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2006-04-12
A expansão do centro de Porto Alegre ocorreu pela transformação de água em concreto. Aterros realizados junto às margens do Guaíba durante mais de um século triplicaram a área da península e modificaram em tal grau o desenho da cidade que ele não seria reconhecido hoje por um morador de cem anos atrás.

As centenas de hectares aterrados também deixaram um legado favoreceram a traumática enchente de 1941, incentivaram a separação entre a população e o Guaíba por meio de um muro e comprometeram o futuro uso como balneário do trecho de orla que se estende até a Praia de Belas.

A região central era originalmente um morro estreito que se projetava para dentro do Guaíba, tendo como cume a atual Duque de Caxias. As margens iam até a Rua da Praia, na face norte, e a Washington Luís, no lado sul. A demanda por novos espaços originada do crescimento da cidade e a necessidade de qualificar o porto desencadearam a realização dos aterros - primeiro promovidos por particulares interessados em valorizar seus terrenos, mais tarde planejados pelo poder público.

Com as vantagens, eles trouxeram conseqüências negativas, que ainda reverberam no cotidiano de cada morador da cidade. Por ter sido feita na mesma cota da margem, a imensa área plana entre a Sete de Setembro e o Guaíba tornou-se vulnerável a inundações. Os porto-alegrenses não demoraram a perceber isso. Na célebre enchente de 1941, a região aterrada ficou submersa.

- Se não houvesse aterro, não haveria enchente em 1941 no Centro - acredita a professora da Faculdade de Arquitetura da UFRGS Célia Ferraz de Souza, que estuda o desenvolvimento urbano da Capital.

Como conseqüência, a necessidade de proteger a região aterrada levou à construção do muro da Mauá, que divorciou o Centro e o Guaíba em 1974 e serviu de ingrediente na receita que deteriorou a região. O geógrafo Cícero Castello Branco Filho, que concluiu em 2005 dissertação de mestrado sobre a orla, aponta outro efeito nocivo dos aterros. Realizados com terra retirada do fundo do Guaíba, eles deixaram imensos buracos no leito, do cais até a margem do Parque Marinha do Brasil. Mesmo que o trecho seja despoluído, não será seguro para banho.
- Se fosse possível secar o Guaíba, veríamos buracos muito profundos preenchidos por lodo e lixo - diz.

O vento teve um papel decisivo na história dos aterros e acabou por condicionar o atual contorno do Centro. A força com que ele soprava do Sul estimulou a ocupação no Norte, mais protegido - tornando obsoleto o nome da Rua da Praia ainda na metade do século 19, quando uma área roubada ao Guaíba deu origem a uma nova via ribeirinha, a atual Sete de Setembro.

- Do lado sul da península havia muito descampado, mas não existia o interesse em crescer para lá por causa do vento. Além disso, o porto era melhor na margem norte - diz a professora Célia Ferraz de Souza.

Os aterros realizados ao longo do século 19 explicam a Praça 15. Ali, então margem do Guaíba, funcionou entre 1844 e 1870 o mercado da cidade. Quando ele ficou pequeno, aterrou-se a área em frente para construir-se o atual Mercado Público. O prédio antigo foi demolido e abriu um vazio que se transformou em espaço público de lazer.

Os aterros fariam uma cirurgia plástica na fisionomia do Centro no alvorecer do século 20. Em 1907, Porto Alegre disputava com São Paulo o título de segunda cidade brasileira com maior produção industrial, atrás do Rio de Janeiro.

Alargar a superfície serviu para modernizar o porto
Enquanto a Capital paulista detinha 15% da produção nacional, a gaúcha tinha 14%. Um cais condizente com a condição de pólo exportador era necessário no Guaíba. Somavam-se a isso a decisão federal de modernizar os portos, vistos como propagadores de doenças, e o interesse da administração do Estado de tornar Porto Alegre um cartão de visitas. Em 1914, o Plano de Melhoramentos municipal projeta o novo cais e prevê o avanço em direção ao Guaíba por mais dois embelezados e modernos quarteirões, cortados por largas avenidas: Siqueira Campos, Júlio de Castilhos, Mauá. O cais Mauá é inaugurado em 1921.

Apesar dos efeitos adversos, os aterros permitiram a modernização do porto, concederam espaços para a expansão da área central e facilitaram o acesso à região.

A alternativa: ousadia contra o muro O Guaíba pode salvar o centro de Porto Alegre. A conversão do cais em área de lazer é apontada como remédio para atrair público diferenciado, produzir movimento noturno e renovar o bairro. Arquitetos e urbanistas consideram incontornável substituir o muro da Mauá por outro tipo de proteção contra cheias.

- É decisivo derrubar o muro, ou não faz sentido ter projeto para o porto. Encontrar alternativa de proteção não é problema técnico nem significa gastar muito. O obstáculo é o medo que as autoridades têm de tomar a decisão - diz Carlos Maximiliano Fayet, ex-presidente regional do Instituto dos Arquitetos do Brasil.

O projeto que falhou
O maior aterro da história de Porto Alegre riscou uma bela enseada do mapa com a ambição de criar um bairro residencial de alto padrão e de integrar o Guaíba à cidade. Fracassou em ambos os objetivos, legando uma gigantesca área inacabada que afastou a orla do cidadão e que ainda luta para se integrar à vida da cidade.

A intervenção, na margem sul do Centro, começou em 1956 e, em 1978, atingiu 200 dos 300 hectares previstos. Abrange a região que vai da Rua Washington Luís até o Arroio Dilúvio e da Rua Praia de Belas até a costa.

A proposta de uma zona residencial em terreno criado sobre o Guaíba foi apresentada em 1938 por Edvaldo Pereira Paiva e Ubatuba de Faria. A Praia de Belas era uma região estagnada. A abertura da Borges de Medeiros, entre 1924 e 1943, ligara ao Centro aquele ponto de tímido desenvolvimento e criara as condições para seu aproveitamento e para a integração da zona sul à cidade.

O plano definitivo do aterro e do bairro ficou pronto em 1953, foi aprovado por lei em 1955 e apareceu inscrito no primeiro plano diretor da cidade, de 1959. Previa marina pública, tratamento paisagístico e requintado balneário junto a uma baía artificial. A partir daí, desenrolou-se a novela da incapacidade porto-alegrense de desfrutar o Guaíba.

Se no Centro há a desculpa do muro para proteger contra as cheias, na margem sul verificou-se o mero abandono dos projetos.

- Poucos foram os quarteirões que saíram como o previsto. Na medida em que aterrava, a prefeitura percebeu que não ocorria uma comercialização dos lotes como a prevista. A saída foi mudar a destinação do aterro. No final, essa grande obra ficou inconclusa - diz a arquiteta e professora da PUCRS Maria Dalila Bohrer, autora da dissertação de mestrado O aterro Praia de Belas e o aterro do Flamengo.

O insucesso do plano deduziu, em 1961, cem hectares da área a ser aterrada. Lei de 1970 revogou o projeto do novo bairro Praia de Belas. Optou-se por criar dois grandes parques: o Maurício Sirotsky Sobrinho e o Marinha do Brasil. Este foi motivo de concurso em 1976. O projeto vencedor previa aquário, cais turístico, bar flutuante e ilha artificial - jamais realizados.

Visitante lamentou a mudança na paisagem
O geógrafo Cícero Castello Branco Filho avalia:

- A área aterrada ainda é uma zona pouco utilizada, não incorporada plenamente ao espaço urbano. Hoje a região tem um uso interessante para a cidade, mas gerou um impacto negativo na paisagem. Ilhas foram engolidas pelo aterro e perdeu-se uma bela baía.

Às voltas com uma infinidade de hectares sem função, as autoridades levaram para lá órgãos públicos, como o Centro Administrativo e a Câmara. Segundo o professor de história da PUCRS Charles Monteiro, a remoção de repartições ajudou a degradar o Centro a partir dos anos 70.

O jornalista e escritor Carlos Reverbel gostava de relatar a reação que o aterro gerou em um antropólogo norte-americano que esteve em Porto Alegre durante as obras.

- Vocês estão estragando uma das paisagens mais bonitas do mundo. É pena que não se possa comprar a paisagem e transportá-las para países que saibam admirá-las e preservá-las.
(ZH, 12/04/06)

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