto Cercado, pequeno
lugarejo do município de Poconé, a 145 km de Cuiabá (MT).
O ex-vaqueiro agora é responsável pela cadeia de reprodução dos insetos. Isso
inclui o envio de ovinhos para as casas de pessoas que vão “adotam” as
lagartas quando nascerem, alimentando-as até que se transformem em crisálidas.
Antes de eclodirem, João manda buscá-las.
Trabalho delicado, que influenciou a personalidade do pantaneiro. “Foi uma
mudança completa na minha vida. As borboletas são sensíveis, tem que ter
carinho ou elas morrem. Tem hora que fico pensando e não acredito que mudei
tanto. Para lidar com gado é preciso uma brutalidade imensa, eu tinha sangue
na veia, era de puxar revólver pra briga. Hoje sou calmo, caseiro, tenho uma
neta que a primeira palavra que aprendeu foi boeta. Eu lido com meus bichos
e sou feliz”, resume.
A borboleta preferida de João é a
Mechanitis polymnia , que nasce de
uma crisálida prateada e parece um brinco. “A planta hospedeira é o cavu roxo.
Os pantaneiros deram esse nome porque usavam para tingir linha de anzol. É um
cipó de leite. Encontrei a lagarta e trouxe a planta, via a borboleta na mata
e nunca tinha visto o casulo. Quando surgiu a crisálida foi uma surpresa. É
linda”.
Floresta em casa
As borboletas estão mexendo com a vida de muita gente em Poconé. “Nossos
quintais estão virando florestas”, conta Leonite Mendes. “Muitas plantas que
elas comem são do Cerrado. Eu fiz cursos de jardinagem e de educação ambiental
para conhecê-las e poder reproduzi-las em casa. Descobri uma espécie que eu
não conhecia, a olho de coruja, Caligo illioneus, que nós chamamos de casulo
dourado. A planta hospedeira dela é a bananeira. A gente aprende a contemplar
coisas que antes passavam despercebidas”, comenta.
Leonite é uma das 25 donas-de-casa que cuidam do desenvolvimento dos ovos até
a fase de crisálidas. As crisálidas são enviadas duas vezes por semana para
Porto Cercado, onde o Sesc tem o borboletário e também um hotel que recebe
turistas que passam por lá para visitar a Reserva Particular de Patrimônio
Natural (RPPN) Sesc Pantanal. A instituição paga R$ 1 por casulo que recebe,
até R$ 280 mensais por pessoa.
Além do complemento da renda, o borboletário chega a contribuir com o
equilíbrio emocional das famílias. Desde que começou a participar do projeto,
há dois anos, Fátima Aparecida Leite esqueceu da tristeza. Ela fora
hospitalizada diversas vezes por depressão. “As borboletas me ajudaram
psicologicamente, pois trabalho com muito amor. Isso se reflete na minha vida.
Ah, e temos também nosso dia de princesa, durante os cursos de educação
ambiental, quando ficamos hospedadas em Porto Cercado”, conta. Para assistir
às aulas, as mulheres permanecem alguns dias no hotel cinco estrelas que o
Sesc mantém às margens do rio Cuiabá. Com o dinheiro que recebe, Fátima ainda
paga a faculdade do filho, que está desempregado.
Mel contra o fogo
Nem só de borboletas é feita a mudança nas vizinhanças do Sesc Pantanal. Na
minúscula comunidade chamada Retiro, a produção de mel é um estímulo para o
controle de queimadas. “Com o fogo, bate o prejuízo, pois com fumaça não tem
abelhas”, explica José Fernandes, animado com a colheita que começou há pouco
mais de um ano e rendeu mais de 300 quilos para seis famílias. O mel vem da
florada do cambarazal, floresta que em agosto exibe um tapete suspenso de
flores amarelas.
Num lugarejo onde o dinheiro circula escasso, José Marco Souza recebeu R$ 680
com um enxame, em 20 dias. Lucro rápido pelos 68 quilos do mel que conseguiu,
mandado para as prateleiras do Hotel Porto Cercado e para a Casa do Artesão,
em Cuiabá. As seis famílias iniciais se transformaram em 12 este ano. Os
moradores calculam que possam fazer cinco colheitas de julho a novembro.
Os atrativos aos poucos convencem a população a usar menos o fogo. “Parte do
fogo que entra na reserva vem daqui. As pessoas não têm trator para fazer
roçados e por isso fazem queimadas. Há um grande disparate entre as áreas de
incêndio e as terras cultivadas. Aqui, ao norte da reserva, foram 250 mil
hectares queimados no ano passado, para 50 hectares produzidos. Isso acontece
porque depois que o fogo pega eles perdem o controle”, conta Afonso Francisco
de Assis, coordenador do Projeto Colméia, da RPPN Sesc Pantanal.
Estudos e negócios
Os projetos mostram que é possível conciliar interesse econômico e
sensibilidade ambiental. Mas para garantir a permanência desses novos valores,
a palavra-chave é educação. “Eu poderia fazer artesanato em casa e talvez
conseguir o mesmo lucro. Mas estaria limitada à minha casa. Integrados a um
projeto de desenvolvimento sustentável, em grupo, temos informações sobre
exigências do consumidor, sobre o mercado, e aprendemos a administrar pequenas
empresas. Agora mesmo estamos com um professor de Direito da Universidade do
Estado de Mato Grosso, de Cáceres, em um curso sobre Cooperativismo e
Associativismo. Ele nos orienta como manter nossa cooperativa. Porque criá-la
é fácil, manter é o duro”, afirma Patrícia Oliveira.
Patrícia trabalha com cumbaru, uma amêndoa deliciosa que nasce em todos os
quintais em Poconé, mas até agora nunca havia sido consumida pela população.
Um grupo de 25 pessoas está fazendo artesanato com as cascas e torrando o
fruto, vendido em saquinhos. Começaram a tarefa há dois anos, e a primeira
colheita rendeu R$ 8 mil.
O trabalho com o cumbaru, da espécie
Dipteryx alata Vog , foi sugerido
pela engenheira agrônoma Maria Tereza Jorge Pádua, consultora da RPPN Sesc
Pantanal e colunista do O Eco. Ela já o conhecia do Cerrado em outros estados.
A amêndoa tem alto teor de proteínas, amadurece entre setembro e outubro,
suas árvores chegam a 25 metros e os frutos produzem óleo com valor para a
indústria cosmética.
Mais uma experiência de exploração sustentável da natureza para mudar a
percepção dos pantaneiros. “Nosso trabalho repercute na comunidade. Moramos no
coração do Pantanal, sempre gostamos daqui, mas agora as pessoas estão vendo
as coisas de modo diferente. Muita gente já está pensando no turismo
ecológico”, afirma o agricultor Daniel Soares. Ele também trabalha com as
amêndoas e tem novos planos. Quer convencer o grupo a comprar outras área e
plantar não apenas o cumbaru, mas também o pequi e a bocaiúva, palmeira
apreciada pelas araras azuis.
(Por Cristina Ávila,
O Eco, 13/04/06)