Mosquitos transgênicos no combate a doenças
2006-04-10
A introdução na natureza de dois mosquitos transgênicos recém-criados em
laboratório pode inibir a propagação da dengue e da malária, doenças que
vitimam milhões de pessoas por ano no mundo.
No último mês, cientistas anunciaram o desenvolvimento de um Aedes aegypti
imune à dengue e de um Anopheles spp resistente à malária. A idéia é que,
ao inserir os insetos modificados num habitat natural, eles se reproduzam e se
estabeleçam, levando à extinção ou à diminuição significativa dos mosquitos
originais, transmissores das doenças. O problema é que não se sabe ao certo que
conseqüências tais interferências podem acarretar. A polêmica está lançada, no
mundo acadêmico e entre ambientalistas.
A edição de 14 de março da revista Proceedings of the National Academy of
Sciences, da Academia Nacional de Ciências dos EUA, traz artigo de Ken Olson,
Anthony James e colaboradores anunciando a obtenção de um Aedes aegypti
resistente ao vírus da dengue tipo 2, o causador mais freqüente da doença.
A novidade empolgou o biólogo molecular Elói de Souza Garcia, ex-presidente da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e membro da Academia Brasileira de Ciências. “Os
mosquitos que sobreviveram à transformação gênica foram capazes de se
reproduzir e estabelecer colônia em laboratório, tornando-se assim uma
ferramenta genética e uma estratégia importante para o controle da dengue,
doença que afeta aproximadamente 50 milhões de pessoas por ano, e mata cerca de
20 mil, em todos os continentes. A sociedade deve começar a avaliar os
resultados e impactos da liberação de insetos transgênicos na natureza”, defende
Garcia, que é superintendente de Desenvolvimento Científico da Secretaria de
Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado do Rio de Janeiro.
Desde a década de 90, cientistas de diversas partes do mundo vêm desenvolvendo
metodologias para modificar o genoma de mosquitos, inserindo genes artificiais
ou de outros seres vivos. No caso da dengue, para que a doença seja transmitida
é necessário que o vírus infecte as células do intestino do Aedes aegypti
. Explorando características do processo de multiplicação do vírus da
dengue nas células do inseto, pesquisadores do Colorado e da Califórnia,
autores do estudo, conseguiram produzir uma linhagem de mosquitos geneticamente
modificados resistentes ao vírus.
Os pesquisadores clonaram parte do RNA do vírus, utilizando-o para produzir um
gene artificial. Então inseriram esse material genético em embriões do mosquito.
O gene aciona um mecanismo de defesa nas células do mosquito que faz com que
elas, ao serem infectada com o vírus, imediatamente reconheçam o RNA duplicado
e o destruam. Assim interrompem o processo infeccioso e portanto a transmissão
da doença.
O grande sucesso da experiência está no fato de que os descendentes dos
embriões transformados também apresentaram o RNA modificado e ficaram altamente
resistentes à infecção da dengue. A transmissão do material genético para a
prole significa que disseminação dessa variante de mosquito na natureza é uma
possibilidade real.
Veneno de abelha
Esta semana, pesquisadores do Laboratório de Malária do Centro de Pesquisa René
Rachou (CPqRR), unidade da Fiocruz em Minas Gerais, anunciaram a criação de um
mosquito transgênico do gênero Anopheles spp., transmissor da malária. O
mosquito – o primeiro geneticamente modificado na América Latina – é resistente
à infecção pelo protozoário Plasmodium spp, parasita da doença. A pesquisa
representa o primeiro passo em busca de uma nova estratégia para bloquear a
propagação da malária.
Em parceria com pesquisadores da Universidade Johns Hopkins, dos EUA, a equipe
mineira introduziu no genoma do mosquito uma forma modificada da proteína
fosfolipase A2, retirada do veneno de abelhas, que funciona como uma vacina
contra a malária no inseto, impedindo o desenvolvimento do parasita em seu
organismo. Com essa interferência genética, feita através de microinjeção em
embriões, os mosquitos passaram a produzir a enzima protetora por conta própria.
A técnica de ponta foi financiada pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
A malária (ou paludismo) é a doença tropical e parasitária que mais causa
problemas sociais e econômicos no mundo, só superada em número de mortes pela
Aids. É considerada problema de saúde pública em mais de 90 países, onde 2,5
bilhões de pessoas (cerca de 40% da população mundial) convivem com o risco de
infecção. Só na África, cerca de 400 milhões de pessoas são infectadas por ano,
das quais 1 milhão morre. No Brasil, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa)
registrou 591 mil casos de malária em 2005.
De acordo com o pesquisador Luciano Andrade Moreira, coordenador do projeto no
CPqRR, nesta primeira fase foram gerados mosquitos transgênicos da espécie
Aedes fluviatilis , vetor da malária aviária, causada pelo Plasmodium
gallinaceum . Além de ser mais seguro, uma vez que não há risco para as
pessoas, é mais fácil obter o ciclo completo deste parasita em laboratório. “Já
possuímos uma criação de mosquitos transmissores de malária humana, da espécie
Anopheles aquasalis . Esperamos em seis meses obter as primeiras larvas
transgênicas desta espécie”, diz Moreira. O trabalho é parte da tese de
doutorado de Flávia Guimarães Rodrigues, aluna de Moreira.
Futuramente, os pesquisadores pretendem alimentar os mosquitos transgênicos com
sangue de pacientes com malária, para confirmar a inibição do desenvolvimento
do parasita. Moreira acredita que ainda serão necessários no mínimo dez anos
para se ter certeza de que estes insetos podem ser introduzidos no campo, onde
se misturariam aos mosquitos comuns e transmitiriam aos seus descendentes genes
antimalária.
O mosquito transgênico foi recebido como alternativa promissora de combate à
doença, já que não há vacina eficaz contra malária e o protozoário parasita tem
se mostrado resistente aos medicamentos, assim como o mosquito aos inseticidas.
A questão agora é estudar os riscos ao meio ambiente.
Competição
Desde que surgiu o primeiro mosquito transgênico, um Aedes aegypti criado em
1998 nos Estados Unidos, nunca foram realizados testes na natureza.
Para Elói Garcia, esse tipo de manipulação da transgenia, voltada para o
bloqueio do desenvolvimento do vírus ou do parasita, não representa perigo
potencial. “No entanto, experimentos controlados precisam comprovar essa minha
opinião. Não se sabe, por exemplo, qual a viabilidade desses insetos quando
liberado na natureza. Há pesquisadores que acreditam que o melhor transgênico é
o feito pela natureza nos milhões de anos do processo evolutivo. Numa competição
com os insetos produzidos no laboratório, os selvagens seriam mais
adequados para as condições naturais”, diz.
Segundo Pedro Lagerblad de Oliveira, coordenador do Instituto Virtual da Dengue
do Estado do Rio de Janeiro, muitos cientistas conceituados acham que a
introdução de mosquitos transgênicos na natureza para controlar a disseminação
de doenças nunca vai funcionar. Ele, entretanto, acredita que a tática pode dar
certo. “Mesmo que o novo mosquito não extinga o outro, poderá diminuir as taxas
de transmissão. Se a estratégia funcionar, o custo será mínimo, uma vez que o
mosquito se espalha. É uma questão de sobrevivência crucial para países
africanos, por exemplo, onde o investimento em saúde por habitante é de dez
dólares por ano, mal garantindo a vacinação antipólio”, afirma.
Antes disso, entretanto, ele defende a ampla realização de testes. “No caso da
malária, uma idéia em discussão é um teste de campo numa ilha onde a doença
seja endêmica. Espalharia-se o mosquito e, caso algo desse errado, a extinção
seria factível com inseticida”, diz.
Lagerblad de Oliveira, que é professor do Departamento de Bioquímica Médica da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, não nega a existência do risco, mas
diz que ele não é maior do que o da introdução de uma espécie exógena num
ecossistema, podendo se tornar vetor de outra doença. “É um problema novo. É
preciso pensar em que testes fazer e fazê-los”, defende.
(Marina Lemle,
O Eco, 05/04/06)
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