É arriscado desafiar as petroleiras na Bolívia, mas decepcionar as bases pode ser pior
2006-04-11
Um decreto do governo boliviano para nacionalizar as reservas do país e
transformar as petroleiras em prestadoras de serviço à YPFB é esperado para
este mês. Em vez de negociarem livremente a venda do gás segundo suas
conveniências, empresas estrangeiras como a Petrobras passariam a receber pela
operação dos poços, com tarifas reguladas, como já ocorre em grandes
exportadores de petróleo, como o México, a Venezuela e vários países do Oriente
Médio. Mesmo sem tocar nos ativos, isso provavelmente rebaixaria em alguma
medida a expectativa de lucro dessas empresas.
O princípio já havia sido estabelecido pela lei dos hidrocarbonetos de maio de
2005, promulgada no governo de Carlos Mesa. Faltava apenas regulamentação. É uma
questão central do debate político boliviano desde outubro de 2003, quando a
indignação popular contra o projeto de exportação de gás aos EUA, através do
território chileno, por meros 70 centavos de dólar por milhão de BTU depôs
Sánchez de Lozada, El Gringo.
Como sabe quem acompanha a conjuntura boliviana, a nova lei tem o caráter de
solução de compromisso. Se dependesse da radicalizada esquerda boliviana, cujas
bases levaram Morales ao governo, as petroleiras seriam imediatamente
expropriadas de seus veículos, equipamentos e instalações.
Não é uma pressão a ser desconsiderada. Com menos de cem dias de governo (a ser
completados em 1º de maio), Evo Morales, longe de gozar de uma lua-de-mel, tem
sido obrigado a combater em várias frentes contra o que já chamou de “carnaval”
de manifestações.
Em 4 de abril, as linhas de ônibus iniciaram um locaute contra a obrigação de
emitir faturas e pagar impostos, exigindo a mobilização de veículos militares
para evitar a paralisação dos transportes rodoviários no país. Os proprietários
de ônibus pagam um total de menos de 2 mil dólares anuais em impostos, quando
deveriam pagar 2,3 milhões de dólares. Também nesse dia a cidade de Camiri
iniciou uma “paralisação cívica” pela nacionalização dos recursos naturais.
Os 2 mil trabalhadores do Lloyd Aéreo Boliviano (LAB), sob intervenção do
governo, tomaram quatro aeroportos e alguns deles chamam Evo de “traidor” e
“covarde”. A crise da empresa continua sem solução – embora o atual
proprietário, Ernesto Asbún, esteja disposto a vender o controle por
relativamente módicos 3 milhões de dólares, o governo não quer “nacionalizar a
corrupção” e assumir a dívida de 170 milhões de dólares deixada pelas
fracassadas gestões da Vasp (família Canhedo) e de Asbún após a privatização
promovida pelo primeiro governo Sánchez de Lozada em 1997, quando a empresa era
avaliada em 67 milhões de dólares.
À esquerda de Evo, o líder quéchua e camponês Felipe Quispe e o secretário-geral
da Central Operária Boliviana (COB), Jaime Solares, ameaçam “derrubar Morales”
se o modelo econômico não mudar radicalmente. Para exigir, entre outras coisas,
a triplicação do salário mínimo, a COB anunciou uma paralisação geral no dia 21,
a ser precedida por paralisações dos professores e trabalhadores da saúde,
insatisfeitos com o reajuste de 7%. Indígenas mantêm-se em vigília diante do
palácio presidencial por suas reivindicações territoriais.
Dos nove prefectos (governadores) de departamentos, seis opõem-se ao governo
central e uniram-se para buscar formas de esvaziar suas atribuições e exigir
pouco menos que a soberania plena. O de Santa Cruz assina decretos prefecturales
e se faz chamar de “presidente”, o de Tarija busca ostensivamente passar por
cima do governo central e celebrar acordos internacionais sobre gás e petróleo.
Ao mesmo tempo, inicia-se a campanha para a eleição da Assembléia Constituinte
e o plebiscito sobre a autonomia departamental, marcados para 2 de julho. São
novas oportunidades para mobilizar a população, acirrar divisões e radicalizar
reivindicações, que, provavelmente, se manifestarão com força ainda maior
durante o funcionamento da Constituinte.
Nessa conjuntura, a verdadeira surpresa do 2 de abril não foi o anúncio do
decreto de nacionalização, mas o da pesquisa segundo a qual o apoio a Evo
Morales, subiu de 79% em fevereiro para 80% em março. É pouco menor a aprovação
a seu vice Álvaro García Linera (77%) e ao governo como um todo (74%). Apesar
da linguagem exaltada da oposição, Evo continua muito popular.
Mas, se nunca foi fácil governar esse país, a tarefa hoje é especialmente
ingrata e é do interesse dos vizinhos não complicá-la ainda mais.
Na Assembléia de Governadores do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),
em Belo Horizonte, da qual Evo Morales participou, o presidente da Petrobras,
José Sérgio Gabrielli, recusou o papel de “prestador de serviços” com a ameaça
de privar a Bolívia de “dois terços de sua exportação e um terço de sua receita
tributária”.
Gás e petróleo representam 36% e 9% das vendas externas bolivianas,
respectivamente. De fato, o outro lado tem muito a perder se fechar a torneira.
Sua posição não é a mesma da Venezuela, que acaba de estatizar as concessões da
francesa Total e da italiana Eni sem receio de perder mercados. As vendas de gás
dependem de gasodutos e instalações fixas que não podem ser livremente
direcionadas a qualquer cliente. Como o custo do transporte é significativo, os
ganhos do país seriam menores se buscasse mercados mais distantes.
A curto prazo, o Brasil passaria por um aperto, mas a médio prazo tem
alternativas. As reservas da Bacia de Santos podem ser exploradas ao custo de
2,50 dólares por milhão de BTU a partir de 2010 e o gasoduto
Venezuela-Brasil-Argentina poderá funcionar já em 2012. Se concretizado, caberá
a Caracas ditar o preço e à Bolívia restará acompanhá-la. O preço proposto por
Hugo Chávez é de 5 dólares, mais do que os 3,13 dólares hoje pagos pelo Brasil,
mas bem menos que o preço de 7 a 9 dólares pagos pelo Chile para importar gás
liquefeito por via marítima, hoje citado como parâmetro pelos bolivianos.
Ainda assim, o assessor da Presidência, Marco Aurélio Garcia, garantiu, também
na assembléia do BID, respeitar a decisão de La Paz de nacionalizar as reservas
de gás e petróleo. Projetar uma imagem que possa ser interpretada como de
“arrogância imperialista” não é bom para o futuro da empresa ou do Brasil na
América Latina – e pode ser muito pior para os investimentos da Petrobras se
Morales for desestabilizado e a Bolívia for vítima de uma guerra civil.
Por outro lado, a Petrobras tem muito a oferecer em tecnologia para a Bolívia
reconstruir sua estatal YPFB como empresa operacional, tornando-se sua sócia
privilegiada. Cabe reconhecer a soberania do vizinho e negociar preços do gás
compatíveis com a alta do mercado de energia (não previstos no contrato
original, mas que também não previa que o Brasil não cumpriria o cronograma de
compras e de construção de termoelétricas), junto com termos da cooperação e
garantias cabíveis para os investimentos brasileiros de que a Bolívia continua
a necessitar.
La Paz, frágil do ponto de vista da realpolitik global, precisa da integração
sul-americana. As transnacionais do Hemisfério Norte podem ser indiferentes à
paz social e ao desenvolvimento da Bolívia, mas estes são do interesse de todos
os vizinhos. Se Brasil e Argentina aceitarem um acordo justo sobre o gás, e o
Chile de Michelle Bachelet tiver a ousadia de oferecer à Bolívia o tão desejado
acesso ao mar, isso não só abrirá perspectivas antes impensáveis para esse país
sofrido, como será um exemplo de cooperação capaz de relegar a segundo plano as
picuinhas que volta e meia ameaçam pôr a perder o Mercosul e as possibilidades
de um desenvolvimento mais autônomo da América do Sul.
(Carta Capital,
12/04/06)