Igrejas se unem pela primeira vez para refutar agronegócio
2006-04-03
Bispos e pastores de diferentes Igrejas se reunirem em seminário ao longo de três dias (28 a 30/03), na capital do País, para analisar e elaborar um documento sobre a questão agrária brasileira. A principal motivação do inédito encontro, segundo os religiosos, tem algo de profético: preservar a vida.
De acordo com o pastor sinodal Elio Scheffer, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana, a exploração desenfreada dos seres humanos e dos recursos naturais em nome da modernidade no campo, sob a égide do agronegócio, afronta o conceito bíblico da preservação da vida. Trata-se, na opinião do pastor, de uma “cultura de rapina” que se alastra com o avanço da monocultura voltada para a exportação, que concentra poder e renda. “Não é para todos”, sintetiza, antes de pregar um modelo diferente para o meio rural.
A iniciativa da reunião ecumênica para definir um posicionamento comum sobre o tema da terra já conta com a adesão de mais de 70 lideranças religiosas e partiu da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Ainda em 2000, a CNBB solicitou à comissão que iniciasse o processo de atualização do quadro amplo da questão fundiária, mas foi apenas no ano passado, durante o congresso da CPT em Goiás, que um grupo se reuniu para tentar articular a construção do novo documento, agora elaborado com a participação de representantes das Igrejas Luterana, Anglicana e Metodista, intitulado “Os pobres possuem a terra”.
Além da reafirmação de compromissos, o documento arrola casos, traz análises e enumera recomendações para diversos segmentos da sociedade brasileira. Entre reiterados pedidos de cumprimento da legislação vigente, os bispos e pastores solicitam diversas providências por parte do poder público, nas suas diferentes esferas, com destaque para o pedido ao Pode Executivo de normatização do preceito constitucional do cumprimento da função social da propriedade e a publicação imediata da instrução ministerial que atualiza os índices de produtividade, medida fundamental para viabilizar novas desapropriações da reforma agrária.
Não obstante as diversas recomendações, o documento foi construído para ser colocado, de acordo com os religiosos, na mão dos trabalhadores. Uma edição resumida em linguagem e formato popular será inclusive distribuída nas paróquias e nos sinos. “Esse posicionamento presente no documento não pode ficar à margem da cataquese, dos trabalhos internos das nossas Igrejas”, coloca Sebastião Gameleira
bispo da Diocese Anglicana de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Eles também pretendem expandir as resoluções do documento com alianças estratégicas com outros setores que compartilham da mesma visão. Gameleira atribui a viabilização do inédito encontro ecumênico ao agravamento do quadro e ao reconhecimento da impotência dos mecanismos do Estado.
Os religiosos contaram com a colaboração do professor de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), Ariovaldo Umbelino de Oliveira, para a elaboração de “Os pobres possuem a terra”. Para ele, o documento incorpora um conjunto de fatos que ajuda a dar uma nova dimensão ao problema, sob variados diversos. Dentro da temática ambiental, o documento lista fenômenos preocupantes como a desertificação no Rio Grande do Sul, desaparecimento de nascentes do Rio São Francisco, devastação da Amazônia, com reflexos diretos no aquecimento global, acompanhadas da disputa cada vez mais feroz pela água.
Do ponto de vista da soberania alimentar, Oliveira destaca o direcionamento da agricultura brasileira para o mercado mundial, que exige um aumento galopante da produção. Hoje, estima o professor, um terço da área agrícola do país está tomada por soja. Ao passo que a produção de arroz, milho, mandioca cai a cada safra. O Brasil importa trigo, arroz e feijão.
Os conflitos e a violência no campo estão diretamente relacionados, no documento, com a concentração fundiária. Há inclusive absurdos como o anúncio de oferta de uma área de 300 mil hectares a apenas quatro quilômetros de Santarém, em região extremamente conflituosa no Pará, denuncia o professor. Um dos dados apresentados por ele exemplifica bem esse desequilíbrio: apenas 32 mil imóveis ocupam metade da superfície territorial brasileira.
“Estamos no caminho do esgotamento da vida”, condena o bispo Gameleira. “A situação muito grave. Não é só uma questão regional ou nacional. É planetária”, descreve. “O paradigma da civilização está em crise. A ciência e a tecnologia não vão salvar as nossas vidas. Existem outros caminhos”, recomenda, inspirado pelos conhecimentos e pela sabedoria dos povos originários. “A Natureza é um bem comum da humanidade que não pode ser apropriada por ninguém. E temos que insistir na solidariedade aos explorados, oprimidos, excluídos”.
Por Maurício Hashizume, Agência Carta Maior