Pesquisador estuda pumas em São Francisco de Paula
2006-04-11
Peter Crawshaw, que apesar do nome é brasileiro nascido no interior de São Paulo
e funcionário do Ibama desde os tempos em que o órgão ainda se chamava IBDF,
mudou-se de mala e cuia para a Floresta Nacional de São Francisco de Paula, na
serra gaúcha, em 2001. Veio para estudar os pumas que freqüentam o local. Chegou
com a certeza de que, em se tratando de onças pintadas e pardas, nada mais o
surpreenderia.
Depois de quase três décadas estudando esses felinos – primeiro no Pantanal,
depois na Flórida e daí no Parque Nacional do Iguaçu, Carajás e em Porto
Primavera, na divisa entre Paraná, Mato Grosso do Sul e São Paulo – Crawshaw
aprendeu que são, sobretudo, criaturas metódicas. Quando viram adultos, passam
a viver uma vida solitária, interrompida apenas pela necessidade do
acasalamento, e reclamam para si vastas extensões de território. No Pantanal,
por exemplo, a média de área para cada onça é de 100 quilômetros quadrados.
Também aderem a uma dieta específica, baseada em suas preferências individuais,
e são cheias de hábitos, como o de retornar às carcaças de suas presas.
Patrulham diligentemente o seu território e a cada 8 ou 14 dias renovam as
marcas de urina ou fezes para deixar claro para as outras que ali já tem uma
onça.
“Uma vez que você conhece o animal”, diz Crawshaw, “vê que ele se comporta de
maneira bastante previsível”. Exceto pelos pumas de São Francisco de Paula.
Ao contrário de seus primos de outras regiões do Brasil, eles parecem ter uma
estratégia de patrulhamento e demarcação de território no mínimo errática. “Não
renovam suas marcações de urinas e fezes em intervalos regulares”, diz o
pesquisador. “Também palmilham o terreno de forma irregular”. Nem sempre voltam
à carcaça de um animal abatido e sua dieta não é especializada. Parecem escolher
a comida com base apenas na sua disponibilidade no momento da fome. Crawshaw
já encontrou carcaças de vários tipos de animais atacados pelos pumas de São
Francisco de Paula, como ovelhas, veados e tatus. “Já encontramos até evidências
de que eles andam comendo o lagarto-teiú, quando é época desse bicho aqui na
floresta”, diz.
Mas a surpresa maior de suas descobertas em São Francisco de Paula foi perceber
que os pumas estão freqüentando as florestas de pinus, uma árvore exótica
utilizada pelas indústrias de madeira e celulose e que nos últimos anos vêm
tomando os campos nativos nas serras gaúcha e catarinense. “Aparentemente os
pumas estão usando as florestas de pinus como corredores, uma vez que a expansão
do pinus coincide com a expansão da população de pumas na região”, diz
Crawshaw que estima a população em até uns 500 animais para toda a região. “Essa
é uma hipótese ainda, baseada nas evidências encontradas”, continua ele. “E me
preocupa muito a possibilidade de pessoas mal-intencionadas usarem isso de
forma errada, dizendo que o pinus faz bem à natureza. Na verdade, essas
florestas comerciais estão fazendo desaparecer os campos nativos, um
ecossistema muito frágil”.
Nem uma captura
Crawshaw teorizou primeiro que o impacto do pinus sobre os pumas era fruto da
proteção que esse tipo de floresta dava aos bichos, interligando remanescentes
de mata nativa, ampliando seu raio de ação. Mas começou também a encontrar
evidências de que estavam caçando animais – veados, tatus – bem nas áreas de
plantação de pinus.
Resumindo toda essa história, desde que começou a tentar abrir a caixa-preta
dos pumas no Sul, Crawshaw só teve surpresas. Uma das principais foi não
conseguir capturar um animal sequer para instalar no seu pescoço um colar com
rádio transmissor, detalhe fundamental para poder acompanhar os passos do bicho
mata adentro.
Não que seja fácil pegar uma onça. Ainda mais viva. Mas para Crawshaw, que
capturou muitas delas ao longo de sua vida como pesquisador, não colocar um
colar sequer num animal foi uma derrota. “Isso atrapalhou muito o estudo porque
nos impediu de individualizar os animais em nossas pesquisas”, diz. Não foi
por falta de determinação que as onças não caíram nas armadilhas. Ele usou toda
a experiência que tinha acumulado nos seus estudos e, exceto pelo emprego de
cães para acuar o bicho – seu método preferido de captura nas áreas abertas do
Pantanal – tentou de tudo. “A gente botava armadilhas de caixa, com isca
dentro e barreiras externas para direcionar o animal a chegar perto da porta”,
relembra. “E ele, esperto, dava meia volta e passava ao largo”.
Até ajuda externa para por a mão nos pumas Crawshaw aceitou. “Vieram
pesquisadores americanos que já tinham experiência em capturas de onça-parda
com armadilhas de laço”, conta Micheline, bióloga casada com Crawshaw que é
hoje sua assistente de campo. Passaram uma semana montando armadilhas e
testando novas técnicas. Mas nem assim conseguiram ter sucesso. Esse
comportamento furtivo dos bichos foi também responsável por uma experiência
inédita na carreira do pesquisador. Ao longo dela, cansou de ver onça. “Aqui,
só vi uma. Era um macharrão, que caiu numa das armadilhas de laço”, conta.
Quando Crawshaw se aproximou do animal com uma pistola carregada com um dardo
para anestesiar o bicho, ele conseguiu se soltar. “O laço, provavelmente, pegou
apenas a ponta da pata. Ele forçou a fuga e se foi”, diz. Os outros três pumas
que freqüentam os 1 mil e 600 hectares da Floresta Nacional, ele só viu nas
imagens capturadas por armadilhas fotográficas, que disparam a máquina
quando os sensores detectam algo passando na sua frente. Crawshaw diz que por
conta de tanta coisa inesperada em relação aos pumas de São Francisco de Paula,
fica às vezes com a consciência pesada. “É duro, depois de cinco anos, não
poder chegar a nenhuma conclusão baseada em dados quantitativos”.
O que não quer dizer que ele ache que perdeu seu tempo. “Vou fazer um relatório
com mais impressões do que certezas, mas espero poder indicar caminhos futuros
para o estudo de onças aqui”, diz. Nesse relatório, reformulará algumas
hipóteses que guiaram o estudo. A mais radical delas diz respeito aos próprios
pumas da região. Levando em consideração, digamos assim, a natureza imprevisível
e excessiva esperteza dos pumas da serra do Sul do Brasil, Crawshaw não
resiste a se perguntar se, depois de séculos de convivência direta com os
homens, eles não desenvolveram alguma forma de inteligência que acabou lhes
dando uma ecologia mais flexível para enfrentar a pressão. “Esse contato”, diz
ele, “parece ter equipado os animais com uma capacidade diferenciada de se
adaptar à situação e tirar proveito dela”.
(Manoel Francisco Brito, O Eco,
08/04/06)
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