Águas que descem turvas: crônica do fracasso de uma privatização
2006-04-05
No dia internacional da Água, a administração Kirchner rescindiu, “para resguardar a vida, a saúde e o patrimônio da população atendida pela concessão”, por culpa do concessionário, o contrato entre o Estado argentino e a empresa Águas Argentinas S.A. (AASA), prestadora do serviço de água potável e esgotos na cidade de Buenos Aires e 17 municípios da mesma província. Ao mesmo tempo, criou Águas e Saneamentos Argentinos (AySA), na figura de sociedade anônima, com 90% das ações em mãos do Estado e os outros 10% em mãos dos trabalhadores. Se bem a decisão tomou de surpresa os principais acionistas da empresa (o grupo francês Suez e a catalã Águas de Barcelona), foi um final anunciado para uma das concessões mais polêmicas da era de Menem.
ANTECEDENTES
Privatizada em 1993 com a promessa de uma redução de tarifas e investimentos milionários, o fato é que aconteceu exatamente o contrário. As tarifas não
poderiam ser tocadas até 2003. Contudo, houveram sucessivas renegociações
pouco transparentes com o Estado, que quase duplicaram a tarifa, além de
dolarizá-la. Os acionistas tomaram a decisão de assumir dívidas
irresponsavelmente no mercado de capitais para não comprometer recursos
próprios nem reinvestir lucros no plano de investimentos. Mesmo assim,
sempre investiram menos do que aquilo a que tinham se comprometido.
Segundo um relatório da Entidade de Controle (ETOSS), no primeiro quinquênio
da concessão estavam previstas obras por 1.449 milhões de pesos, mas foram
executadas somente as correspondentes a 837 milhões (58%). No segundo
quinquênio, o resultado não melhorou: foram realizadas obras por 428 milhões
de pesos, sendo que o compromisso era de 752 milhões.
A partir da desvalorização da moeda, disposta no começo de 2002, foi
iniciado um novo processo de renegociação, que se conduzido da maneira
adequada teria provocado a imediata rescisão do contrato, pelas mesmas
razões agora levantadas. No entanto, a decidida intervenção do governo
francês (que, por outro lado, era um firme defensor da Argentina na
renegociação de sua dívida em default) e do FMI, advogando em favor da
empresa, levou este mesmo governo a negociar, no ano de 2004, uma trégua com
os principais acionistas, que já haviam interposto, no CIADI, um processo
contra o Estado argentino por 1,7 bilhões de dólares.
Passado um ano, a trégua foi quebrada e as posturas tornaram-se
irreconciliáveis, até que no final de setembro de 2005, Suez comunicou sua
decisão de abandonar – de maneira ordenada – o serviço, responsabilizando o
Estado por essa situação; contudo, ainda não tinha definido uma data para
sua saída. A partir desse momento, o governo argentino embarcou na busca
frenética de um investidor privado para encarregar-se cargo da empresa, como
sinal de que a estatização não era um fim em si mesmo. Nesse processo,
chegou inclusive a anunciar que Águas de Barcelona (cujo principal acionista
é o grupo catalão La Caixa – a mesma de Repsol-YPF-, e que tem com Suez um
acordo estratégico de associação a nível mundial) ficaria como operador.
Contudo, esta alternativa foi frustrada diante da exigência de Suez de que o
novo sócio assumisse a dívida de U$S 670 milhões da AASA e sua negativa de
desistir do processo no CIADI; e também pela firme decisão de Néstor
Kirchner de não conceder aumentos de tarifa para uma empresa que mesmo com
as tarifas congeladas desde 2002 tinha lucros suficientes para realizar as
obras necessárias para melhorar o serviço (as projeções para este ano são de
lucros operacionais de $ 270 milhões, enquanto que as obras necessárias para
acabar com a alta concentração de nitrato na água requerem apenas $ 144
milhões).
INVESTIMENTO QUE ME FAZES FALTA
Se bem a empresa disse ter investido U$S 1.700 milhões nos primeiros 9 anos
da concessão, na expansão de redes, a falta de investimentos denunciada pela
ETOSS é evidente: ainda restam 1,5 milhões de lugares sem acesso à rede de
água potável e 3 milhões sem esgotos, num universo de 10 milhões de
habitantes e uma área de 1.830 km2.
E muitos dos que têm acesso ao serviço sofrem sérios problemas de pressão da
água e una concentração de nitratos que, em alguns casos, supera em 200% o
nível permitido (45 mg/l), o que – segundo o Decreto 303 – “gerou alarme na
população” – especialmente entre as 300 mil pessoas que estão em áreas
sujeitas a risco de excesso temporário de nitratos.
Segundo o governo argentino “o problema é sempre o mesmo: a AASA não
realizou as obras necessárias para garantir que a origem da água
administrada não esteja contaminada com nitratos” nem para melhorar a
pressão da água, especialmente nas pontas da rede e nas zonas precárias. Por
outro lado, a reativação de perfurações que estavam em reserva e fora de uso
por terem alta concentração de nitratos, para satisfazer a crescente
demanda, tornou a situação ainda mais grave, uma vez que significou
“continuar injetando, de maneira direta, água não potável na rede de
distribuição, com o conseguinte risco para a saúde da população,
especialmente do setor mais vulnerável”.
Ao mesmo tempo, o mau gerenciamento dos recursos hídricos gerou graves
desequilíbrios, provocando inundações com águas servidas que emergem das
águas subterrâneas em zonas da periferia, particularmente zonas pobres,
enquanto que nos bairros de classe média e alta da cidade o serviço era
prestado em condições satisfatórias.
A razão disto é que, tal como aparece no Decreto citado, AASA priorizou “seu
interesse econômico, prestando serviços em áreas mais lucrativas da
concessão e deixando os setores mais humildes da população desprovidos de
água potável, ignorando o caráter de serviço público do serviço que presta”.
PRESSÃO
A decisão argentina gerou um novo curto circuito na relação, já delicada,
com o governo francês. O porta-voz das Relações Exteriores da França,
Jean-Baptiste Mattéi, falou de uma “decisão repentina” do governo argentino
e exortou a adotar “medidas adequadas” (leia-se indenização) para que Suez
possa encerrar suas atividades em “condições satisfatórias”. Ao mesmo tempo,
deixaram transcender que, em sinal de represália, Chirac excluiu o país da
sua viagem pela região.
O presidente Kirchner foi o encarregado de responder. Fez isso do jeito que
mais gosta: em ato público e sem meias tintas: “Tenho grande respeito pelo
povo francês e pelo presidente Chirac, mas que fique claro que não estou
disposto a abaixar a cabeça e permitir que sejam contaminadas as águas que
bebem os argentinos só para que nos visite um presidente ou uma Chancelaria
fique tranqüila”.
A NOVA EMPRESA
Sem dúvidas, o que mais incomodou a opinião pública, tanto da direita como
da esquerda, foi a criação de uma nova empresa estatal para se encarregar do
serviço e a decisão de nomear Carlos Ben como presidente, uma vez que ele
teve uma participação ativa no processo de privatização e até o dia anterior
era um dos três diretores-gerais adjuntos, em representação de Suez, além de
ser um aliado político do chefe do sindicato, o “gordo” José Luis Lingeri,
um ex-menemista, fortemente comprometido com a gestão dos franceses.
Por parte da direita, o temor é que seja o início de um processo de
estatização de empresas de serviços de envergadura. Até agora, a
Administração Kirchner foi obrigada a estatizar o correio oficial, a empresa
encarregada da radarização e uma das linhas ferroviárias. Nenhuma delas tem
a magnitude nem a dimensão política que tem AASA. E em nenhuma destas
decisões foram usados argumentos tão ideologicamente contrários à cartilha
neoliberal.
O temor é que os próximos sejam Aerolíneas Argentinas e Repsol-YPF. Contudo,
no primeiro caso, esse fantasma parece expressar mais um desejo dos atuais
acionistas da empresa aérea. No segundo, a situação é mais complexa e, se
bem tem sido cogitada a idéia de fazer uma oferta hostil por parte de alguns
Estados da região, resta muito caminho a ser percorrido até chegar a
materializar essa decisão.
Por parte da esquerda a crítica é pela designação de Ben e pela inocultável
aliança selada com a burocracia sindical, que seria parte do problema e não
da solução. Também se objeta que não existe, por parte do governo, uma idéia
clara sobre o que fazer com as privatizadas, além de reforçar a utilização
discricional dos recursos para fazer obras públicas por parte do ministro do
Planejamento, Julio de Vido.
A OPINIÃO DAS RUAS
Seja como for, a medida conta com a esmagadora aprovação da sociedade. É
isso que reflete uma pesquisa realizada pela agência OPSM, do sociólogo
Enrique Zuleta Puceiro, que mostra que 11,1% e 72,3% dos entrevistados
disseram “concordo totalmente” ou “concordo”, com a rescisão do contrato e
4,3% e 67,3% “concordo totalmente” ou “concordo”, com a criação da nova
empresa estatal.
O interessante desta decisão é que o governo argentino ousou confrontar em
duros termos a prédica neoliberal, afirmando que “enquanto a AASA concebe a
água potável exclusivamente de uma perspectiva de economia de mercado, o
Estado pretende que, sem por isso deixar de ser um bem econômico, seja
valorizada e administrada como aquilo que é: um bem social e cultural, que
em linguagem jurídica se traduz como Direito Humano”. Deste modo, o governo
tomou partido pela postura defendida pelas organizações que convocam o Fórum
Internacional em Defesa da Água, realizado recentemente na cidade do México.
Por outro lado, parece claro que a estratégia do governo argentino com
relação às empresas privatizadas durante os anos 90 aponta para que o Estado
volte a ter um papel fundamental e excludente na definição dos investimentos
que devem ser realizados em cada serviço (a exceção seria a telefonia
pública). Para isso está disposto, inclusive, a financiar esses
investimentos ou procurar as fontes para fazê-lo, seja através de
empréstimos ou de encargos específicos nas faturas. Essa estratégia não é
incompatível com a gestão privada dessas empresas, na medida em que elas
aceitem transformar-se em meros “gerenciadores”, encarregados da operação e
manutenção.
Sem dúvida, um jeito muito argentino de encarar a solução de problemas
complexos.
Continuará...
Por Rafael Gentili - Membro do Laboratório de Políticas Públicas, Buenos Aires.
(Agência Carta Maior, 03/04/06)
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=10528