A oligarquia da água ganha outra batalha, mas pode perder a guerra
2006-04-11
Uma vez mais, as forças econômicas e políticas que controlam o fórum Mundial da Água (CMA) conseguiram impedir que o princípio do acesso à água potável como direito humano (universal, indivisível e imprescritível) seja reconhecido na declaração ministerial da organização. Esse é o resultado do IV Fórum Mundial da Água realizado na Cidade do México entre 16 e 22 de março. Desta vez, a negativa não só contrariou a posição manifestada por dezenas de milhares de representantes de centenas de organizações da sociedade civil de todo o mundo, mas também a petição explícita que o Parlamento Europeu expressou em uma resolução aprovada no dia 16 do mês passado com a assinatura de todos os grupos políticos.
Por sua vez, o representante dos Estados Unidos se deu ao luxo da ironia ao afirmar: “O acesso à água é um direito humano? Claro que sim, com a condição de pagá-lo”. Esta rejeição confirma que o CMA, que a cada três anos organiza o Fórum Mundial da Água, continua sendo uma emanação da oligarquia internacional da água sob a influência do lobby francês formado pelas duas maiores empresas multinacionais da água e pelo Estado francês. Também integram esta oligarquia o Banco Mundial, cujo vice-presidente para o meio ambiente foi o primeiro presidente do CMA, e os governos do Canadá, Japão, Egito, Holanda e Austrália, que têm fortes interesses na indústria da água. A este grupo se somam alguns organismos das Nações Unidas (Unesco, FAO, OMS, UNDP, OMM) e alguns círculos científicos e profissionais que dependem economicamente de atividades financiadas pelas agências da ONU e por empresas multinacionais.
O CMA é um organismo privado de direito francês com sede em Marselha. Os representantes das empresas privadas francesas e inglesas sempre ocuparam os postos-chave de sua direção. Desde 2005, Loic Fachon, presidente do Groupe dês Eaux de Marseille, cujo capital pertence em partes iguais à Vivendi e Suez (respectivamente, a primeira e a segunda multinacional da água) ocupa a presidência do CMA. Isto explica porque Fachon manteve no México a oposição “público versus privado” em relação à propriedade, gestão e controle da água. É um falso problema, enquanto o que importa é fornecer o recurso de maneira eficiente, eficaz e econômica. Segundo o empresário, o fato de o controle estar em mãos privadas não implica nenhuma diferença sobre as finalidades, os objetivos e métodos organizacionais com uma situação na qual a administração esteja a cargo de organismos públicos.
A negativa de considerar a proposta do Parlamento Europeu (legítimo representante de 450 milhões de cidadãos) por parte de uma instituição privada se impôs como o centro principal de análise e debate sobre a política mundial da água, é reveladora da cultura democrática do grupo que controla o CMA.
Penso que esta rejeição pode significar o início do fim do CMA. De fato, na mesma resolução do Parlamento Europeu é proposto que a coordenação das atividades de definição e execução da política mundial da água seja atribuída a uma agência que assuma a coordenação das 24 agências das Nações Unidas relacionadas com a água. Precisamente, essa agência desempenharia o papel que nos últimos 10 anos o CMA pegou para si. A atitude do CMA merece uma condenação sem atenuantes. Isto ocorre enquanto em todo o mundo se cobra consciência sobre os estragos consideráveis que representam a comercialização da água e a privatização dos serviços hídricos.
Agora que o vento já não sopra somente a favor da mercantilização da água, é hora de o princípio do direito à vida para todos como fundamento da justiça social e de uma democracia real se converter no apoio de uma política da água em nível mundial. O Parlamento Europeu poderia fazer da criação desta agência de coordenação, não burocrática e em comunicação com o mundo da sociedade civil e das instituições parlamentares organizadas em nível internacional (Parlamento Europeu, Parlatino, Parlamento Pan-africano etc), bem com a reforma do conteúdo da política hídrica, os dois pilares de sua contribuição ao desenvolvimento de uma política de desenvolvimento da economia mundial baseado nos direitos humanos e no cuidado com a água como bem comum público universal.
A Agência Mundial da Água poderia se reunir pela primeira vez em 2008 por ocasião do 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, precisamente para ressaltar a estreita relação entre a água e o direito humano. Chegou o momento de tirar do mercado e das finanças o poder de governar o destino das sociedades humanas.
(*) Por Riccardo Petrella, secretário-geral do Comitê Internacional para o Contrato Mundial da Água.
(Envolverde/ IPS, 07/04/2006)